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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

24
Out24

Mamilos de luz

Sónia Quental

 

         Dizem que é nos momentos de descompressão, em que desviamos o pensamento do foco, que a inspiração se infiltra. Foi num desses intervalos da seriedade que resolvi investigar algo que me intrigava com uma certa persistência: os mamilos de luz. Em páginas de fotografia do Instagram, tinha-me deparado várias vezes com imagens de nudez explícita em que a única parte do corpo coberta era o mamilo da mulher. Sendo inegável a dificuldade que sinto em descodificar o significado oculto das tendências, só mesmo a repetição do fenómeno em páginas diferentes deu forma à hipótese perplexa: será que deixa de ser nudez se o mamilo estiver coberto??

         Constatei a seguir que alguns, em vez de luz, projetavam sombra; outros mudavam de expressão com as caras dos emojis; outros ainda davam flor. Interroguei-me se a escolha seria preferência da modelo ou do fotógrafo. Nunca me lembrei de perguntar aos meus com que disposição estavam, mas este era apenas o início de uma aventura temerária no mundo dos mamilos, onde entrei com passo hesitante, um olho fechado e o outro aberto, até chegar ao ponto de retrocesso, sob pena de me perder para sempre se continuasse a adentrar-me nos arcanos deste universo paralelo.

         Antes de lá chegar, porém, partilho com os curiosos os resultados lácteos deste empreendimento, que me fez saber que havia um movimento de libertação dos mamilos, uma descoberta que, a rigor, foi dupla: não só soube que havia quem estivesse a lutar pelos mamilos, como captei por inferência que eles estavam presos (a inteligência voltava a ganhar tração). Bastou esse pretexto para se abrir um daqueles instantâneos em que a vida nos passa diante dos olhos, fazendo-me apreender toda a distância – ou, como hoje se diz, “desconexão” – que havia entre mim e os meus mamilos.

         Ainda a pensar em como reatar diálogo, o motor de busca pôs-me diante dos olhos o debate gerado por eles, que jornalistas, vigilantes e burocratas encaravam de um ângulo aparentemente mais óbvio e essencial do que o meu: a polémica em torno da regra de cobrir os mamilos nas redes sociais estava na discriminação em que se baseava. Porque se havia de cobrir os mamilos da mulher quando os dos homens se empinavam livremente e sem qualquer pudor? O debate adensava-se e tornava-se mais feroz quando nele entravam os arautos dos novos géneros e das passagens indeterminadas entre eles, acusando uma visão binária que se refletia em políticas pouco inclusivas, que punham em causa os direitos humanos. Quando é que se devia cobrir o mamilo, e quando é que não se podia, e o mamilo de quem?...

       Foi aqui que notei que já não estava a descomprimir, mas a comprimir. A inspiração sempre espremeu alguma coisa, mas, com tanta informação, fiquei com medo de ir dormir, não por causa do escuro, mas dos faróis que se acendessem por vontade própria.

 

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Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

02
Out24

Curvas

Sónia Quental

Our bodies are not designed to follow straight lines.

Angela Farmer

 

 

         O corpo expressa-se por linhas curvas. Conhece bem o ataque de retas e vértices, o castigo requintado de ocupar uma pose que não é a sua. O corpo não quer fazer acrobacias: quer ir para o chão amolecer dores incrustadas. Quer esticar-se, torcer-se e destorcer-se, moer devagar a recusa com que se fecha. O corpo conhece o cuidado que as aberturas pedem: a escolha certa do grau certo no momento exato. Fera subtil, não obedece a mandos. Sabe o que quer e o que talvez queira, mapa da memória que só quem não sabe atravessa a direito. Conhece melhor a sua astúcia do que quem o açoita, regime marcial em rotação contínua, vinte flexões e outras vinte e ainda não chega. Senhor dos seus ouvidos e só depois do nariz, o corpo reage à brutalidade que o agride, quebra o molde e vai embora.

 

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Fotografia: 2024 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

08
Jun24

Expulsos do Paraíso

Sónia Quental

Como o cão, minha língua ladrava

à aterradora beleza.

 

Adélia Prado

 

One thing is certain: beauty has a holy vibration.

 

Zan Perrion

 

 

Quando vejo a democratização da moda, não me sinto representada: sinto-me expulsa do Paraíso. A reprodução do meu corpo real numa campanha inclusiva, aberta à diversidade dos padrões de beleza, estende-me um conforto temporário, que percebo trémulo e logo tomado por uma repulsa insidiosa.

A onda solidária de celebridades que expõem a celulite no Instagram também não me faz sentir mais próxima delas nem vê-las como mais humanas. Pouco me afrouxou os complexos: é só mais uma manifestação da sordidez que procura a infatigável ribalta.

Expor corpos reais, mostrar as pessoas “como são” é de uma nobreza que rápido oxida, com a doutrina da aceitação facilmente se convertendo no cânone da complacência, descartando como supérflua a atitude reverencial que a beleza evoca até em quem não tem fé. É, pasme-se, o efeito transfigurador da beleza que afinal chama à inclusão.

Quando me vejo fisicamente representada pelas marcas que abraçam a diversidade, sinto-me diminuída, em vez de reconhecida. Fixa num molde definitivo, lembrando-me sem descanso que não sou digna de entrar no Paraíso – instalando a dúvida de que sequer exista.

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Com o pecado original, veio a feiura primordial. É por isso que no caminho da salvação está o resgate da beleza perdida, que não é atributo intangível da alma, mas totalidade incorporada. A certidão de óbito que tentam passar a Deus só será oficial quando conseguirem erradicar a beleza, Sua face e condão. Depois da arte, é a vez da mutilação e carnavalização dos corpos, dos padrões estéticos generalizados, atribuídos a capricho aleatório.

A carne lastima a inocência perdida quando se vê retratada no seu realismo cru, tentando fazer-nos crer que estamos bem como somos (o que quer que isso seja) e que o é preciso é abolir os tabus, encetar manobras enérgicas de reanimação da autoestima.

Sem beleza, apenas a violência pode medrar. Como na teoria das janelas partidas, a degradação a céu aberto convida à franca ação demolidora. Não nos torna mais felizes ou benévolos. Para isso, continuamos a ter de esticar o pescoço, olhar para cima. Assim se fazem os cisnes: contemplando a existência do Paraíso.

 

Em lugares onde tudo é feio e esteticamente indiferente, é fácil ao comportamento modelar-se por esse padrão, tornando-se vulgar e grosseiro (…).

Theodore Dalrymple

 

Fotografia: © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0