"Outsiders"
(Dedicado à comunidade de outsiders que acompanha Howdie Mickoski e que comentou o vídeo abaixo.)
Why would you wanna fit in with insanity?
Howdie Mickoski
Presumível forasteiro,
Devo começar por te dizer que o cão da vizinha vai à rua mais vezes do que eu. Se tocares à campainha, é provável que não abra, não porque esteja de robe, mas porque não disseste que vinhas. O esforço de me obrigar a simpatias com estranhos ou conhecidos precisa de ensaio demorado, por isso avisa quando vieres. Convém acrescentar que não reajo bem às quebras de rotina e que sou ciosa das âncoras que me fixam.
Se quiseres fazer conversa, não me perguntes o que tenho feito. Sabes que nada disso importa e que vieste para falar do insólito, mesmo que não o tivesses planeado direito e que comecemos, hesitantes, pelo postiço das formalidades, porque por estas bandas o costume é falar-se do tempo. Ainda não sabemos que temos Saturno na mesma casa e que podemos passar ao que interessa, sem precisar de aquecimento ou cautelas. Em mistura ao comentário pouco convincente sobre o calor, menciono brevemente um filme de terror e respondes-me com a angústia da luz do dia que começa a escoar-se três minutos de cada vez depois do solstício de verão – angústia subterrânea para a maioria das pessoas, mas que o nosso termómetro regista. Entre esta troca improvisada e a galope, que desemboca no tema dos rituais e sacrifícios humanos, estalam-me foguetes por dentro.
Posso descontrair, sem ter medo de dizer a coisa errada, das interpretações que vais fazer, se vais ficar ofendido ou magoado quando te digo a verdade. Não me pedes fórmulas de assertividade nem te importas que rosne se for caso disso, e o alívio que sinto faz-me querer encostar a cabeça e ficar, receber enfim no silêncio quem domina o idioma e não me cobra palavras. Não me estranhas, mesmo que sejas estrangeiro por cá. Não me acusas de julgamento nem confundes as minhas intenções, porque o nosso desencaixe é simétrico. Identificas-te como homem, eu como mulher, e não usamos pronomes como fetiches. O nosso fetiche é o Profundo. É com isso que nos identificamos, um plano mítico para quem vive à superfície, deformando o corpo, confundindo a consciência e escamoteando palavras, mutilada a razão com um arco-íris na machadinha.
Gostava de continuar a conversa, mas está na hora de ir à rua. O cão da vizinha leva-me três voltas de avanço.
Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados