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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

08
Out24

O Guru da Escrita Levezinha

Sónia Quental

 

        Se havia quem gostasse de levantar pesos, ele preferia levantar levezas. Começava todas as manhãs com push-ups de palavras de duas sílabas, mas o objetivo era diminuir a carga com o tempo, até chegar à unidade mínima da consoante surda, ao texto sem forma no ecrã em branco. Não o confessava em público, mas queria subtrair dois quilos ao dicionário, abater-lhe os pneuzinhos da cintura e lançar uma nova dieta sem excesso de proteína, assente nos princípios da escrita funcional.

          À comunidade de seguidores que treinava para competir na mesma categoria, dava achegas preciosas para a criação de conteúdos, subordinadas ao preceito “Menos É Mais!”: reduzam o parágrafo à frase, a frase à palavra, a palavra à sílaba. Simplifiquem, simplifiquem, simplifiquem. Leiam revistas cor-de-rosa, horóscopos, o Correio da Manhã se for preciso. Usem e abusem de estímulos visuais. Acima de tudo, não macem o Leitor! Um bom texto é aquele que fala ao coração através da linguagem sem filtro do Desabafo. Por isso, não tenham medo de partilhar a vossa intimidade nem de abrir o peito para mostrar os seres únicos e especiais que são. E não deixem de fazer menção velada à humildade na vossa mensagem de marketing pessoal.

         Para ninguém se perder, condensou o Regime nestas 11 regras incompletas, que partilhou num fórum dedicado aos pesos-leves:

 

1. O Leitor vem sempre em primeiro lugar. Facilitem-lhe a vida e digam-lhe o que ele gosta de ouvir para caírem nas suas boas graças. Não percam tempo com gente insegura que está de mal com a fofura e se recusa a reconhecer o vosso génio. Tudo o que é crítica vem da inveja secreta de um hater.

 

2. Criem listas numeradas de truques ou dicas e anunciem-nas no título. O Leitor não sabe contar e gosta de textos PRÁTICOS, com instruções passo a passo e os passos contados antes de começar.

 

3. Usem Maiúsculas Em Todos Os Títulos, Subtítulos E Em Tudo O Que Vos Der Na Gana.

 

4. Não testem a paciência do Leitor: depois de cada parágrafo, introduzam uma imagem para ele descansar os olhos e não desistir da leitura nem adormecer antes do fim.

 

5. Escrevam como falam, sem truques. Adotem a escrita automática e pensem só depois de escrever (mas não demasiado). “Autenticidade” é a palavra de ordem!

 

6. Sempre que possível, misturem o português com o inglês, até chegarem à proporção ideal de 50/50. É uma técnica inclusiva e menos discriminatória.

 

7. Um ponto de exclamação nunca vem só!!

 

8. Consultem um profissional de SEO para vos dizer que expressões sem nexo gramatical semear no post para ele aparecer nos resultados de pesquisa. O objetivo final? O clique e a conversão. Não tenham medo de ser criativos nem de reinventar a língua. A pátria agradece.

 

9. Se o assunto for controverso, citem vagamente um coletivo de “especialistas”. Nunca falha!

 

10. Em vez de se apressarem a julgar o Erro, lembrem-se de que não existe tal criatura: apenas formas diferentes de se dizer a mesma coisa, nenhuma melhor nem pior do que a outra.

 

11. Se tiverem um destaque no SAPO, parabéns! O reconhecimento tardou, mas é sinal seguro de que devem enviar um manuscrito para uma editora: são escritores de pleno direito! Um pequeno passo para o vosso talento, um grande salto para a Humanidade.

 

         Hesitou por instantes antes de escrever a palavra “discriminatório”. Era um bocado pesada e parecia ir contra os Princípios declarados, mas o Guru da Escrita Levezinha gostava de mostrar que era homem de paradoxos, que gostava de explicar as suas contradições. Além disso, não acreditava em rever rascunhos e estava quase na hora da live para o Tik Tok.

 

10
Mai23

Livros que fazem espécie

Sónia Quental

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Não utilizar determinadas palavras é aniquilá-las, expulsá-las da língua.

Manuel Monteiro

 

A transposição da oralidade – propositada, por exemplo, no jornalismo radiofónico e de TV – para uma linguagem escorreita é que, algumas vezes, deixa muito a desejar.

José Mário Costa

         

Foi depois de comprar e começar a ler o livro Dar a Volta ao Texto, de Martim Mariano, que percebi que certas pragas que tanto me enfastiavam na Internet existiam não por mera imitação ou por um qualquer contágio psíquico, mas porque andavam a ser ensinadas. Os vícios da língua e o mal escrever chegaram ao formato de manual, e a voz que o autor deste livro diz tantos anos ter demorado a apurar para tornar sua já a encontrei em muitos outros “profissionais” da escrita que contam como única qualificação a de serem falantes nativos que, em vez de corrigirem deslizes, buscam afirmá-los.

Percebe-se, por isso, que se encontre na obra em questão aberrações como o incentivo a escrever-se como se fala, a escrever para que as pessoas gostem de nós (“É preciso ser agradável e querido para as pessoas que o leem”, afiança o autor ante os meus olhos esbugalhados) e a escancarar as portas da própria existência para se ser lido. Não duvido de que o Big Brother continue a ter audiências, mas sabe-se bem quais são e qual o instinto que as move. A “autenticidade” e “naturalidade” recomendadas por Mariano, a par da tão apregoada “vulnerabilidade”, não implicam a falta de decoro que tantas vezes transpira em quem acha que, para exibir estas qualidades, precisa de expor rotineiramente a vida íntima. Ser-se pessoal ajuda a criar uma identificação com o público e a humanizar quem escreve, mas há um equilíbrio a alcançar. Já para não falar do difícil lugar em que se coloca quem quer ser autêntico e ao mesmo tempo agradar ao público.

A popularidade é um critério que parece ofuscar a qualidade. Não se ensina a escrever para transformar, mas para facilitar. Não para elevar quem lê, mas para lhe passar a mão no pelo. Não para que haja algum mérito em ser-se publicado, mas para mostrar que todos podemos ser escritores, desde que trabalhemos e sangremos muito e que os nossos textos falem ao coração. Sim, é preciso tudo isso para se aprender a escrever como se fala e a cativar os leitores, poupando-os a todos os esforços e aborrecimentos.

Além de o autor não fazer caso das regras do português, sujeita a língua a um jogo de cintura tal que ela vira contorcionista, confirmando o copywriting como a literatura de cordel da era digital. Dividir segmentos de frases com pontos finais, em vez de vírgulas, pode cair bem à primeira, mas a originalidade e a ênfase acabam por se perder à custa da repetição enjoativa: “Deixe que as pessoas percebam essa autenticidade. Essa verdade. Essa transparência”. E motivos para enjoo não faltam nesta obra, cuja leitura tive de interromper várias vezes para me refazer, como é o caso da também repetida expressão de realce “é que”, que deixa de realçar seja o que for. Mesmo. (Assim escreveria o autor.) O abuso de estrangeirismos, os parágrafos com uma frase e as frases monovocabulares, as marcas da oralidade que se tomam como expressivas e naturais, as “clarividências” que o autor não parece saber o que sejam, a menos que tenha alguma queda para o paranormal (o que é provável, tendo em conta o número de vezes que sugere “passar algo para o outro lado”), …

Aliás, por falar em paranormal, não resisto a desvendar o trecho em que este criativo descreve quem faz da escrita vida como alguém “especial”, dotado de missão divina (incluindo-se, por extensão, no grupo). Por momentos, vi-me transportada para o cabeleireiro, onde me distraio com a Maria e chego a ler o horóscopo enquanto me massajam o couro cabeludo. O próprio Mariano, a páginas tantas, confessa: “Sempre que vou a casa dos meus sogros leio todas as revistas cor-de-rosa que lá estão. E o Correio da Manhã.”

           Feitas as contas, acabei por perder com esta recente aquisição “literária” mais tempo do que gostaria e por lhe dar à cama um lugar que não merecia (maldita rima). É um livro que ensina a fazer dos vícios virtudes.

Passo a passo.

A capa e a contracapa são bonitas. Ao texto, não há volta a dar.

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0