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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

15
Jun24

Para sempre

Sónia Quental

           

Torna-se claro que vivemos no fim dos tempos quando já não é de uso dizer-se “para sempre”. Se a rotação da Terra desacelera e os dias crescem, contra a impressão de aceleramento que a maioria informa, só os ingénuos ainda trazem na boca juras eternas. Os ciclos passaram, de séculos, a meses, dias, horas, cortados em descontinuidades cada vez mais curtas. Somos seduzidos com o mantra do momento presente como antídoto contra os corredores da memória, onde o futuro também tem quarto. Há que apagar os vestígios da cronologia, ser-se pessoa sem sombra na vertigem do instante, que não poupa noites à insónia.

No piano da estação de metro, alguém toca a “Canção de engate”, de António Variações, que me entra sempre na cabeça. Resisto ao ímpeto de a cantar, pelo comezinho da letra, antítese da eternidade ou apoteose de um “agora” impostor: o amor como aventura dos sentidos, um momento em que duas solidões se entregam, sem pedir continuidades ao tempo. Que “o amor é o momento” é daquelas frases que soam bem e que fazem eco naqueles de nós que gostam de citar frases sonantes sem se demorar muito nelas – mas é frase que mente.

Quem procura o Agora para escapar ao peso do tempo, ao seu prolongamento, é aprendiz de feiticeiro, tentando com moedas roubadas comprar as dádivas da eternidade. Conscientemente, já não podemos dizer “para sempre”: entre este segundo e daqui a uma hora, podem passar eras, tudo mudar. Se estamos vivos, passamos com elas, não resistimos ao tempo: não o deixamos transcorrer, mas percorremo-lo sem reservas até acabar. Só no fim do tempo pode existir o Agora onde o “para sempre” dorme e o Amor funda o seu lastro.

 

Retrato parede castanha (Afurada) (1).jpg

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

10
Out23

Pintar a manta

Sónia Quental

 

Brincava há tempos com alguém em torno da praxe das conversas sobre o tempo como ritual de aproximação entre desconhecidos. É uma prática que passei a admirar e que produz em mim um certo fascínio como expediente com que se preenche silêncios incómodos e se alivia a sensação de separação ou de ameaça psicológica em contextos de vizinhança física.

Dizia Chesterton haver razões delicadas e profundas para se falar sobre o tempo: começando por evocar um movimento de adoração primitiva, na sua natureza de prece pagã, é também uma forma de reconhecimento da igualdade entre as pessoas, sendo motivo de fraternidade: “Toda a verdadeira amizade se inicia pelo lume, pela comida e pela bebida e pela opinião sobre a chuva ou a geada. Os que não começam pelo lado corpóreo das coisas são já pedantes (…)”.

Mas até essa prática inocente os “ativistas” pelo clima conseguiram contaminar, transformando as conversas sobre o tempo num ato de contrição, tingido pelo pesar circunspeto do luto, em que parece que expressamos continuamente uns aos outros os pêsames pelo falecimento de um parente comum.

A onda de entusiasmo e a publicidade dada ao tema das crianças índigo morreu na praia da realidade, agora que chegaram à adolescência e à idade adulta, aparentemente virgens de educação. Esses seres messiânicos, de aura azul, que vinham para mudar o mundo, estão a conseguir abanar com ele, mas no papel de kamikazes abezerrados, com o arco-íris estampado na roupa, cortes de cabelo duvidosos e a apetência pela cor expressa na tinta com que vandalizam propriedade alheia.

Não vieram para mudar o mundo, mas para pintar a manta e proferir pérolas de sabedoria que creem ausentes da literatura que não conhecem. A sua bagagem literária são as frases de inspiração das agendas (também coloridas) publicadas pelas feministas a tempo inteiro, que se ocupam de desconstruir os "tabus" da sociedade, com a ambição de se apropriarem quer do tempo meteorológico quer do cronológico.

Se se lembrassem da mitologia que conhecem pelo menos dos videojogos e dos filmes, seriam prudentes. Saberiam que são filhos de Cronos, não o contrário, e que o deus grego não era pai permissivo.

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0