Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

01
Dez23

#loveyourself ?...

Sónia Quental

Às vezes, esqueço-me de gostar de mim. É como sair de casa com a camisa desabotoada ou uma meia de cada cor. Já me aconteceu ir com as leggings do avesso. Depois reparo e ocorre-me: já me esquecia de gostar de mim. Conto os minutos que andei nesse estado, fora de prumo, de tom. Quantas pessoas terão notado. Começa a chover e, irritada por não ter trazido guarda-chuva, irrito-me com a irritação. Ah, outra vez o vício de me castigar.

Vou pela rua e admiro as pessoas para quem parece fácil gostar de si. Costas direitas e cabeça erguida, a passada convicta, certezas muitas. Quando penso que gostava de ser assim, a polícia da consciência sopra o apito: passei outra vez o sinal vermelho. Quase que me esquecia de gostar de mim.

Ou quando me convidam para socializar e eu faço cara séria e digo que vou tentar, sabendo desde o início que não. Não gosto de estar no meio de gente, por isso crio fábulas complicadas. A verdade é uma bofetada dura de dar. E nem sempre é fácil gostar de mim.

A páginas tantas, estou empanturrada de preocupação, emoções sólidas que não levei ao calor brando do banho-maria. A caixa de Pandora a abarrotar. Sempre que a esvazio, volta a encher-se – o único milagre que faço. Nem a esperança quero lá dentro, esse veneno subtil. Tirem-me a esperança, mas deixem-me a leveza de gostar de mim. Agora, que lhe provei o sabor, quero mais.

Engelho o nariz ao ver que tudo o que escrevo agora mete receita de culinária. Um dos primeiros e mais volumosos livros que li não foi a Bíblia, mas o Tesouro das Cozinheiras. Livro de sabores e comédia, uma primeira incursão no mundo dos graúdos.

Agora, que penso, vejo que, antes de copiar palavras do dicionário, copiava receitas. Nos tempos livres, digo. Agora, copio citações. Gosto de copiar e de fazer listas – é assim que não perco coisas nem sonhos, dando-lhes suporte, desenhando-lhes a forma. É isso que me prende à terra e ainda me separa dos quadros de Chagall. Isso e os figos. São uma boa forma de gostar de mim (quando me lembro).

Vestido vermelho sentada - Madalena (03.12 (6).jpg

 

Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

24
Nov23

Maçã cozida

Sónia Quental

Não sentia o amor à minha volta. Não o cheirava. Não lhe conhecia os passos no escuro. O mais perto disso era a maçã cozida que me levavam à cama quando estava doente, por isso gostava de estar doente, exceto pelo arroz branco. Não me importava de ter febre. Também podia fazer palavras cruzadas e descansar de ser adulta.

Pensei que talvez fosse a luz de presença no corredor. Acreditei que o amor podia muito bem ser o Pai Natal, que aparecia uma vez por ano, até decidir apanhá-lo no ato (e não era). O mais próximo que cheguei de tirar a sorte ao amor foi com os brindes do bolo-rei. Até que o bolo-rei deixou de ter brinde e só trazia a fava.

Momentos houve em que achei que o amor era aquele que ficava com o pescoço e as asas do frango e nos deixava a carne tenra. Mas, quando o procurava, tinha a cabeça enfiada no jornal ou o comando da TV na mão. Mandava-me calar. Era um amor que não me olhava nem ouvia, exceto quando eu chorava, o que não podia, especialmente à mesa, onde o amor era uma côdea em que ninguém pegava. A digestão em família não podia ser perturbada nem a solenidade de quem tinha a garganta fechada. A minha também ficou, mas foi com as lágrimas entaladas.

Animei-me quando julguei que o amor era chá de menta, porque só lhe conhecia os picos e a expetoração. Pensei ter encontrado a fórmula, mas não. Era mais como um bolo de arroz seco, que se esfarelava e só deixava migalhas.

Eu cá gostava de chantilly e morangos. Eram assim os meus bolos de aniversário, vermelhos e brancos, de um requinte que só eu via. Talvez tenha sido a associação que me fez mais tarde pensar que, se eu fosse uma sobremesa, seria um cheesecake. É óbvio que pelo amor. E porque a base de bolacha era sólida. Não se desfazia!

O primeiro bolo que fiz para o amor era de iogurte, mas ele preferia o de natas. Nunca achei a receita certa, não por falta de tentativa. Estou cansada de cozinhar. Prefiro a maçã cozida.

 

Vela à janela (03.12 (2).jpg

 

Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

22
Nov23

Quarto crescente

Sónia Quental

Há épocas para tudo. Há-as de enchentes de trabalho, seguidas de outras em que escasseia. Há épocas em que os cineastas só fazem filmes de vampiros, bruxas e criaturas afins. Há épocas como esta, em que a zona onde moro se transforma num estaleiro de obras, porque resolveram todos fazê-las em uníssono. Épocas em que todas as cabeças que encontro andam a pintar a casa. E a música de fundo que ouço no trabalho é o assobio dos homens lá fora.

Há épocas de chuvas torrenciais e ventos absurdos, sumidos como suspiros nos pequenos verões de bonança. Há ciclos que parecem de Job, noites que atormentam a alma que não tem o condão da paciência. Há épocas em que só há perguntas, outras em que nem isso. Épocas de estar só. E épocas também de companhia.

Há estações de azul (estou numa de verde). Fases de querer cozinhar, outras de recusa. E deixem-se de porquês: tudo o que não seja “porque sim” ou “porque não” é pura ficção.

Há épocas em que nada acontece, outras em que se vive aos atropelos. Vou resfolegando em ambas, treinando o equilíbrio entre as marés, medindo a perna que se segura melhor na areia seca ou molhada.

Há épocas em que não durmo, temporadas sem sonhos – outras daqueles a que Miguel Esteves Cardoso chamou “xixi cerebral” (que não são as melhores). Há épocas de premonições, avisos proféticos, sinais. Há quadras em que até os deuses se afastam.

Há semanas de escrever e outras de empenar. Da birra à paz, uma penada. Quarto minguante, quarto crescente. Tudo tem o seu momento. Mas o que me apetece mesmo é a lua cheia.

03.08.2018 - Saia preta (35).jpg

Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

25
Out23

Outra vez a maçã

Sónia Quental

Dizem que o diabo mora nos detalhes. Acho que me cruzei com ele por lá. No relativismo moral reinante, que nos urge a velarmos pelos nossos interesses sem escrúpulos de maior, inquietam-me as escolhas que podem fazer-me derrapar por entre as fendas da consciência. Não alimentar expetativas, não cobrar, não julgar, ser tolerante e flexível, esperando gozar da mesma flexibilidade enquanto faço o que me dá proveito, sem que possam pedir-me contas ou sequer apontar-me dívidas.

À mínima oportunidade, a serpente levanta a cabeça, convidando-me a trincar a maçã. E ei-la que reluz, coberta de pesticidas, num cabaz com o rótulo “orgânico”. Parece que tenho passado a vida a contemplar a dita maçã, mas agora a serpente reuniu claque e eu fiquei sozinha a defender a árvore. A pressão aumenta. Em volta, veem-se cartazes de gente feliz agarrada à sua fruta. Faz bem aos dentes, dizem, irradiando a brancura dos sorrisos de satisfação. Prazer sem limites condensado numa mera maçã. O cabaz traz um Adão, 30 dias de avaliação grátis e benefícios premium.

Eu também quero irradiar! Quero um Adão no meu cabaz, que me pegue ao colo sem esforço e me diga que não preciso de mudar. Só tenho de facilitar e deixar de ser o pomo que gera a discórdia. A minha vida será mais simples – saem todos a ganhar! Na verdade, estarei a ser egoísta se não comer a maçã. Vai cair ao chão, estarei a desperdiçar. Serei culpada da miséria que passam os meninos em África. Quem lhes dera uma maçã igual àquela, ali à mão de semear. Se não for por mim, por eles. É pecado não comer a maçã. É o alimento do futuro e já traz a larva incorporada. Posso fazer criação e não terei de pensar mais em comida. Serei ingrata se não aproveitar.

Se comer a maçã, estarei a dar prova de desenvolvimento social. Moral é para as avozinhas. Aqui, o único absoluto é o bem coletivo. Na verdade, a maçã guarda o segredo da juventude eterna. Basta uma trinca…

Por entre o atordoamento, noto: estão uns fones ali ao lado, objeto mágico deixado por Deus ou apenas a desculpa ideal. Ao aplicá-los, ouço: “Uma maçã nunca é só uma maçã”. Nisto, a serpente cai da árvore. Ponho-lhe o pé em cima e empoleiro-me num ramo antes que a Liga dos Direitos do Animal acuda.

Com a maçã (2).jpg

 

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

19
Out23

(Im)permanecer

Sónia Quental

 

É-se um item numerado num menu versátil, servido no drive-in ou em take-way, com talheres de plástico e molhos em pacote. Antigamente, havia nas casas louça boa, prenda de casamento, guardada só para ver e usar na Páscoa, quando o padre vinha benzer o antro. Agora, já não há louça fina e quase não vale a pena comprar talheres como deve ser. Os descartáveis servem – assim são as pessoas que passam, as companhias momentâneas que se entretém, num caleidoscópio em que o virtual e o real se confundem em cores de néon.

As histórias de vida viram roteiros reinventados de uma vez para a outra. Faz-se entrevistas e audições aos candidatos à permanência, mas, terminado o test drive, tudo não passa de mais uma experiência num catálogo de sensações, esquecidas após a ressaca do que impermanece, tempero leve para a solidão.

Sem compromisso.

Hoje, que a casa é minha, não recebo o padre e não espalho alecrim na rua para o ajudar a encontrar o caminho até à entrada. Não preciso de pôr a nota verde à vista debaixo da laranja no prato de porcelana, em que só os mandatários de Deus podem tocar. Outra coisa boa é que não tenho de beijar os pés de Cristo na cruz, diante de todos, nem de aceitar, agradecida, as amêndoas açucaradas e moles que o padre trazia no bolso. Dispensava-se de demorar e todos ficavam aliviados. Só vinha buscar a nota e espalhar “Aleluias” apagados.

Sem compromisso.

“Aleluia” é palavra que não se ouve na passarela de gente feita esquisso, serial daters em refeições indigestas de fast-food, procurando a receita infalível para o final feliz, num jiu-jítsu da mente em que a regra universal é não fazer drama e sorrir.

Companhia humana a um clique de distância. Tão perto, cada vez mais longe. Sempre, sem compromisso.

 

Grades da reitoria - 2.jpg

 

Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

10
Out23

Pintar a manta

Sónia Quental

 

Brincava há tempos com alguém em torno da praxe das conversas sobre o tempo como ritual de aproximação entre desconhecidos. É uma prática que passei a admirar e que produz em mim um certo fascínio como expediente com que se preenche silêncios incómodos e se alivia a sensação de separação ou de ameaça psicológica em contextos de vizinhança física.

Dizia Chesterton haver razões delicadas e profundas para se falar sobre o tempo: começando por evocar um movimento de adoração primitiva, na sua natureza de prece pagã, é também uma forma de reconhecimento da igualdade entre as pessoas, sendo motivo de fraternidade: “Toda a verdadeira amizade se inicia pelo lume, pela comida e pela bebida e pela opinião sobre a chuva ou a geada. Os que não começam pelo lado corpóreo das coisas são já pedantes (…)”.

Mas até essa prática inocente os “ativistas” pelo clima conseguiram contaminar, transformando as conversas sobre o tempo num ato de contrição, tingido pelo pesar circunspeto do luto, em que parece que expressamos continuamente uns aos outros os pêsames pelo falecimento de um parente comum.

A onda de entusiasmo e a publicidade dada ao tema das crianças índigo morreu na praia da realidade, agora que chegaram à adolescência e à idade adulta, aparentemente virgens de educação. Esses seres messiânicos, de aura azul, que vinham para mudar o mundo, estão a conseguir abanar com ele, mas no papel de kamikazes abezerrados, com o arco-íris estampado na roupa, cortes de cabelo duvidosos e a apetência pela cor expressa na tinta com que vandalizam propriedade alheia.

Não vieram para mudar o mundo, mas para pintar a manta e proferir pérolas de sabedoria que creem ausentes da literatura que não conhecem. A sua bagagem literária são as frases de inspiração das agendas (também coloridas) publicadas pelas feministas a tempo inteiro, que se ocupam de desconstruir os "tabus" da sociedade, com a ambição de se apropriarem quer do tempo meteorológico quer do cronológico.

Se se lembrassem da mitologia que conhecem pelo menos dos videojogos e dos filmes, seriam prudentes. Saberiam que são filhos de Cronos, não o contrário, e que o deus grego não era pai permissivo.

 

10
Set23

Insuflável

Sónia Quental

A maioria das pessoas parece adulta, mas na realidade não o é. Emocionalmente, a maioria continua a ser criança. (….) Na maioria das pessoas, vive uma criança que está simplesmente a imitar um adulto. A ‘criança interior’ de que tanto ouvimos falar não tem nada de interior; na realidade, é bastante ‘exterior’.

 David R. Hawkins 

 

A real piece of art is a window into the transcendent. (...) And, unless you can make a connection to the transcendent, you don't have the strength to prevail. 

Jordan Peterson

 

 

A caminho de casa, passava há dias pelas festas do Bonfim quando me chamou a atenção o insuflável ao lado da igreja. Achei-o talvez acanhado face às dimensões do edifício, que deve atrair menos fiéis do que o divertimento infantil.

A relíquia religiosa e o destom do kitsch ocupando, em contraste, a mesma paisagem afiguraram-se-me como mais um sintoma do zeitgeist, em que a Humanidade aparenta ter regredido ao estádio locomotor-genital do desenvolvimento psicossocial – ou isso ou perdeu simplesmente o bom gosto. Parece-me provável que aquele seja o real destino das romarias, que já não louvam a Deus, mas procuram as profecias do ChatGPT, pitoniso moderno de altares de plástico, onde é permitido andar de meias e as costas não sofrem como nos bancos de igreja.

Insuflável.jpg

Assim é o sopro da fé: insuflável, ou wearable, como se diz agora. Aparece com o papa e desaparece com ele. Incha, desincha e passa. Quando o festival acaba, arrumam-se as tendas e regressa-se à normalidade, com os uivos erráticos das novas Gretas a disputar os holofotes ao papa.

Estou a pensar em enviar um requerimento à junta para no próximo ano fazerem uma rampa para trotinetas, para facilitar ainda mais o acesso e o insuflável poder exibir o rótulo A+++ da inclusão. Desconfio de que a popularidade tornará redundante a igreja, que, verdade seja dita, não tem os azulejos da Capela das Almas, que a tornem instagramável ou lhe deem relevância turística, nem pode ser convertida em alojamento local, correndo o risco de passar a imóvel devoluto, sujeita a arrendamento compulsivo.

Pelo menos, há um insuflável ali ao lado, onde Deus pode procurar refúgio, se não se importar de partilhar dormida com o oráculo da IA, com quem poderá ter as conversas filosóficas a que as beatas estariam menos aclimatadas. Pode ser que aceitem competir numa corrida de drones e que, desqualificados os humanos, seja Deus o favorito, quanto mais não seja porque o papa, ainda que amigo de todos, joga na mesma equipa. Aceitam-se apostas. O arraial está montado, faltando apenas confirmar a presença de Lio, o robô dançante do Bolhão, que fontes não oficiais garantem estar a preparar uma performance interativa e um workshop de coreografia. O pão de ló já se vende à porta, presume-se que feito de ovos sem crueldade animal.

 

 

What is beauty? What is missing? What causes the profanity and the ugliness to pervade our culture? I would say that it is the loss of the ability to see the invisible within the visible. (...) we don't see that light shining within one another that is our invisible beauty.

Shunyamurti

 

 

02
Set23

Enxoval: precisa-se

Sónia Quental

 

Definir o politicamente correto com precisão não é fácil, mas reconhecê-lo quando está presente é. Ele tem sobre mim o mesmo efeito do ruído que, durante minha infância, a unha do professor fazia sobre o quadro-negro quando o pedaço de giz estava curto demais, causando-me frio na espinha. Trata-se da tentativa de reformar o pensamento tornando certas coisas indizíveis. Consiste, ainda, numa ostentação conspícua, para não dizer intimidadora, de virtude (a qual é concebida como a adoção pública das visões ‘corretas’, isto é, das visões ‘progressistas’) mediante um vocabulário purificado e um sentimento humano abstrato. Contradizer esse sentimento ou deixar de usar tal vocabulário é excluir-se do grupo de homens (ou deveria eu dizer ‘pessoas’?) civilizados.

 

Theodore Dalrymple

(citação retirada de edição brasileira)

 

 

A maior desfeita foi quando passei a receber enxoval, porque quem o dava lhe ganhou gosto, mas não me contagiou com ele. Se com o tempo aprendi a dar valor às prendas em dinheiro, o enxoval deixou-me sempre um travo inconformado a desilusão. Isto até saber que Jordan Peterson tinha sido condenado a um campo de reeducação (estabelecimentos que ameaçam instalar-se deste lado da civilização) e de novo me render aos desígnios da Providência. Admirei a sabedoria genial das minhas tias, que não era porque não me conhecessem que ofereciam enxoval, mas porque tinham a premonição das circunstâncias em que faria falta. Talvez me adivinhassem no cadastro o crime de ferir sensibilidades e achassem que o sítio para onde seria mandada carecesse de toalhas com cheiro a mofo.

Tenho a sorte de o Jordan Peterson ter chegado primeiro. Pelo menos, terei alguém interessante com quem trocar bilhetinhos nas aulas de socialização. De certeza que tira apontamentos melhor do que eu e tenho a esperança secreta de que me deixe copiar nos testes. Eu posso ajudá-lo na parte linguística, a declinar a lista de pronomes (é fácil para quem já estudou latim). Se formos apanhados, penso que é mais provável que seja ele a levar com a cana, uma vez que é homem branco, falo – quero dizer, símbolo – do patriarcado, por isso posso estar relativamente descansada. Não me importo de dividir o lanche com ele, já que tenho muitos paninhos de renda, bordados pela bisavó, e, da primeira vez que me educaram, ensinaram-me a não ser egoísta. Espero que faça vista grossa às manchas amarelas, pois só no mês passado aprendi a usar lixívia.

Vestido amarelo (2).jpg

 

Pode ser que no campo de reeducação deem aulas de economia doméstica e não façam discriminação de género, para que o Jordan Peterson também possa ir. Se ele souber fazer um pequeno-almoço energizante, sem glúten nem hidratos de carbono, seremos amigos para sempre. Sei que ele vai gostar de mim, porque estou habituada a arrumar o quarto. Uma vez, quando fui a Tormes, a senhora da limpeza não me deixou toalha de banho, porque eu fazia a cama todos os dias e ela pensou que, em vez de duas, só uma estivesse ocupada. Também aí o enxoval vinha a calhar.

Acho que vou sugerir no centro de reeducação a ideia que tivemos em Tormes quando o calor se tornou intenso, que foi levar cadeiras de plástico e sentar-nos à sombra das videiras, enquanto ouvíamos a voz melíflua do Pedro Eiras discorrer sobre Eça de Queirós. Suspeito que Jordan Peterson vá gostar do Eça, que me envergonho de já não ler, mas parece-me que também ao portuguesinho receitariam a reeducação. Que bom que seria eu, o Jordan e o Eça a especular quantos géneros há para dois sexos e a comer as uvas da ramada, com os meus paninhos de renda no colo.

 

 

Fotografia: 2022 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

27
Ago23

"Outsiders"

Sónia Quental

(Dedicado à comunidade de outsiders que acompanha Howdie Mickoski e que comentou o vídeo abaixo.)

 

Why would you wanna fit in with insanity?

Howdie Mickoski

 

 

Presumível forasteiro,

 

Devo começar por te dizer que o cão da vizinha vai à rua mais vezes do que eu. Se tocares à campainha, é provável que não abra, não porque esteja de robe, mas porque não disseste que vinhas. O esforço de me obrigar a simpatias com estranhos ou conhecidos precisa de ensaio demorado, por isso avisa quando vieres. Convém acrescentar que não reajo bem às quebras de rotina e que sou ciosa das âncoras que me fixam.

Se quiseres fazer conversa, não me perguntes o que tenho feito. Sabes que nada disso importa e que vieste para falar do insólito, mesmo que não o tivesses planeado direito e que comecemos, hesitantes, pelo postiço das formalidades, porque por estas bandas o costume é falar-se do tempo. Ainda não sabemos que temos Saturno na mesma casa e que podemos passar ao que interessa, sem precisar de aquecimento ou cautelas. Em mistura ao comentário pouco convincente sobre o calor, menciono brevemente um filme de terror e respondes-me com a angústia da luz do dia que começa a escoar-se três minutos de cada vez depois do solstício de verão – angústia subterrânea para a maioria das pessoas, mas que o nosso termómetro regista. Entre esta troca improvisada e a galope, que desemboca no tema dos rituais e sacrifícios humanos, estalam-me foguetes por dentro.

Parede castanha (Afurada) (5).jpg

 

Posso descontrair, sem ter medo de dizer a coisa errada, das interpretações que vais fazer, se vais ficar ofendido ou magoado quando te digo a verdade. Não me pedes fórmulas de assertividade nem te importas que rosne se for caso disso, e o alívio que sinto faz-me querer encostar a cabeça e ficar, receber enfim no silêncio quem domina o idioma e não me cobra palavras. Não me estranhas, mesmo que sejas estrangeiro por cá. Não me acusas de julgamento nem confundes as minhas intenções, porque o nosso desencaixe é simétrico. Identificas-te como homem, eu como mulher, e não usamos pronomes como fetiches. O nosso fetiche é o Profundo. É com isso que nos identificamos, um plano mítico para quem vive à superfície, deformando o corpo, confundindo a consciência e escamoteando palavras, mutilada a razão com um arco-íris na machadinha.

 

Gostava de continuar a conversa, mas está na hora de ir à rua. O cão da vizinha leva-me três voltas de avanço.

 

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

17
Ago23

Valha-me a meia de leite

Sónia Quental

 

Gnosis is a moving target. Walking its path is a nomadic life. When night falls, you pitch your tent. In the morning, you pack it up, put in on your back and start walking again. Don't pitch it anywhere permanently. Be the infinite explorer.

Neil Kramer

 

 

Ouvi mais de uma vez pessoas que trabalhavam em cafés ou padarias fazerem comentários de desabafo sobre os hábitos dos clientes regulares. Exasperava-as que a mesma pessoa tomasse todos os dias o mesmo pequeno-almoço, a mesma meia de leite com o que quer que fosse a acompanhar, apesar da variedade de opções em oferta. Os motivos não são tão elementares quanto possa pensar-se, embora nem sempre sejam conscientes.

Os hábitos, por mais pequenos que sejam, são âncoras num mundo de incerteza e insegurança. Falando por mim, que convivo há muito com um grau de incógnita robusto: quase sempre, como trabalhadora independente, não me é possível saber se daqui a um mês vou ter trabalho ou ordenado, o que dificulta fazer planos. A ansiedade e o desgaste que esta situação vai naturalmente gerando ao longo dos anos são amplificados pela falta de uma estrutura familiar e afetiva de apoio. Somam-se as mudanças que vêm de fora, da sociedade, e as que irrompem de dentro, ditando-me viragens de rumo que me cabe apenas pôr em marcha. Uma consciência que não vive petrificada exige um sacudir de pele constante, um nunca pousar a cabeça duas vezes no mesmo leito.

Reitoria - 1.jpg

No meio disto, o que me vale é a meia de leite ao pequeno-almoço. Pode não ajudar a tornar mais interessante o dia de quem a serve, mas é das poucas coisas a que ainda me posso agarrar, tirando quando fecharam cafés e postigos. Aí, nem meia de leite havia.        

Acresce que a quantidade não simplifica a escolha. Quando há muito por onde escolher, a confusão é tanta que quase sempre se escolhe errado, a que se segue o arrependimento pela oportunidade perdida de tomar aquilo de que se gosta garantidamente. Alivia ter-se pelo menos uma preferência em que não é preciso pensar, que é imediata e não atraiçoa. Um pequeno prazer certo entre os tantos que falham.

Há ainda o conforto de ir a um estabelecimento onde se é conhecido. Ter alguém que sabe o que queremos e como gostamos de o tomar, sem ter de perguntar. A comunicação silenciosa e conivente que se estabelece num sítio que não é casa, mas que se torna um pouco mais como casa e que às vezes nos mima com rabanadas fora de época.

Mau grado os argumentos, sei que chegará um dia em que até este apego terei de deixar. Até lá, valha-me a meia de leite.

 

 

Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D