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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

09
Mar24

Antiperfil

Sónia Quental

A primeira coisa que tens de saber é que não gosto de viajar (nem gosto nem deixo de gostar). Dificilmente me verás numa fotografia com uma paisagem exótica em fundo ou um copo de vinho na mão, nalgum evento de fim de semana que me realce o intelecto, como o louro realça os olhos de certas mulheres.

Já agora, a minha cor preferida é o azul. Deixo os outros campos por preencher, porque não gosto de me divertir nem de ir ao cinema. Tenho as noites livres. Não faço escalada, evito sair. Não finjo ocupação, exceto quando batem à porta, nem demoro a responder para criar mistério e intriga.

Não uso um estilo conversacional barra amigável, como mandam os visionários da língua. Escrevo formal, sem abreviar, com mais de uma sílaba quase sempre, sinais de pontuação que não a vírgula ou as reticências, e chego a fazer frases completas, que ocupam duas a três linhas. Não me peças para desenhar nem esperes que descomplique. Vou ignorar todos os “lol” que me atires e acabar com “P.S.” em catadupa, fingindo que ainda escrevemos cartas e que elas podem chegar ao fim.

Se procuras flexibilidade e leveza, desde já te digo que não somos compatíveis. Nem nas aulas de ioga consigo e não é por falta de querer. Dizem que o que é preciso é força de vontade, querer muito uma coisa e tudo se faz, mas até nisso pendo para o lado mais estreito da curva de Gauss.

Assertividade não é comigo, paixões e sonhos podes riscar da lista. Vou a caminho da tabula rasa: já não era alta quando nasci e fui mingando cada vez mais. Tenho o meu quê de impressionável e a história da Polegarzinha deixou marcas. É essa a meta que quero atingir: ser a mínima pessoa.

Não é que não beba socialmente: nem bebo nem socializo e se há coisa que não faço é conversa. Nunca me apanharam no clube dos Amigos do Amigo e preconceitos tenho muitos, graças a Deus. Faço julgamentos todos os dias, entre os abdominais e o pequeno-almoço, e o mais sexy que já me chamaram foi nerd.

Se leste até aqui, deves calcular o final: não me interessam aventuras. Sou tão séria que nunca saberás se estou bem ou maldisposta. A única coisa que prometo é deixar-te a adivinhar. 

 

P. S. O signo é Gémeos (não está aberto a debate).

 

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Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

27
Mai23

Nem sempre vive o que merece viver*

Sónia Quental

*Resposta ao anúncio “A penalidade da liderança”, publicado em 1915 por Theodore F. MacManus, copywriter da Cadillac, e considerado por muitos um dos melhores de sempre.

 

Fundo branco (2).jpg

 

Hate is so crucial, so important in life. (...) The Empire doesn't want you to hate because it doesn't want you to feel.

Neil Kramer

 

No one can be a good person without integrating their capacity for aggression. 

Jordan Peterson

 

 If you express that which is true, you will also become true. 

Murdo MacDonald-Bayne

 

 

O líder não precisa de defender a sua obra e certamente não replica as ideias do vulgo. O líder não dá lições de liderança.

Erro apressado achar que, quando a crítica é destrutiva, o mal está no crítico e não na obra visada. Se ela não se presta à remodelação nem os atavios lhe lavam a cara, há que deitar abaixo para construir de novo, já que a fachada não se sustenta por si.

Vaidade é achar que apenas a inveja move o ódio ou a crítica e que ela confirma o “génio” do alvo. Que só o que é grande indigna e que os indignados são ressabiados ociosos.

Omissão é consentimento. Deixar de dizer que o rei vai nu é patrocinar o desfile. A Verdade não precisa de arautos para ser verdadeira, mas para ganhar terreno à mentira.

Cego é o que entende o amor a ela como despeito pelos feitos de grandes homens. Desonesto, entender a Verdade como julgamento ou ofensa e castigá-la socialmente, legando-a a uma subjetividade sempre discutível. Quando um líder entra na demagogia, rebaixa-se à posição de político.

Não, nem sempre vive o que merece viver nem é a capacidade que os séquitos emulam. O mérito foi engolido pelo partido da igualdade e a glorificação da mediocridade. Quando deixa de ser critério de reconhecimento e a qualidade se confunde pela aparência, há que expor o miolo da mentira.

Qualificar os críticos de haters é querer calá-los sem os ouvir. Suprimir o ódio dos sentimentos aceitáveis é viver amordaçado e narcotizado. Não conhece a paz quem não abraça o asco, último suspiro do sonhador, romantismo desolado do amador que não trocou a sensibilidade pelo entorpecimento das turbas. Quem odeia ainda não se tornou indiferente.

Talvez um dia haja uma massa crítica de haters que seja o adubo para o amor medrar. Até lá, é preciso lembrar que liderança não é estar em primeiro lugar nem à luz dos holofotes. Tão velha como o mundo é a adoração de falsos ídolos e a contrafação do valor. É por isso que este* anúncio de líder é pura cantiga de vendedor.

 

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0