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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

21
Jun24

Vigésima

Sónia Quental

Já não é apenas suspeita que tenho queda para separações, especializada que sou em finais, com valência em precipícios e falésias. No encore desses fins, que foram removendo os plurais da vida, adelgaçando-lhe cada vez mais a cintura, o caminho da renovação, ainda que involuntária, acabou por me revelar mais larga afinal, numa inteireza desconhecida, que por vezes me levou por caminhos criativos inexplorados. A reviravolta que marcou o ano de 2018 brindou-me com um desses escapes acidentais, proposto por um fotógrafo que conheci na dança de rua, que encheria de cor e entusiasmo os anos vindouros.

O gosto pela arte, pelas contaminações da intertextualidade, a veia espiritual e o ímpeto a expressar uma sensualidade até aí abafada deram origem a um material que talvez se abeire do oxímoro, com uma certa ponta de escândalo para quem me conhecia tapada e posta em sossego. Não vesti personagens: provei facetas, percorrendo os diferentes prismas e escamas que a inspiração ia revelando do Feminino. Crendo-me fadada à invisibilidade, voz revolta e desavinda com a escrita, foi novidade descobrir-me parte da paisagem, cavar lugar no mundo às claras, apesar do esforço que o movimento de expansão e exposição pedia a quem antes preferia encolher-se, arrastar os olhos ao chão.

Cabe dizer que o meu amadorismo, uma certa limitação de recursos e a falta de habilidade para os artifícios da beleza tornaram a produção quase sempre pouco ambiciosa. Havia a inclinação natural para a simplicidade, que deu naturalmente mãos às circunstâncias, fazendo com que o material descartado ultrapassasse em muito o apurado, de que reuni uma seleção num portefólio entretanto fechado ao público, devido à qualidade da atenção que atraía. Reabro-o* num curto trecho de alguns dias, como forma de comemoração desta 20.ª sessão (ainda por editar), por terras de Nossa Senhora do Vau. Ao fotógrafo e amigo, Francisco Amaral, reafirmo a minha gratidão: porque me viu na multidão onde me sumia, e me deu a ver a quem pôde.

 

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* Já fechado, entretanto.

**Especialmente dedicada à Câmara Municipal de Amarante, que não teve conhecimento da nossa presença e não emprega vigilantes para informar a população de que em espaços públicos só se pode tirar selfies.

 

18
Mai23

Não é pelo título que se começa

Sónia Quental

Fundo branco (6).jpg

 

 

En definitiva, sólo era y sólo soy un escritor. Un tipo – sempre lo seré – que necessita escribir para calmar su tormenta.

Isra Bravo

 

A criatividade – tal como a vida humana – começa no escuro. 

Julia Cameron

 

             

Não é pelo título que se começa. Às vezes, não é sequer pelo princípio. Começa-se por onde se pode. Acaba-se se for caso disso.

Pode ser uma ideia, palavra desgarrada, uma imagem que persiste. Há um ritmo que se insinua e se transforma em tumulto, a primeira visão que Jacob tem do anjo.

Não há mapas mentais, estruturas a arquitetar. Pouco importa escrever depois de pensar. Rédeas, adeus. Só chega ao fim quem se rende, mesmo que não haja fim, mas só o avesso do começo.

O texto tem fome própria, não dá tréguas nem descanso. Esgueira-se durante o sono, insone e difuso – pássaros que bicam, mordem os calcanhares.

Às tantas, são duas partituras, duas baladas ao desafio – talvez por isso tenha nascido com os olhos tortos. Para usar as duas mãos, duas almas de cada vez.

Não são as linhas que se sucedem, mas as palavras que se empurram, sem olhar a filas ou sincronias. Desobedientes, com ganas. Palavras sem eira nem beira, ameaçando esquizofrenia. Dou-lhes regaço e guarida, até que se acalmam.

Até que sobra uma palavra, sem cor, som, feita de silêncio. É a palavra do começo.

 

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0