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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

07
Jan25

Reler

Sónia Quental

- ou dos malefícios da leitura

 

When a person picks up a book to read, it is usually for some purpose: to while away an empty hour, for pleasure, for information, to find the answer to some problem, to fill an emptiness within, or to seek to understand the meaning of life. What is your purpose in reading this book?

 

         É com estas palavras que Lorraine Sinkler abre o prefácio da obra The Alchemy of Awareness, biografia de Joel S. Goldsmith, curador e místico do século passado – outro dos grandes autores largamente divulgados no Brasil, a que as nossas fronteiras editoriais ainda não deram passagem.

         As reflexões que tenho esboçado intimamente sobre o real valor da leitura, que encontraram um primeiro incentivo nas palavras de Sinkler e um eco de longa data nas de diferentes vultos do mundo espiritual, foram, uma vez mais, corroboradas por Theodore Dalrymple num dos últimos títulos dados à estampa: On the Ivory Stages. Neste compêndio de pensamentos inspirados pela leitura, o ensaísta britânico evoca três escritores que relevaram os prejuízos do excesso dela: Somerset Maugham, Aldous Huxley e Schopenhauer, o último dos quais achava que a leitura podia ser tanto um entrave quanto um estímulo ao ato de pensar. Do ensaio de Huxley, datado de 1936, transcrevo o trecho citado:

To a considerable extent, reading has become for almost all of us an addiction, like cigarette-smoking. We read, most of the time, not because we wish to instruct ourselves, but because reading is one of our bad habits… deprived of their newspaper or a novel, reading-addicts will fall back on… those instructions for keeping the contents crisp which are printed on boxes of breakfast cereal.

 

         A compulsão pela leitura, por inofensiva ou até vantajosa que possa parecer, como a compulsão por comer cenouras (mais saudáveis do que as bolachas, por exemplo), não deixa de ser uma compulsão: um impulso desregulado, uma fuga de si que é facilmente racionalizada e encorajada como vício benigno. Mesmo sabendo-se que nem todas as obras entram na gaveta das cenouras e que ficariam melhor no saco da farinha, a leitura adquiriu o estatuto de panaceia universal. A guerra no mundo é seguramente caso de subnutrição literária.

         Foi ao perceber que o intelecto não me bastava que a vontade de ler literatura definhou de um modo súbito e irrevogável – diria que dramático até, uma vez que, passados 15 anos, ainda me dói a bagagem que deitei fora. Descobri, porém, que o alimento intelectual é como o açúcar: não faz mais do que produzir picos no sangue, aportando pouco valor nutricional e logo se chorando da próxima dose. Não é dele que vem o conhecimento nem dele que a alma extrai os seus sucos. A minha começou a pedi-los com urgência, ainda que na busca intensiva a que me lancei poucos autores achasse que pudesse espremer ou que soubessem mais do que fazer malabarismos com palavras ou enredos. Mesmo que não os deixassem cair ao chão e que a tenda do circo fosse alta, estava longe de chegar. No máximo, dava para um recorde no Guiness.

         No início desta peregrinação desolada, que cedo recuou para a leitura não literária, tive a boa fortuna de encontrar o nome de Mirra Alfassa, artista plástica, musical e mística que sistematizou os princípios da Educação Integral, baseados nos ensinamentos do Ioga Integral de Sri Aurobindo. Na sua definição de arte, aquela que a posteridade ficaria a conhecer como “A Mãe” acentua distintamente: “A habilidade não é arte; o talento não é arte. A arte é uma harmonia e beleza vivas que devem ser expressas em todos os movimentos da existência”.

         Estabelecendo um paralelo entre os princípios fundamentais da arte e os do ioga, via em ambas as disciplinas a ligação a uma dimensão transcendente, ao serviço da autotransformação e da elevação da consciência. No nosso mundo evoluído, prostrado aos bezerros da ciência, da tecnologia e de um intelectualismo desvitalizado, esta noção são só se perdeu por completo, como não geraria mais do que um escárnio condescendente. Posso afiançar que não é o que se ensina nas universidades, que a única coisa que fazem é confundir e embotar as faculdades da alma.

         Respondendo à pergunta inicial de Lorraine Sinkler, leio acima de tudo para descobrir o significado da existência. Não há muitos que o tenham encontrado e que o saibam transmitir por palavras ou em forma literária, apesar de ser esta a linguagem que mais se presta ao que é da ordem do inefável. É por isso que, mais do ler em quantidade, me importa ler em qualidade e acima de tudo reler. Porque a leitura não é um fim em si, mas um caminho para mim mesma.

         Os mundos interiores não são presas dóceis, que se entreguem ao primeiro assalto. É preciso fazer muitas vezes a mesma viagem de ida sem regresso. No início, a maioria dos que se atiram à aventura vai de arrasto e, mesmo depois de ganhar lanço, avança com a lentidão de certos moluscos. Poucos são os saltos expressivos para a frente e para o alto, e apesar disso não há nada que se lhes compare. As obras de qualidade – as obras com profundidade – desdobram-se em camadas para nos acomodar em todos esses momentos, esperando com as suas janelas e quartos fechados para nos presentear com clarões inesperados, de paisagens que ninguém conhece.

         As obras dos verdadeiros escritores nunca acabam; os verdadeiros leitores nunca param de as reler. Não há tempo para mais.

 

 

 

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O erro dos artistas é acreditarem que a produção artística é um fim em si e para si mesma, independente do resto do mundo. A arte, tal como entendida por esses artistas, é como um cogumelo no vasto terreno da vida, como uma coisa fortuita e externa, não algo intimamente ligado à vida. Ela não alcança nem toca as realidades profundas e duradouras, não se torna parte intrínseca e inseparável da existência. A verdadeira arte tem a missão de expressar o belo em íntima proximidade com o movimento universal. As maiores nações e as raças mais cultas sempre consideraram a arte como uma parte da vida e a fizeram subserviente à vida. (…) Mas a maior parte dos artistas são como parasitas que crescem à margem da vida; não parecem saber que a arte deveria ser a expressão do Divino na vida e através da vida. Em tudo, em todo o lugar, em todos os relacionamentos, a verdade deve ser manifestada no seu ritmo omniabarcante, e cada movimento da vida deve ser uma expressão de beleza e harmonia. A habilidade não é arte, o talento não é arte. A arte é uma harmonia e beleza vivas que devem ser expressas em todos os movimentos da existência. Esta manifestação da beleza e harmonia é parte da realização Divina na terra, talvez mesmo a sua parte mais importante.

 

Mirra Alfassa

(Fotografia extraída daqui.)

21
Ago24

Confessionário

Sónia Quental

 

         A alternativa à glamorização da imagem nas redes sociais, que faz parecer que todos vivem de férias, a viajar, se alimentam de pratos exóticos e passam o tempo em aventuras radicais, é o momento do confessionário. É o nome que dou a quando alguém ouve falar nos atrativos da vulnerabilidade e decide experimentar, com a mesma tónica na transparência em que se empenhava até aí – com a diferença de que o que antes era a “transparência” enfeitada do hall de entrada é agora a transparência hiperbólica da cave de horrores.

         Afinal, nem tudo eram rosas. A pessoa não estava a ser autêntica, mas decidiu assumir aquilo que era, com todos os defeitos e descalabros que tentava esconder dos outros. Percebeu intimamente o charme de se afirmar derrotada, o brilho indesmentível da humildade que não quer parecer que é, mas prepara as conclusões para os outros. Agora, a postura é de contrição, sai tudo cá para fora, com baba, ranho e o voto de absolvição fervorosa do público de followers, cujo coração torce pelo ídolo e por este seu lado tão humano, que toca o lado humano de cada um. No fundo, não são tão diferentes assim.

        E no entanto… Esta prática emocionada e indiscriminada da “vulnerabilidade”, ao estilo reality show, deixa a mesma sugestão de fake do que as anteriores máscaras do poder - a mesma sugestão que sempre senti quando alguém tentava aplicar o esquema da comunicação assertiva, expressando sentimentos e necessidades com a intenção sub-reptícia da chantagem emocional.

         Desabafo agora eu, neste momento de vulnerabilidade mimética, a repugnância instintiva que senti quando encontrei uma publicação do professor espiritual Jeff Foster, que passava na altura por uma fase crónica da doença de Lyme, exteriorizando um pânico que várias vezes o tentou ao suicídio. O título da publicação era “Will you remind me of my own teachings?”, a única parte que senti honesta em toda uma ode à vulnerabilidade, à abertura, à autenticidade e à transparência – termos que se acompanham muito, mas que têm uma essência mal compreendida. Entre o elogio das virtudes de dar a conhecer sem vergonha o inferno por que passava, revelava que não queria morrer, embora às vezes também sentisse o desejo conflitante de morte. Desde o “There’s no shame in crying out to your God when you’re on the fucking cross” até à derradeira confissão (“The ‘Fuck it’ becomes stronger than the ‘Namaste’”), os palavrões vão pontuando a poesia deste que se desespera na perspetiva de dar de caras com a morte (introduzo já aqui o spoiler de que o autor em questão recuperou, se encontra bem e foi recentemente pai).

         Dois dos grandes avatares da espiritualidade do século XX e de todos os séculos, Ramana Maharshi e Nisargadatta Maharaj, morreram de cancro. Len-ta-men-te. O autodomínio que manifestaram é em tudo avesso à atitude que a publicação anterior deixa transparecer. Tiveram não só a dignidade de sofrer em silêncio, mas a capacidade de transcender a dor e o corpo. Quando procuro um professor, uma figura exemplar e conhecedora que me ensine a limpar a minha cave de horrores e a mudar-me para o andar de cima, não espero que essa pessoa seja como eu: espero que seja melhor. Mesmo que na condição humana não haja absolutos, há comparativos de superioridade. Por isso, espero-os um pouco mais invulneráveis do que eu. Espero que me mostrem aquilo que posso ser e não que tenha de ser eu a lembrá-los daquilo que ensinaram.

 

16
Ago24

Deus-Ikea

Sónia Quental

           

         A designação não é minha, mas de um artigo de Pedro Saraiva Ferreira sobre as novas espiritualidades que vieram substituir a religião – uma religiosidade de consumo, que o autor classifica como um “Cristianismo sem Cristo”, à imagem do Homem psicológico, que nasceu para ser feliz, indiferente à ideia de salvação. Guia-o uma busca pelo sagrado que segue o modelo “faça você mesmo”, à semelhança dos móveis do Ikea.

         A única coisa que tenho contra os móveis do Ikea são as arestas cortantes, as bicadas que às vezes dão e ter de pedir a outra pessoa para os montar. Não sou essa mulher emancipada que se diverte em noites de insónia agarrada aos hieróglifos de manuais de instruções e a dezenas de parafusos, peças, pecinhas e objetos de natureza incógnita, com uma pequena chave como varinha mágica, capaz de encaixar tudo no sítio.

         No entanto, serve-me a comparação para defender que, no que toca à busca do sagrado, não há como escapar ao DIY: cada um tem de redescobrir a roda, levantar a própria cama. Podemos formar comunidades, reclamar com o bot do atendimento ao cliente, pedir orientação a quem já montou a sua ou vai mais adiantado, mas serão sempre nossos os braços e as mãos, a irritação solene, a paciência ao limite, os momentos de epifania, as misérias, a glória.

         Quem faz questão de montar um móvel sozinho, sem os selos de autoridades externas, embalados em dogmas ossificados, não procura necessariamente os atalhos enganosos da autoajuda nem está preocupado com garantias de bem-estar. Tem como fito o Profundo, que quer conhecer e amar, um palmo de cada vez, na aspereza salgada da pele. Não anda em busca das "opiniões certas" que o colunista do Observador opõe à tentação do relativismo ou à fantasia das preferências pessoais – nem sequer lhe interessam opiniões, que não entram no túnel estreito que se vai abrindo com o peso do corpo no chão, os olhos sondando o céu, o punho esfolado de vontade.

         Não vejo Felicidade que não seja salvação.

 

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Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

16
Mai24

Donativos (in)conscientes

Sónia Quental

Most people who are cowards disguise their cowardice as morality, and they claim that their harmlessness, which is actually a consequence of their fear and inability to be harmful or to be dangerous, is actually a sign of moral integrity (…). 

 

Jordan Peterson

 

           

Quando não existe uma consciência efetivamente desenvolvida, é comum que ela dê lugar ao simulacro de comportamentos moralizantes, associados a formas de manipulação mais ou menos subtis. Uma delas é a prática dos “donativos conscientes”, em eventos a que os organizadores não querem colar etiqueta de preço, mas de que esperam arrecadar um incentivo monetário. É assim que o despretensioso pedido de donativo passou a carregar veneno no bico, instalando em quem doa a dúvida obstinada quanto à generosidade do seu gesto, envolvida num sentimento de culpa habilmente montado. Afinal de contas, não é o donativo que se acusa de inconsciência, mas a pessoa que o dá.

No entanto, como cada um tem um nível de consciência diferente, um donativo consciente pode divergir em igual medida, sem deixar de ser “consciente” para aquele de quem parte. O que se pretende com o qualificativo é, em última instância, sobrepor à dos outros a consciência de quem tem a iniciativa, com a sugestão vaga e omnipresente de um juízo moral a que poucos escapam, uma vez que o público pagante não é obrigado a adivinhar o que vai na consciência de quem recebe. A ideia insinuada é de que não se pretendem donativos “forretas”, com um limiar convenientemente difuso entre esse patamar e o da “consciência”, alçando-se quiçá às alturas da “magnanimidade”. Sem se pedir pagamentos ou valores explícitos, constrói-se assim uma imagem compassiva e investe-se no saldo positivo da balança do carma com um lavar de mãos providencial, em que tudo fica entregue à consciência alheia.

Como aconteceu no início desta década e não foi estreia recente, a acusação de inconsciência provém de quem conhece a palavra pela rama e oferece dela os exemplos mais clamorosos. Num mundo moral em ruínas, em que as máscaras da consciência são tomadas de empréstimo, ganha quem vestir o melhor disfarce. Os donativos conscientes são candidatos ao prémio.

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Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

28
Fev24

O lado negro da espiritualidade

Sónia Quental

Não sei precisar quando o conceito de “ego” entrou na moda nos meios espirituais e todos passaram a contar como o “seu” ego tinha feito isto e aquilo com toda a autonomia, num estranho exercício dissociativo que o transformou numa espécie de animal de estimação, separado do indivíduo que assim se expressava. A pessoa que falava parecia desempenhar o papel de mónada iluminada que descia por instantes à Terra para censurar o mau comportamento da mente que tinha ficado a animar aquele corpo, presa a tendências retrógradas que não eram de sua responsabilidade.

Nos grupos que tratavam o trabalho espiritual com marcada austeridade, o desconforto era constante, porque a tendência a vigiar o ego tinha planos de expansão e não se ficava pelo próprio: precisava de vigiar também o dos outros. Assim, a pessoa dita “consciente” tinha de andar em contrição permanente, com a culpa do pecado original gravada na testa, o semblante grave e os ombros curvados, não fosse alguém acusá-la de caminhar demasiado direita e querer amestrar-lhe o ego, lembrando-lhe todas as suas projeções, compensações e programações herdadas.

Debbie Ford, uma das autoras que trouxeram à ribalta o trabalho com a sombra, publicou no final dos anos ’90 o livro The Dark Side of the Light Chasers, em que expunha as pretensões dos "trabalhadores da luz", chamando a atenção para a importância da integração de todos os aspetos do Eu. Não seria um livro que Ramana Maharshi tivesse escrito, mas abriu espaço a outras vozes, que preferem trabalhar mais perto da terra, convidando-nos a sujar as mãos, a voltar ao corpo e a deixar de castigar o ego por crimes presumidos. Duas delas são as de Amoda Maa e Miranda Macpherson, que reconfiguraram a espiritualidade pela rendição do feminino – e não há como passar ao lado de Mātā Amritanandamayī Devi, ou simplesmente Amma, a propósito de quem, no documentário Darshan: The Embrace, alguém que se sentou perto dela durante as horas intermináveis que passa a abraçar pessoas dizia ter sentido que o tempo deixara de existir.

There were times (...) when I was just like any other woman (...) at times feeling like a traumatized animal shivering on the floor. All of the models of spiritual realization I had worked with previously, which had been delivered through the masculine lens only, might have viewed my process as a failure to remain in the no self-state. However, the transmission of ego relaxation revealed a much more integrated, feminine approach to walking the path – to surrender in and through all that we encounter, including our animal humanity and all of our emotions.

Miranda Macpherson

 

De minha parte, recordo como, depois de vários dias de um curso de terapia alternativa que fiz em Madrid, o momento que mais me tocou foi quando o motorista do transfer que me levou do hotel para o aeroporto me contou o segredo da felicidade. Era um domingo de Páscoa e o atraso do avião fez-me lamentar a conversa abreviada pela pressa.

À semelhança dessa experiência, aprendi mais sobre espiritualidade a dançar do que a estudar teosofia. Conheci mais de perto o amor no olhar daquela monja do que em qualquer palestra que tenha ouvido. Ensina-me mais quem ocupa uma caixa de supermercado, as pessoas que vejo trabalhar com energia e alegria, sem contar os dias que faltam para chegar a sexta-feira, a professora que repara em quem não foi à aula e quer saber o que lhe aconteceu.

Foi talvez o mesmo que levou os reclusos, na última sessão de formação que dei no estabelecimento prisional masculino de Custoias, a entrarem na sala antes da hora, encurtarem o intervalo, com a formalidade voluntária da fila indiana, e fazerem em silêncio tudo o que lhes pedi, declarando finalmente o carinho que tinham por mim. Não que tivesse sido branda com eles (pelo contrário): era que me importava, e eles tinham-no testado vezes suficientes para se convencerem disso.

Nos dias que correm, mesmo que ainda não tenha largado a minha máquina de etiquetas e continue a fazer separações, nem todas essenciais, posso dizer que uma das que deitei fora foi a que dizia “espiritual/não espiritual”. Aprendi a deixar os intelectualismos de lado e a tomar posse de mim e da vida. Divisão por divisão, em vez de fustigar o ego, escolho dançar com a sombra que projeta. Acho graça quando me calca os pés: a sintonia é plena.

 

 

25
Out23

Outra vez a maçã

Sónia Quental

Dizem que o diabo mora nos detalhes. Acho que me cruzei com ele por lá. No relativismo moral reinante, que nos urge a velarmos pelos nossos interesses sem escrúpulos de maior, inquietam-me as escolhas que podem fazer-me derrapar por entre as fendas da consciência. Não alimentar expetativas, não cobrar, não julgar, ser tolerante e flexível, esperando gozar da mesma flexibilidade enquanto faço o que me dá proveito, sem que possam pedir-me contas ou sequer apontar-me dívidas.

À mínima oportunidade, a serpente levanta a cabeça, convidando-me a trincar a maçã. E ei-la que reluz, coberta de pesticidas, num cabaz com o rótulo “orgânico”. Parece que tenho passado a vida a contemplar a dita maçã, mas agora a serpente reuniu claque e eu fiquei sozinha a defender a árvore. A pressão aumenta. Em volta, veem-se cartazes de gente feliz agarrada à sua fruta. Faz bem aos dentes, dizem, irradiando a brancura dos sorrisos de satisfação. Prazer sem limites condensado numa mera maçã. O cabaz traz um Adão, 30 dias de avaliação grátis e benefícios premium.

Eu também quero irradiar! Quero um Adão no meu cabaz, que me pegue ao colo sem esforço e me diga que não preciso de mudar. Só tenho de facilitar e deixar de ser o pomo que gera a discórdia. A minha vida será mais simples – saem todos a ganhar! Na verdade, estarei a ser egoísta se não comer a maçã. Vai cair ao chão, estarei a desperdiçar. Serei culpada da miséria que passam os meninos em África. Quem lhes dera uma maçã igual àquela, ali à mão de semear. Se não for por mim, por eles. É pecado não comer a maçã. É o alimento do futuro e já traz a larva incorporada. Posso fazer criação e não terei de pensar mais em comida. Serei ingrata se não aproveitar.

Se comer a maçã, estarei a dar prova de desenvolvimento social. Moral é para as avozinhas. Aqui, o único absoluto é o bem coletivo. Na verdade, a maçã guarda o segredo da juventude eterna. Basta uma trinca…

Por entre o atordoamento, noto: estão uns fones ali ao lado, objeto mágico deixado por Deus ou apenas a desculpa ideal. Ao aplicá-los, ouço: “Uma maçã nunca é só uma maçã”. Nisto, a serpente cai da árvore. Ponho-lhe o pé em cima e empoleiro-me num ramo antes que a Liga dos Direitos do Animal acuda.

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Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

10
Set23

Insuflável

Sónia Quental

A maioria das pessoas parece adulta, mas na realidade não o é. Emocionalmente, a maioria continua a ser criança. (….) Na maioria das pessoas, vive uma criança que está simplesmente a imitar um adulto. A ‘criança interior’ de que tanto ouvimos falar não tem nada de interior; na realidade, é bastante ‘exterior’.

 David R. Hawkins 

 

A real piece of art is a window into the transcendent. (...) And, unless you can make a connection to the transcendent, you don't have the strength to prevail. 

Jordan Peterson

 

 

A caminho de casa, passava há dias pelas festas do Bonfim quando me chamou a atenção o insuflável ao lado da igreja. Achei-o talvez acanhado face às dimensões do edifício, que deve atrair menos fiéis do que o divertimento infantil.

A relíquia religiosa e o destom do kitsch ocupando, em contraste, a mesma paisagem afiguraram-se-me como mais um sintoma do zeitgeist, em que a Humanidade aparenta ter regredido ao estádio locomotor-genital do desenvolvimento psicossocial – ou isso ou perdeu simplesmente o bom gosto. Parece-me provável que aquele seja o real destino das romarias, que já não louvam a Deus, mas procuram as profecias do ChatGPT, pitoniso moderno de altares de plástico, onde é permitido andar de meias e as costas não sofrem como nos bancos de igreja.

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Assim é o sopro da fé: insuflável, ou wearable, como se diz agora. Aparece com o papa e desaparece com ele. Incha, desincha e passa. Quando o festival acaba, arrumam-se as tendas e regressa-se à normalidade, com os uivos erráticos das novas Gretas a disputar os holofotes ao papa.

Estou a pensar em enviar um requerimento à junta para no próximo ano fazerem uma rampa para trotinetas, para facilitar ainda mais o acesso e o insuflável poder exibir o rótulo A+++ da inclusão. Desconfio de que a popularidade tornará redundante a igreja, que, verdade seja dita, não tem os azulejos da Capela das Almas, que a tornem instagramável ou lhe deem relevância turística, nem pode ser convertida em alojamento local, correndo o risco de passar a imóvel devoluto, sujeita a arrendamento compulsivo.

Pelo menos, há um insuflável ali ao lado, onde Deus pode procurar refúgio, se não se importar de partilhar dormida com o oráculo da IA, com quem poderá ter as conversas filosóficas a que as beatas estariam menos aclimatadas. Pode ser que aceitem competir numa corrida de drones e que, desqualificados os humanos, seja Deus o favorito, quanto mais não seja porque o papa, ainda que amigo de todos, joga na mesma equipa. Aceitam-se apostas. O arraial está montado, faltando apenas confirmar a presença de Lio, o robô dançante do Bolhão, que fontes não oficiais garantem estar a preparar uma performance interativa e um workshop de coreografia. O pão de ló já se vende à porta, presume-se que feito de ovos sem crueldade animal.

 

 

What is beauty? What is missing? What causes the profanity and the ugliness to pervade our culture? I would say that it is the loss of the ability to see the invisible within the visible. (...) we don't see that light shining within one another that is our invisible beauty.

Shunyamurti

 

 

17
Ago23

Valha-me a meia de leite

Sónia Quental

 

Gnosis is a moving target. Walking its path is a nomadic life. When night falls, you pitch your tent. In the morning, you pack it up, put in on your back and start walking again. Don't pitch it anywhere permanently. Be the infinite explorer.

Neil Kramer

 

 

Ouvi mais de uma vez pessoas que trabalhavam em cafés ou padarias fazerem comentários de desabafo sobre os hábitos dos clientes regulares. Exasperava-as que a mesma pessoa tomasse todos os dias o mesmo pequeno-almoço, a mesma meia de leite com o que quer que fosse a acompanhar, apesar da variedade de opções em oferta. Os motivos não são tão elementares quanto possa pensar-se, embora nem sempre sejam conscientes.

Os hábitos, por mais pequenos que sejam, são âncoras num mundo de incerteza e insegurança. Falando por mim, que convivo há muito com um grau de incógnita robusto: quase sempre, como trabalhadora independente, não me é possível saber se daqui a um mês vou ter trabalho ou ordenado, o que dificulta fazer planos. A ansiedade e o desgaste que esta situação vai naturalmente gerando ao longo dos anos são amplificados pela falta de uma estrutura familiar e afetiva de apoio. Somam-se as mudanças que vêm de fora, da sociedade, e as que irrompem de dentro, ditando-me viragens de rumo que me cabe apenas pôr em marcha. Uma consciência que não vive petrificada exige um sacudir de pele constante, um nunca pousar a cabeça duas vezes no mesmo leito.

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No meio disto, o que me vale é a meia de leite ao pequeno-almoço. Pode não ajudar a tornar mais interessante o dia de quem a serve, mas é das poucas coisas a que ainda me posso agarrar, tirando quando fecharam cafés e postigos. Aí, nem meia de leite havia.        

Acresce que a quantidade não simplifica a escolha. Quando há muito por onde escolher, a confusão é tanta que quase sempre se escolhe errado, a que se segue o arrependimento pela oportunidade perdida de tomar aquilo de que se gosta garantidamente. Alivia ter-se pelo menos uma preferência em que não é preciso pensar, que é imediata e não atraiçoa. Um pequeno prazer certo entre os tantos que falham.

Há ainda o conforto de ir a um estabelecimento onde se é conhecido. Ter alguém que sabe o que queremos e como gostamos de o tomar, sem ter de perguntar. A comunicação silenciosa e conivente que se estabelece num sítio que não é casa, mas que se torna um pouco mais como casa e que às vezes nos mima com rabanadas fora de época.

Mau grado os argumentos, sei que chegará um dia em que até este apego terei de deixar. Até lá, valha-me a meia de leite.

 

 

Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

24
Jul23

Realidade horizontal

Sónia Quental

Most of humanity lives in a horizontal reality (…).

Amoda Maa

  

And, in this sense, mainstream culture has one aim, one single aim: to erase God from our cosmology. To despiritualize you, to have you deny Truth, honor, divinity. You are gaslighted until these things begin to no longer have any real meaning anymore.

Until they no longer exist.

Neil Kramer

 

 

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A noite escura da alma não é escura: é cinzenta. Assim também a noite do mundo, que mostrou o cenho há três anos e pôs a nu as feições escabrosas de cada um.

Quando o impensável acontece e a demência toma conta das multidões acéfalas, é com intensa sede e escassa ventura que se procuram indivíduos eretos, que não tenham abandonado a integridade e a coragem e que alumiem a opressão de um eterno março. O espaço torna-se ainda mais confinado quando não se vê seres com alma, mas corpos reduzidos à sua condição animal, movidos por um instinto de sobrevivência disfarçado de moralidade e de preocupação com o bem comum, a condizer com o açaime grudado à pele.

Nesse março que nos desnudou, houve aqui e além vozes no crepúsculo que impediram que sucumbisse à loucura quem a encontrou na distopia instalada, unindo numa comunidade espiritual geograficamente dispersa pessoas que se descobriram subitamente sós – sós em família e logo sem família, sós entre presumidos amigos, colegas e desconhecidos. Uma dessas vozes foi a de Neil Kramer, professor de esoterismo no Omega Institute, em Nova Iorque, que explora no seu trabalho a relação entre a espiritualidade e os fatores sociais e culturais que moldam o nosso quotidiano – uma voz que restaurava à distância, nos seus roamcasts, a lucidez que a dissonância cognitiva fazia vacilar.

Não se trata apenas da bizarra trama de acontecimentos desencadeada em 2020, mas de toda a programação cultural e política que a sociedade vem metralhando como pus pestilento e que inoculou a mente superficial e infantilizada dos novos ativistas. São as identidades de género e a confusão deliberada da identidade sexual, a promoção aberta da homossexualidade e a sexualização das crianças, os delírios de masculinidade tóxica e de racismo, a retórica da inclusão baseada na entronização das vítimas e das minorias, o controlo centralizado, a censura descarada, a vigilância galopante e intrusiva, a proteção do público à custa da erosão do privado, a supressão de direitos e liberdades básicos, o primado da tecnologia, a distorção e apropriação ideológica da linguagem, a demonização do (discurso de) ódio, a difamação da faculdade de julgar, a ameaça e instrumentalização do aquecimento global, as teorias do relativismo, a mentira institucionalizada que a tudo subjaz, os cavalos de Troia do coletivismo e dos lemas socialistas, …

Is the sharp focus of truth sometimes divise, sometimes judgmental, sometimes offensive? Yes. (…) Division is necessary, so you can see the distinction between true and false, the clear line between the two. (…) So, it’s sometimes important to be offended, so that you will feel your error, experience the dead weight of your wrong conceit. None of these things can hurt your soul – they only rattle the self.

Neil Kramer

 

Quando se pensa no apogeu civilizacional, o ser humano regride em consciência, tornando a perda da profundidade cada vez mais ostensiva, alheado à debilitação intelectual e humana que decorre do seu empobrecimento espiritual. Ou, como lhe chama Neil Kramer, da eutanásia espiritual cometida, resultado da escolha de viver numa realidade horizontal, de que Deus foi omitido, e da ignorância ativamente cultivada sobre o que possa existir para lá do funcionamento mecânico do corpo do Homem e das forças que movem o corpo da Terra.

No mapa da consciência traçado por David R. Hawkins, a coragem é o primeiro nível de Verdade, vida e poder. Todos os anteriores (da vergonha ao orgulho, passando pelo medo), correspondendo a um paradigma de sobrevivência, são antivida e estão do lado de uma energia estéril, orientada para o falso e o destrutivo. 

Numa sociedade cega, quem protesta porque ainda consegue ver a luz é encarado como um antipatriota, iconoclasta, psicótico ou cobarde, uma ameaça ao sistema estabelecido. A não aceitação das ilusões socialmente dominantes é considerada perigosa e subversiva.

David R. Hawkins

 

Porque março não acabou, ainda são precisos fachos que não se deixem intimidar e que emprestem a voz à Verdade, no meio da névoa por vezes desesperante da alienação generalizada, dispostos a dar o exemplo e a sofrer as consequências, se necessário, com um espírito que não busca reconhecimento, mas se recusa a escolher a passividade face à ação concertada do Mal.

Felizmente, a união só faz a força quando tem raízes na Verdade. É por isso que os poucos conseguem suportar o peso dos muitos e é graças a esse equilíbrio precário que o mundo, já sem norte, ainda não perdeu a órbita.

Spiritual life begins with the silencing of the sleep song. (...) You will grieve, yet you will be liberated; you will be lonely, yet you will find belonging; you will be empty, yet you will be filled with light. The more silence, the more His Spirit indwells.

Neil Kramer

Bob Moran.jpg

Cartoon de Bob Moran

(aqui em memorável entrevista)

 

Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

28
Jun23

Capuchinho Vermelho, a floresta e o caçador

Sónia Quental

A abraçar árvore (2).jpg

Muitos são os educados, mas poucos os iluminados.

David R. Hawkins (psiquiatra)

  

O facto de milhões de pessoas partilharem os mesmos vícios não os transforma em virtudes; o facto de praticarem os mesmos erros não os transforma em verdades e o facto de milhões de pessoas partilharem a mesma forma de patologia mental não as torna mentalmente sãs. 

Erich Fromm (psicanalista, sociólogo e filósofo)

 

 

Era uma vez o Capuchinho Vermelho. Vivia numa pequena casa, situada numa pequena aldeia, na orla de uma grande floresta. Ninguém conhecia bem a floresta nem sabia o que havia do Outro Lado, porque era território interdito e só um caçador autorizado podia aventurar-se arvoredo adentro, desde que respeitasse os limites do município. O caçador tinha de ter licença da Câmara e de ser um especialista reconhecido e certificado pela Associação Mutualista e Inclusiva dos Inimigos do Lobo Mau.

O Capuchinho Vermelho tinha uma curiosidade natural e queria saber o que havia na floresta e, quem sabe, atravessar para o Outro Lado. A mãe, naturalmente protetora, dizia-lhe que só pela mão de um caçador certificado. Eram especialistas com direito a posse de arma, que conheciam as melhores clareiras da floresta e sabiam recitar os nomes das árvores em latim, mas desconheciam o que havia do Outro Lado. Faziam apenas excursões turísticas, para distrair a mente e aliviar o stresse, e deixavam as pessoas tirar fotografias com o telemóvel. Iam e vinham dentro dos limites decretados, mas nunca tinham estado do Outro Lado e, na verdade, pouco uso tinham dado à arma.

Não se conhecia quem tivesse passado para o Lado de Lá (como também lhe chamavam), mas corriam rumores de loucura e ruína transmitidos de geração em geração, dissuadindo os curiosos de se aventurarem no desconhecido. O Lobo Mau era o malfeitor de algumas dessas lendas, de que não restavam sobreviventes para fazer um retrato-robô, por isso a sua identidade e paradeiro permaneciam incógnitos.

 

Este quase que podia ser o enredo do filme The Village (2004), que muito recomendo, e uma alegoria do artigo “O lado sombrio do Zen! Quando a meditação se torna perigosa”, de João Ereiras Vedor, que, se quiséssemos resumir ainda mais, podia caber no provérbio “A curiosidade matou o gato”.

É um texto que escorrega bem, com muitas fontes bibliográficas e escrito com boas intenções, mas cujas ideias considero descabidas. Citando Adyashanti, autoridade reconhecida em meditação: “A verdadeira meditação não tem direção, objetivos nem método. Todos os métodos têm como objetivo alcançar um determinado estado de espírito. Todos os estados são limitados, impermanentes e condicionados” (in True Meditation). Depois de começar por tentar aplicar técnicas e seguir a disciplina do budismo zen, Adyashanti descobriu a meditação autêntica quando se libertou delas. A tónica deste livro aponta precisamente para a importância de se desistir das tentativas de controlar a experiência meditativa e abdicar de todas as formas subtis de manipulação para se abraçar uma inocência intrínseca: “Como é que o controlo e a manipulação podem conduzir-nos ao nosso estado natural?”, pergunta.

Claro que aqui, como sugere o título, se fala da verdadeira meditação, que não é um exercício que se procure para desacelerar o pensamento, controlar as emoções ou aliviar problemas psicológicos. É um repousar no Outro Lado da história do Capuchinho Vermelho, que muitas vezes nos faz confrontar com as sombras e os perigos da floresta. É por aí o caminho e não há atalhos nem “especialistas” que possam desbastá-lo por nós.

Que haja quem se aproprie da meditação com objetivos mercantilistas e corporativos inescrupulosos, como propõe João Vedor, certamente que sim – o que não lhe retira valor. Também de Cristo se faz há milénios toda a espécie de apropriações e distorções, encontrando-se a sua hipotética imagem estampada em muitos artigos de merchandising, o que não me parece que faça do próprio uma fraude ou nos obrigue a confiar-nos a uma instituição religiosa ou a um "especialista" para validar a autenticidade de uma experiência epifânica.

Aproveitando o paralelismo legítimo que o autor de “O lado sombrio do Zen!” faz com a oração, as suas advertências em relação à meditação, que considera mais perigosa por não ser herança nossa, seriam o mesmo que dizer a alguém para não orar sem a devida técnica, porque podia sofrer um desarranjo emocional ou ter um arroubo místico incontrolável que só a técnica seria capaz de evitar. Aliás, a sugestão de que as sensações físicas e psíquicas provocadas pela meditação e pela oração se reduzem a efeitos neuronais é particularmente insidiosa e característica de uma ciência materialista, que identifica a mente com o cérebro, classificando certos estados “alterados” de consciência como de “desconexão com a realidade”.

Já quanto ao apontamento histórico sobre a introdução da meditação no Ocidente e o seu desenraizamento, vale a pena lembrar que um dos hippies que impulsionaram o movimento, nos anos '60, foi Ram Dass, professor de Psicologia em Harvard, que também estudou os efeitos terapêuticos das substâncias psicadélicas e fez, sim, a sua viagem de busca existencial à Índia, que não durou apenas um mês e lhe deu ocasião de conhecer Neem Karoli Baba, que mudaria profundamente a sua vida e a orientação do seu trabalho.

 

Como contraponto aos exemplos clínicos apresentados por João Vedor no seu artigo, refiro o caso do escritor Paul Levy, internado pelos pais, diagnosticado como psicótico e acossado pelo sistema psiquiátrico, que reforçou o seu trauma de vida, revelando um lado sombrio da psiquiatria que merece toda a exposição que recebe nas suas obras – particularmente, em Dispelling Wetiko e Awakened by Darkness. Aí se lê que “(...) num verdadeiro despertar espiritual há frequentemente uma conjugação de fatores saudáveis e patológicos” que é preciso integrar: “A iluminação não é apenas ‘ver a luz’; ver a escuridão também é iluminação”.

A sua experiência com a psiquiatria é descrita como uma forma de abuso de poder e de violência disfarçada de amor, exercida por profissionais que desempenham o papel de sumo sacerdotes de uma religião científica moderna, o que a minha experiência confirma. “Na verdade, para a maioria dos psiquiatras, não existe sequer o conceito de um campo de consciência subjacente a tudo. A consciência é antes entendida como algo que surge da matéria e que, portanto, pode ser manipulada através de meios materiais (…)”. Noutro passo: “Enquanto estive no hospital, dei por mim numa situação absurda: estou no meio de um despertar espiritual que mudou a minha vida, enquanto os médicos me interrogam sobre a minha perceção da realidade para perceberem se estou louco. (…) Isto faz-me lembrar uma frase de um e-mail que recebi há alguns anos, em que a pessoa escrevia: ‘Quando disse à minha psiquiatra que achava que a minha missão neste mundo era espalhar a mensagem do amor, ela receitou-me um antipsicótico’”.

 

Para finalizar, apesar da maior apetência pela meditação “verdadeira”, tal como atrás descrita, que não tem um caráter utilitário nem é subserviente a um consenso social e pseudocientífico de realidade, em nada me incomoda quem a tenha como passatempo ou trivialize. É nos passatempos que se descobre paixões e por vezes se tropeça em vocações. Às vezes, há alguém que ganha ganas de chegar ao Outro Lado e, para pasmo de todos, chega mesmo.

Não há verdadeiras descobertas dentro dos limites do conhecido. A técnica não só não nos livra de perigos, como nos inibe, consolidando uma versão acanhada e contrabandeada do Real. Antes viver neste com um surto “psicótico” do que anestesiada no quintal da Carochinha.

 

Perceber tudo como um não é um estado alterado de consciência. É um estado inalterado de consciência; é o estado natural da consciência. Comparativamente, tudo o resto é um estado alterado.

Adyashanti

 

 

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0