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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

20
Fev24

Divisões

Sónia Quental

No negócio de família, não gostava de atender ao balcão, mas gostava de etiquetar os produtos e de os arrumar na prateleira, um dos gestos concretos com que dava ordem e significado ao mundo. Da mesma forma, rotulamos e dividimos objetos e pessoas em categorias para fazermos mapas que nos situem, para nos defendermos do perigo, mesmo quando ele nasce de ficções ou embirrações pessoais. Tal como divido o mundo entre quem usa cinto e quem não usa, quem toma a meia de leite escura ou clara, morna ou quente (o que tem vastas implicações), há quem o divida entre pessoas simpáticas e antipáticas, bem-dispostas ou maldispostas – eu divido-o ainda entre as superficiais, que fazem divisões destas, e as profundas, que são as raras.

A superficialidade faz-me crispar a pele. Uma das coisas que não deixam saudades da época em que me deslocava para um local de trabalho era o “Bem-disposta?” com que me recebiam ainda antes de pousar pé no recinto – levando a crer que o modo como uma pessoa se apresenta, a sua forma de estar e de ser andassem ao sabor do vento, que sopra aleatoriamente numa direção ou noutra, e fosse preciso fazer medições cautelosas para os restantes adotarem a distância necessária durante o dia. Era a forma de nos dizerem que, se algo corresse mal, a razão não era outra além da má-disposição do culpado. Para quem gosta de dividir o mundo como os polos das pilhas, não haveria outra causa, mais substancial, para uma reação negativa do que a pessoa não se ter disposto como devia.

O mesmo quando vieram as “distâncias de segurança” e tentavam cumprimentar-me com o cotovelo. No dia em que decidi dizer não, obrigada, a pergunta que logo veio, “Acordaste maldisposta?”, ajudou a virar o resto que faltava de umas tripas que costumam portar-se melhor. Como se houvesse sanidade em andar a dar cotoveladas às pessoas e a evitar-lhes o bafo, com aquele ar gorduroso e pífio de “Chega-te para lá, mas somos amigos na mesma”. Também divido o mundo entre esses e os outros.

Há dias em que gostava de pousar a máquina das etiquetas, permitir uma certa desordem durante 5 minutos inteiros, misturar os preços, trocá-los até (arrepio-me só de pensar!). São as divisões que nos fazem sentir seres separados, saber onde começamos e acabamos, responder continuamente à pergunta “Quem sou eu?” na construção de uma identidade que se vai refazendo ao longo da vida. Acontece que tendemos a levá-las longe de mais. Eu levo: esqueço-me de como estar sem a labuta mental de rotular, dividir, embalar, como se não pudesse ser segura sem deixar de cartografar o território, e coisas e pessoas não pudessem mudar de categoria (não costumam, mas haja fé). Como se o mundo se desmanchasse se eu não lhe desse ordem.

Quando me visitam as vozes dos sábios realizados que passaram pelo planeta, soprando-me o seu neti-neti circunspecto (“nem isto, nem aquilo”), é impossível ignorar o fascínio das etiquetas fluorescentes e da máquina com um rolo novo já pronta a imprimir: de um lado, os iluminados; do outro, os remediados!

 

(A propósito de compulsões, aqui fica a torrente poética inspiradora de um obsessivo-compulsivo:)

23
Jun23

Mente que mente

Sónia Quental

A preto e branco - Madalena (03.12 (4).jpg

All these disturbances and thoughts are like rats in the home of peace, so you have to be like a cat.

H. W. L. Poonja

 

You can have ten thousand thoughts a minute, and if you don’t believe them, your heart remains at peace.

Byron Katie

   

           

A mente acorda queixosa. A vida vai torta, o mundo não gira como ela queria. A órbita da Terra é incerta e o controlo que exerce sobre ela é pouco. Os queixumes são a forma que aprendeu de regatear favores.

A mente acredita em si mesma, põe fé nos pensamentos. Ao menos esses são seus. Ou seriam, porque a mente ouviu um dia que não se deve acreditar neles. Fica perplexa. Pensa que, se os pensamentos acabam, ela acaba. E a mente não quer acabar.

Quer cobrar todas as promessas não cumpridas que alguma vez lhe fizeram, atirá-las à cara dos faltosos, banquetear-se de rancores. Quer continuar a compilar a lista de males sofridos, que já vai mais comprida do que a lista de livros que leu. Mas gosta de ambas, porque tem queda para listas e gosta de cultivar pequenas vaidades. Gosta de pontualidade e de clamar por justiça.

A mente é inflexível na sua recusa de perdão. Também não gosta de jejuar, mas pelo menos levanta-se cedo. Há vezes em que nem chega a passar pelo sono, porque tem muito que fazer, problemas a resolver, o apuramento de todos os comos e porquês desde o início dos tempos. Para ela, o mundo está sempre à beira do apocalipse. Um pequeno deslize, uma distração involuntária e tudo se acaba.

Quer acordar outro dia queixosa, discutir com a vida do nascer ao pôr do sol, ter a última palavra. A sua fome de mais nunca se aplaca, tal como a busca de responsáveis: os outros, a própria, Deus, o conformismo das massas. Deve haver alguém implicado em tudo o que vai mal, a quem possa pedir contas e obrigar a desfazer o que está feito.

A mente quer encontrar o vilão da história. Quer estar em todo o lado menos aqui, ser tudo menos contente. Acha que aceitar é conformar-se – calar-se, desaparecer. E a mente não quer capitular, ficar sem ocupação. Tem-se como imprescindível, narradora sem a qual a história não avança. E ela gosta de histórias e de protagonismo. Tem sempre desculpas para interromper o silêncio e fazer-se escutar. Caso contrário, faz birra.

Mesmo assim, o Amor vem para a abraçar. A mente emudece de pasmo.

 

Recorte de fotografia de: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0