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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

26
Out24

Dalrymple

Sónia Quental

            

    Considerado por alguns o melhor ensaísta de língua inglesa da contemporaneidade e convidado várias vezes para o Brasil, onde a sua obra se encontra extensamente publicada e é já objeto de estudo, Theodore Dalrymple parece ainda não ter dado à costa do panorama editorial português, apesar da proximidade geográfica. É essa negligência flagrante que me faz dedicar-lhe uma entrada no blogue, aproveitando a reedição próxima do título Nothing but Wickedness: The Decline of Our Culture.

      Pseudónimo literário do psiquiatra Anthony Daniels, que trabalhou como médico em continentes estrangeiros antes de se fixar no país natal, a Inglaterra, aí atendeu durante grande parte da sua carreira a população das prisões e da classe baixa, cuja pobreza cultural, moral e social diz superar a pobreza material de países classificados como de terceiro mundo, assolados pela miséria, por conflitos civis e pela opressão política.

Dalrymple.png

        Na esteira dos grandes autores e psicólogos da literatura mundial, de entre os quais se destaca o nome de Shakespeare, Dalrymple é dos poucos ensaístas em que encontro uma profundidade de análise psicológica que, aliada a uma rara isenção e honestidade intelectual, tem um efeito simultaneamente refrescante e persuasivo. Resistindo a deixar-se ofuscar por ideações pessoais, tingidas por um emocionalismo impostor, ou a tentar ajustar a realidade a teorias preliminares, Dalrymple faz da observação minuciosa dos sintomas do universo humano com que contacta instrumento de diagnóstico da cultura e da sociedade. A lucidez da sua exposição argumentativa abre-nos clareiras no pensamento; a fina ironia e o humor que marcam a sua escrita tornam a leitura destes ensaios uma delícia que não cansa.

      Como adiantei em referências anteriores, é o autor laico mais espiritual que conheço e dos poucos que continuo a ler: assumindo-se como não religioso, reconhece o valor que a transcendência tem para a busca do significado da existência, não hesitando em utilizar a palavra “alma” quando se pronuncia sobre a condição humana, como autor eternamente fascinado pelo problema do Mal – um dos nós górdios que nos unem.

        Maurício Righi escreveu sobre ele Theodore Dalrymple: A Ruína Mental dos Novos Bárbaros, uma introdução rigorosa à obra de um pensador virtualmente desconhecido por cá, que ainda precisa de atravessar o oceano se quisermos lê-la em papel.

 

It often seems to me that the main purpose of the intellectual elite is to find theoretical reasons for ignoring what is in front of their face.

Theodore Dalrymple

 

04
Out24

Crónica de uma desinfestação anunciada

Sónia Quental

 

         Maria Benedita sempre quisera viver em tempos diluvianos. No dia da desinfestação geral, acordou tarde de um sonho em que inspecionava a Arca de Noé para garantir condições mínimas de salubridade.

         Quando assinara a escritura do apartamento, mal podia prever que em breve veria concretizada a fantasia de pragas, inundações e assaltos numa zona até então pacata do Porto. À data funesta do controlo de pragas, já contava com dois pedidos de casamento de forasteiros que a tinham seguido da estação de metro, sinal de que o patriarcado continuava a ganhar terreno.

        Coincidência ou não, os supramencionados tinham afluído em magote para o prédio que habitava, onde se espremiam num T1 sem varanda, deixando no elevador o cheiro entranhado de quem não vai a banhos, revezado pelo perfume a caril que penetrava nos apartamentos às quatro da tarde em ponto.

         No assalto à garagem, felizmente, só tinha ficado sem o volante do automóvel, os óculos de sol de 500 € que tinha comprado em saldos e as moedas pretas que tinha posto de parte para dar aos pobres. Mas depois vieram os percevejos e as baratas.

         Admitia que a princípio ficara contrariada com o verão passado em sobressalto. Chamou-se a Proteção Civil, que imitou o exemplo de Pilatos: encolheu os ombros e foi-se embora. O foco da infestação já fora intervencionado e baratas nem vê-las. Dos 18 apartamentos do edifício, só 17 estavam infestados. Os relatórios dos especialistas neste caso de nada serviram, nem os vídeos com a malandragem da bicharada. Sem baratas no Foco, nada a fazer. A higiene não podia ser mandada.

        Como mulher do Norte, Maria Benedita sabia apertar limões para fazer limonada, que o mesmo é dizer: aproveitar os insetos para fazer batidos proteicos. Todos os desafios são uma oportunidade disfarçada, e a próxima experiência culinária era Barata à Gomes de Sá. Elas já se tinham afeiçoado aos tachos e ao frigorífico, e a veia empreendedora de Benedita tinha-lhe dado a ideia de lançar uma nova marca de insetos comestíveis. Foi então que marcaram a desinfestação geral, com fatura em nome dos condóminos.

         É nesse dia que a encontramos, despenteada e a cambalear depois de perceber que o despertador já tinha tocado três vezes. Na mesinha de cabeceira estava a “Lista de Palavras a jamais Pronunciar” que o personal trainer lhe tinha dado. Quando cometia o pecado de pensar que já não podia mais, a penitência estava marcada: recitar 108 Om em posição de meia-lua. Era preciso pensar positivo e nunca aceitar derrota. Furado o plano A, havia sempre outra letra no alfabeto: lembrou-se de que tinha ouvido o presidente da Câmara anunciar na televisão que o Obélix doara à cidade o seu espólio de menires, construções jeitosas para habitação: T0 com kitchenette e varanda. Se tivessem tomada e internet, valia a pena investir, a menos que a obrigassem a pagar taxa turística. Tomou uma nota mental. De resto, já estava acostumada às aragens.

 

 

NOTA: Crónica baseada em factos reais, com efeitos de dramatização verídicos. Só o nome da vítima foi alterado, para evitar novas propostas de casamento.

 

27
Mai24

Desacordar

Sónia Quental

Tempo de leitura: Demasiado (desaconselha-se).

 

           

Pego na cauda de um dos últimos textos para voltar à comunidade espiritual de que falava, onde um dos monges em posição de autoridade contou certa vez o modo itinerante como viviam mesmo depois de voltarem à base. Na sede do grupo, em Minas Gerais, uma das regras do regime monástico ditava que trocassem frequentemente de quarto, sem aviso, para que estivessem sempre prontos a partir em missão, o que os levava a acumular cada vez menos pertences.

Sem lugar onde demorar o poiso, praticavam assim o desapego de que falam os ensinamentos antigos, vivendo no limite na impermanência – o contrário do que faz o resto de nós, agarrados que somos à nossa pessoa, às suas preferências e opiniões, a uma história de vida, uma família, uma profissão, uma cultura, uma nacionalidade.

Tão presos estamos a essas identificações que não conseguimos saber quem somos separados delas e pouco paramos para pensar nisso (poderia acrescentar à lista acima: partido político, clube de futebol e por aí adiante). Equacionar, no mesmo sentido, que “Eu não sou a língua que falo” ou “Eu não sou a norma ortográfica com que escrevo” não passará pela cabeça de muitos, que, perante semelhante aberração, logo evocam o santo nome de Fernando Pessoa, que não se coibiu de inventar argumentos “espirituais” para justificar a sua embirração com as mudanças ortográficas. Fernando Pessoa disse, o papa benze, a obra nasce.

É assim que o sucedâneo da tatuagem “Amor de mãe”, do pós-guerra colonial, é o emblema “Contra o acordo ortográfico”, que teria toda a legitimidade de existir, não fossem os comportamentos de bestialidade inaudita que produz. Basta que os sensores de algum dos que usam a imponente braçadeira apanhem alguém a omitir um “c” onde antes ele se escrevia e ei-lo a espumar pela boca, como se diante de crime de lesa-pátria. Umas gotas de água benta em cima e é vê-lo a revirar a cabeça e a falar em línguas estranhas, o que mostra que as nossas instituições escolares e académicas conferem habilitações, mas se demitiram da educação.

Mais do que as baixas causadas por uma reforma ortográfica canhestra, apoquenta-me, por exemplo, a nova terminologia linguística injetada na disciplina de Português depois de 2005, face à qual o acordo ortográfico é brincadeira para crianças. Preocupam-me também obras como esta, de um autor que se apresenta como doutorado em Filosofia e que não foi capaz de escrever nenhuma das suas 208 páginas sem erros gramaticais “de palmatória”, como dizia a minha professora da escola primária – proeza que, não sendo caso isolado, é sintomática da qualidade cada vez mais precária e da falta de exigência do nosso sistema de ensino, onde se chega cada vez mais longe sabendo-se cada vez menos.

De novo mais do que o acordo, e fascinada que sou pelo comportamento do animal humano, impressionam-me as reações grotescamente violentas de pessoas que, educadas e civilizadas num momento, se prestam também elas a pegar em catanas perante qualquer alusão à polémica ortográfica, como se subitamente possuídas por uma qualquer entidade demoníaca.

Quando nos apegamos a certos atributos que tomamos como marcas de uma identidade, o que quer que os ponha em causa – bem ou malfeito – assume as feições de ameaça existencial. É por isso que a violência das reações com que me deparo vem quer de quem conheça o acordo e que, tendo autoridade para ajuizar, sabe apresentar argumentos racionais contra ele, quer dos que nem sequer se deram ao trabalho de o conhecer, o que não os impediu de formar opinião e de se alistarem no exército de Sauron, erguendo a marca da besta sobre tudo quanto mexe.

 

A minha pátria não é certamente a ortografia portuguesa, ou seria demasiado estreita. Se há quem escolha como missão de vida ser paladino de um desacordo ortográfico, eu tenho outras aspirações, deixando aqui o primeiro e último fôlego que transpiro sobre o assunto.

 

Once Maharajji called a young Western devotee into the room with a local sadhu. The girl was dressed in a nice sari and was wearing jewelry, the sadhu, in typical sadhu dress. Maharajji pointed to the Westerner and said, ‘She’s a sadhu’.

The sadhu objected: ‘How can she be a sadhu? See how she is dressed.’ Maharajji rebuked him and said, ‘She doesn’t care for any of these things. It doesn’t matter to her whether she wears silk or rags. She will even wear diamonds. She is not attached to these things. She has no lust, greed, anger, or attachment. She will wander about all her life. She has no home in the universe’.

Then he sent the girl out of the room.

 Ram Dass, in Miracle of Love

 

23
Fev24

Filosofia do lixo

Sónia Quental

 

Many of the trees along the way were hung with plastic bags or the remnants of sheets of polythene that flapped in the wind like Buddhist flags on a high Himalayan plain.

Theodore Dalrymple

 

         

Fiquei a burilar durante meses numa crónica que Tiago de Oliveira Cavaco publicou no Observador a propósito das mulheres que se maquilham nos transportes públicos, gesto que se dizia tentado a atribuir à humildade. Tendo eu este atributo na mesma categoria que o Big Foot e as famílias felizes (ouvem-se relatos, mas os avistamentos são raros), a explicação ficou-me atravessada, sem que alguma vez a aceitasse por completo, pela sua ingenuidade um tanto ou quanto perra.

Tão distinta é a origem que encontro para o fenómeno que não hesito em relacioná-lo com o lixo. Na breve passagem que fiz por Londres, no último ano, a impressão que a cidade me deixou foi de tremenda deceção, em parte devido à evidente falta de planeamento urbano, ao lixo e sujidade que vi nas ruas, que me levaram a pensar que o Porto, um concorrente de peso ao novo troféu de Cidade Imunda, teria de se esforçar um pouco mais para lhe chegar aos calcanhares.

Prova de que não me equivoquei é a análise que Theodore Dalrymple – descobri-o mais tarde – tem vindo a dedicar ao tema do lixo em Inglaterra, em artigos avulsos e na obra Litter, que lhe é inteiramente votada. A cultura em que Dalrymple enquadra a prática generalizada de deitar lixo para o chão corresponde à de uma nova geração em que os hábitos crescentes de consumo de fast food e o desprezo pelas tradições familiares se aliam à apoteose de uma autenticidade e espontaneidade desregradas. O retrato pintado é de uma população bárbara que, divorciada de valores históricos e religiosos, não pode senão prestar culto a si mesma (cabe aqui a vénia ao autor, que é ateu, mas reconhece o lastro da religiosidade).

Britons now drop litter as cows defecate in fields, or snails leave a trail of slime.

Theodore Dalrymple

 

Com o espelho maior (4).jpg

Não me parece difícil encadear esta síntese com a reflexão sobre as mulheres que se maquilham nos transportes e que trazem espelhinhos consigo, como Obélix trazia o seu escudo, nesse belo paralelismo que Tiago Cavaco faz na sua crónica. Embora o nosso país viva outra realidade, aventuro que o seu desfasamento face à sociedade inglesa contemporânea já não será tanto quanto poderia imaginar-se, e o amontoado de lixo aí está para sugerir que seguimos no mesmo trilho e que não são apenas migalhas que deixamos para trás. A diluição entre as esferas do público e do privado, a apropriação abusiva dos espaços partilhados e o exibicionismo vulgar, que acompanha a perda da introspeção e da profundidade em que já aqui tenho insistido, explicam quer a desenvoltura com que certos atos, antes considerados íntimos, se desempenham agora em público quanto a forma descomplexada como o lixo e o barulho atravessam paredes, infestam condomínios e degradam cidades.         

Os espelhos que as pessoas carregam, esses, não são apenas acanhados em dimensão, mas afoitamente distorcidos. Tenho para mim que seremos sempre chamados a prestar contas de como os polimos, se os empregamos para efeitos cosméticos de ocasião, para uma contemplação narcísica ou para um real caminho de aperfeiçoamento que devolva à beleza a sua virtude. 

        

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

24
Set23

O Olho que tudo vê

Sónia Quental

 

No entanto, a cultura atual funciona em bases diametralmente opostas, nas quais o exibicionismo vulgar, a perda da intimidade e a consequente destruição da profundidade estão na ordem do dia.

Maurício Righi

 

A consciência cósmica é substituída pela vigilância social, a percepção do absoluto, pela acrobacia cerebral. Daí resulta uma desidratação progressiva da alma, uma penúria espiritual mais apavorante que a fome.

Arthur Koestler

 

 

 

A pornografia da arte a propósito da remoção de estátuas e a evocação da exposição pretérita Noites Brancas, de Julião Sarmento, coroando a notícia recente do Happiness Camp aqui próximo. A reedição providencial da Beleza de Roger Scruton. Estudos que me permitem continuar a debruçar sobre o masculino e o feminino, interrompidos pela notícia de que quase um terço dos norte-americanos com menos de 30 anos seria a favor da instalação de câmaras dentro de casa.

Se em tempos não acreditava no acaso, hoje já não sei, mas isso não impede que me proponha o desafio de unir as notas aparentemente soltas das últimas semanas e de tentar dar-lhes coerência ou descortinar as relações possíveis entre elas.

Incumbiram-me, em 2012, de levar turmas em visita a uma exposição patente em Serralves: Noites Brancas, de Julião Sarmento, um artista de quem nada sabia e de quem preferiria nada ter ficado a saber. Expor adolescentes à crueldade mórbida e à obscenidade daquela “arte”, por mando de quem vê em toda a cultura instrução vantajosa, foi tarefa aflitiva, que não tentei explicar aos alunos, porque não havia como. Apesar de pouco conhecedora das artes plásticas, diviso nelas a mesma tendência da literatura deste início de século, sobretudo a poesia, que se cose de vísceras e do lado mais pútrido da matéria, no rebaixamento do humano à sua dimensão animal, acometida do desejo gratuito de chocar. No entanto, é esta que merece consagração e que não se pensa em remover da vista pública. Como acusa Zan Perrion, “The symptom of the modern times is that we've turned our face away (...) from beauty. And we celebrate ugliness”.

Não foi apenas o sentido estético que se inverteu, mas a importância que se lhe dá, aventuro que pela relação que a Beleza tem com o transcendente, que, se ainda se inscreve na cultura, é como tradição morta ou fantasia New Age. O questionamento existencial foi substituído pela exploração macabra do excremencial e pelo livre curso dado às ambições demiúrgicas do indivíduo, que não se coíbe de patentear urinóis artísticos e Frankensteins humanos.

 

É possível caracterizar a recaída geral de nossa cultura, rumo à contemplação de formas e conteúdos crescentemente dionisíacos, como uma consagração filosófico-estética de ‘princípios desumanos’. Nesse sentido, o movimento das artes plásticas, em sua depravada hostilidade contra o belo, surge como paradigma dessa degradação.

Maurício Righi

 

       Depois do ataque ao sexo masculino, é a vez de a mulher, representante da Beleza e do Mistério, ser anulada enquanto tal e na nudez que a revela mulher – a menos que seja o tipo de nudez que lhe expõe os fluidos e a decadência da carne.

 

Percebe-se (…) uma rendição incondicional ao biológico em sua faceta decadente e fragmentária, uma vez que o biológico tende, em seu processo orgânico, e de forma inexorável, ao desgaste e à decomposição, junto à correspondente perda de unidade orgânica e harmonia estética.

Maurício Righi

 

 

As forças de decomposição da cultura e da arte, a erosão do género e o materialismo tonificam a apoteose pueril do sucesso, do consumo e da felicidade, concorrendo todos para a exteriorização e a superficialidade do pensamento. Aqui se insere também a influência do New Thought, da psicologia positiva, do coaching e dos movimentos sociais da berra, com as suas fórmulas light, visando substituir moral e religiosidade pelo conforto de lemas progressistas, forçando um falso sentido de harmonia e contentamento que tenta iludir a razão, levando-nos finalmente a repetir que 2+2 = 5.

No entanto, “Na falta de eficientes modelos de transcendência, dos quais dependem as felicidades duradouras, a cultura e as pessoas tendem naturalmente ao vazio e, consequentemente, à infelicidade” (Maurício Righi). O mesmo horror ao vazio, a insegurança, a incapacidade de estar só e de cultivar a solidão que faz com que muitos acendam a televisão desde o raiar do dia farão também com que esses, complacentes com as câmaras que crescem como cogumelos fora de casa, também as queiram instalar dentro. As câmaras e a vigilância tornaram-se o Olho desfigurado da transcendência, a relação que subsiste com o Invisível, despido de Mistério e ao serviço da ordem social, que apenas o sacrifício humano pode aplacar.

 

Barco (2).jpg

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

02
Set23

Enxoval: precisa-se

Sónia Quental

 

Definir o politicamente correto com precisão não é fácil, mas reconhecê-lo quando está presente é. Ele tem sobre mim o mesmo efeito do ruído que, durante minha infância, a unha do professor fazia sobre o quadro-negro quando o pedaço de giz estava curto demais, causando-me frio na espinha. Trata-se da tentativa de reformar o pensamento tornando certas coisas indizíveis. Consiste, ainda, numa ostentação conspícua, para não dizer intimidadora, de virtude (a qual é concebida como a adoção pública das visões ‘corretas’, isto é, das visões ‘progressistas’) mediante um vocabulário purificado e um sentimento humano abstrato. Contradizer esse sentimento ou deixar de usar tal vocabulário é excluir-se do grupo de homens (ou deveria eu dizer ‘pessoas’?) civilizados.

 

Theodore Dalrymple

(citação retirada de edição brasileira)

 

 

A maior desfeita foi quando passei a receber enxoval, porque quem o dava lhe ganhou gosto, mas não me contagiou com ele. Se com o tempo aprendi a dar valor às prendas em dinheiro, o enxoval deixou-me sempre um travo inconformado a desilusão. Isto até saber que Jordan Peterson tinha sido condenado a um campo de reeducação (estabelecimentos que ameaçam instalar-se deste lado da civilização) e de novo me render aos desígnios da Providência. Admirei a sabedoria genial das minhas tias, que não era porque não me conhecessem que ofereciam enxoval, mas porque tinham a premonição das circunstâncias em que faria falta. Talvez me adivinhassem no cadastro o crime de ferir sensibilidades e achassem que o sítio para onde seria mandada carecesse de toalhas com cheiro a mofo.

Tenho a sorte de o Jordan Peterson ter chegado primeiro. Pelo menos, terei alguém interessante com quem trocar bilhetinhos nas aulas de socialização. De certeza que tira apontamentos melhor do que eu e tenho a esperança secreta de que me deixe copiar nos testes. Eu posso ajudá-lo na parte linguística, a declinar a lista de pronomes (é fácil para quem já estudou latim). Se formos apanhados, penso que é mais provável que seja ele a levar com a cana, uma vez que é homem branco, falo – quero dizer, símbolo – do patriarcado, por isso posso estar relativamente descansada. Não me importo de dividir o lanche com ele, já que tenho muitos paninhos de renda, bordados pela bisavó, e, da primeira vez que me educaram, ensinaram-me a não ser egoísta. Espero que faça vista grossa às manchas amarelas, pois só no mês passado aprendi a usar lixívia.

Vestido amarelo (2).jpg

 

Pode ser que no campo de reeducação deem aulas de economia doméstica e não façam discriminação de género, para que o Jordan Peterson também possa ir. Se ele souber fazer um pequeno-almoço energizante, sem glúten nem hidratos de carbono, seremos amigos para sempre. Sei que ele vai gostar de mim, porque estou habituada a arrumar o quarto. Uma vez, quando fui a Tormes, a senhora da limpeza não me deixou toalha de banho, porque eu fazia a cama todos os dias e ela pensou que, em vez de duas, só uma estivesse ocupada. Também aí o enxoval vinha a calhar.

Acho que vou sugerir no centro de reeducação a ideia que tivemos em Tormes quando o calor se tornou intenso, que foi levar cadeiras de plástico e sentar-nos à sombra das videiras, enquanto ouvíamos a voz melíflua do Pedro Eiras discorrer sobre Eça de Queirós. Suspeito que Jordan Peterson vá gostar do Eça, que me envergonho de já não ler, mas parece-me que também ao portuguesinho receitariam a reeducação. Que bom que seria eu, o Jordan e o Eça a especular quantos géneros há para dois sexos e a comer as uvas da ramada, com os meus paninhos de renda no colo.

 

 

Fotografia: 2022 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

03
Ago23

A cultura das "dicas"

Sónia Quental

Also, in our search for tools, we become what we seek: a tool. We reduce ourselves to being primarily pragmatic and utilitarian. 

Peter Block

 

Não existem valores além dos que são úteis: algo tem valor se tem utilidade. E qual é a utilidade da beleza? (...) A beleza partiu para duas direções: para o culto da feiura nas artes e para o culto da utilidade no quotidiano. (...) Acontece que nada é mais útil do que o inútil.

Roger Scruton

 

 

Já tenho designado a cultura de formação em que vivemos como a “cultura dos workshops”, mas venho aqui emendar o título e a realidade que descreve para a sua versão minimalista: vivemos é na cultura das dicas. Vejo livros e opiniões de leitura elogiarem muito autores que dizem dar dicas (“práticas” ou “preciosas”) e facilitar processos. É a nova coleção de obras para totós que, ao contrário da que assim trata explicitamente o leitor, o faz dando-lhe palmadinhas nas costas e entregando-lhe um diploma de burrice mascarada, que ele agradece com vénias.

Quer no meu percurso escolar e académico como aluna, quer no profissional como formadora, a realidade que fui conhecendo com o passar dos anos foi de uma facilitação cada vez maior: facilitação dos critérios e das notas de admissão aos cursos, dos programas ensinados e finalmente dos critérios de avaliação e validação, tudo isto administrado com uma linguagem paternalista que passa por inclusiva e que está ao serviço da degradação do rigor.

Não só no contexto da formação profissional, mas também no mundo recreativo, da arte e do desenvolvimento pessoal e espiritual, deparei-me com o fenómeno cada vez mais popular dos workshops. Constatei que qualquer pessoa com qualificações obscuras e competências duvidosas podia viver de dar workshops de 2 ou 3 horas, com muitas dicas e demonstrações, mas muito pouco de substância. É o primado da experiência e da prática, que transforma ignorantes em autoridades na matéria, sob o lema do DIY. Se o aluno quiser levar à prática as dicas recebidas e tiver dúvidas, terá de fazer outro workshop ou de se desenrascar com os truques baratos que aprendeu, pesquisando na internet ou vendo vídeos no YouTube. E não é preciso muito para passar a acreditar que, com mais umas dicas, ele próprio estará habilitado a dar workshops e a ganhar uns trocos à margem.

Na rampa (2).jpg

 

Não quero com isto dizer que não haja pessoas versadas que o são sem terem passado pelo ensino superior ou formal e que tenham desenvolvido um saber respeitável à custa da experiência, que não menosprezo, e da dedicação a uma disciplina, arte ou ofício. Que o que se faz nos tempos livres, por paixão, não possa transformar-se, por mérito, em profissão. A vocação e o esforço têm importância, tanto ou mais do que o saber teórico adquirido, desafiando as metodologias com que as instituições de ensino e formação o transmitem e aferem. O que quero, sim, dizer é que casos como estes representam uma minoria e que o grau de dedicação necessário para a conquista de mérito é elevado.

No entanto, tenta-se hoje inculcar uma mentalidade contrária à do trabalho e do mérito. Tudo o que é preciso para se dominar uma técnica é frequentar workshops, ler newsletters e receber umas "dicas". Para se ser profissional numa área, basta ter-se atividade nessa mesma área, sejam quais forem as habilitações, preparação e real competência dos ditos profissionais, que, após um ano ou dois, ao ritmo de progressão na carreira das atuais gerações, já se dão o título de “especialistas”. Se tiverem um podcast, o título então é automático.

As palavras de ordem desta cultura estão por todo o lado: “técnicas”, “dicas”, “exemplos”, “prático”, “pragmático”, “útil”, “direto”, “fluido”, “leve”, “fácil”, “simples”, “poderoso”, que recheiam um discurso de motivação extraído da literatura da autoajuda, que, no estilo conversacional também em voga, procura injetar autoconfiança e uma fé cega no sucesso – uma das poucas entidades invisíveis em que ainda se acredita e a que se acendem velas. A linguagem religiosa marca, aliás, presença assídua nesta cultura materialista, em que já vejo referirem-se aos livros práticos como “bíblias”, logo ao lado da palavra “top” como classificação sumária – a palavra final que os críticos, leigos, mas especialistas, têm a dizer sobre assuntos que não têm arcabouço para avaliar.

A cultura de formação atual é uma cultura de deformação, subserviente à lógica dos mercados. Enquanto se anda à procura de dicas, para abreviar caminho, baixa-se cada vez mais a fasquia. O que se exclui das estratégias de facilitismo e inclusão, que o que querem é entregar certificados, é a exigência e a qualidade. Quem perde somos todos.

 

 

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0