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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

07
Ago24

A brasa e a sardinha

Sónia Quental

 

         Se o jornalismo alguma vez teve pretensões de isenção e objetividade, a falta das quais era com maior ou menor habilidade disfarçada, essa tentativa desapareceu sem deixar rasto. Basta passar os olhos pelos títulos das notícias em destaque – que classificam sem hesitar os participantes de protestos como sendo de "extrema-direita", "racistas" ou o já clássico "negacionistas", em contraponto à reverência religiosa com que recitam os dogmas de uma qualquer seita de "especialistas" – para se constatar que as preocupações deontológicas não estão na ordem do dia.

         Na mesma medida em que, nos últimos anos, foram surgindo novos mecanismos e pretextos de censura, acompanhados da inauguração do cargo delirante de fact-checker, a manipulação das notícias é perpetrada às claras pelos grandes órgãos de comunicação social, responsáveis pelas manobras de desinformação de que eles próprios acusam os indivíduos e grupos que não se cansam de rotular. A chave de leitura é dada logo no título da notícia, não vá a perspicácia falhar ao leitor: são indivíduos de extrema-direita, a única explicação para um comportamento de uma bizarria que fazem questão de esquadrinhar, motivada em ideais patológicos, de rejeição dos direitos humanos e do bem comum.

         Na sua fase emergente, este ambiente encontrou resposta nas novas tecnologias da comunicação, que criaram os meios para o aparecimento de canais alternativos ao mainstream, abrindo novas formas de acesso à informação, que deixou de ser monopolizada pelos jornalistas profissionais. A internet deu direito de antena a YouTubers, autores de podcasts e canais independentes, que vieram colmatar a falta de fontes de verdade confiáveis. Mas também na arena do alternativo a parra é mais do que a uva, acabando este por assumir os contornos de um segundo mainstream, nalguns casos tão tendencioso e excessivo quanto aquele de que tenta demarcar-se.

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         As novas plataformas da informação dirigem-se hoje a um cidadão mais escolarizado, que as procura para se educar e estabelecer comunidades em torno de uma afinidade de interesses. É neste meio que se afirma uma plêiade de coaches e gurus autoungidos, dotados do carisma inoxidável da certeza, e de seguidores da mesma lavra, que absorvem com facilidade o hábito disseminado da rotulagem. Além da máxima irónica do "não julgamento", tornou-se corriqueiro o manejo de termos como "tóxico" ou "narcisista", que a pessoa comum aplica com ligeireza às relações pessoais. "Estava numa relação tóxica", explica aquela que se apresenta como vítima sem precisar de o dizer, depreendendo-se com naturalidade que não tivesse participação na dinâmica que assim descreve. Invariavelmente, o outro era um narcisista, com todo um jargão associado à condição que o locutor domina como especialista declarado.

         Torna-se claro que a quantidade e a velocidade da informação, com o empurrão da evolução tecnológica, não se fizeram acompanhar de uma maturação humana comparável. Os grandes media já não são soberanos, agarrando-se com tenacidade à réstia de controlo que ainda têm sobre a opinião pública, que procura emancipar-se e tornar-se mais expedita no acesso à notícia, bem como ao que já é vulgo designar-se "conteúdos". Neste imenso mar de sargaço, cada um aproveita o que lhe convém, que o mesmo é dizer "puxa a brasa à sua sardinha", técnica de antanho agora em formato rich media.

         Às alucinações privadas, não faltam meios; às coletivas, não faltam estímulos. Alguns sugerem que a solução passa por deixar de comer sardinha. Outros trocam receitas. Outros ainda querem reparti-la em partes iguais, desde que não fiquem com as espinhas. Os cautelosos lembram a toxicidade dos mares e o mercúrio do peixe. Rui Moreira quer instalar câmaras, para que ninguém tente pôr a mão à sardinha, enquanto obriga os renitentes ao voto. Os sabichões citam de cor Einstein, pregando que a solução não está ao nível do problema. Os evoluídos franzem o sobrolho, porque não se deve dizer "problema", mas "desafio", e os desafios são oportunidades. Oportunidade não perde Elon Musk, que ora pela sardinha enquanto lhe liga o cérebro à nuvem e se faz dono de céus e oceanos. Os extraterrestres ficam-se pelas pipocas.

 

Fotografia: © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

16
Set23

A tirania dos novos infantes

Sónia Quental

 

Existe uma demonologia própria do politicamente correto. Certos rituais midiáticos são do âmbito do exorcismo, para afugentar o diabo da comunidade política – o diabo que assume os traços da intolerância.

Mathieu Bock-Côté*

 

O sentimentalismo é a expressão da emoção sem julgamento (…). Talvez ele seja pior do que isso: é a expressão da emoção sem um reconhecimento de que o julgamento deveria fazer parte de como devemos reagir ao que vemos e ouvimos.

Theodore Dalrymple*

 

 

 

Interrompi a custo a leitura da obra O Império do Politicamente Correto, de Mathieu Bock-Côté, e respirei fundo algumas vezes antes de enfiar as luvas para detergentes abrasivos e mergulhar mãos nas “Diretrizes da comunidade” do Pinterest, exemplo cabal da realidade progressista descrita naquela obra.

A primeira vez que notei uma lógica de funcionamento anómala nesta rede social, anos antes da pandemia, foi quando tentei fazer uma pesquisa com a palavra-chave “sapiossexual” e a plataforma recusava apresentar resultados**, por entender que o conteúdo violava as políticas da comunidade, argumento entretanto adotado por outros canais.

Por estes dias, com a pujança orgiástica dos novos mecanismos da censura, dei-me conta de um Centro de denúncias e violações com uma lista de pins removidos ou com distribuição limitada, por se inserirem ora na categoria de conteúdo para adultos, ora na de violência gráfica. Fui espreitar o último que tinha incorrido em tal violação e tratava-se do rosto banhado em lágrimas de uma estátua de Nossa Senhora das Dores, que a declaração associada à denúncia dizia ter transgredido as diretrizes sobre violência gráfica, por conter “imagens perturbadoras, como violência iminente, caça a animais ou ilustrações gráficas com atos de violência explícita ou grave”. Pensei que estivesse a olhar para a imagem errada, mas não – a descrição referia-se mesmo àquela, uma imagem de que eu tinha simplesmente gostado.

Após um exame um pouco mais demorado das acusações relacionadas com a minha atividade, constatei que violência gráfica eram também representações artísticas da crucifixão de Cristo, estátuas simples de outras divindades e a carta 10 de Espadas do Tarot, referindo-se, por sua vez, o “conteúdo para adultos” a obras de arte que expunham a mínima nesga do corpo humano, incluindo cartoons com personagens em biquíni. Já dentro das atividades de incitação ao ódio, havia uma citação que elogiava a natureza itinerante e livre das “almas ciganas”. E mais não quis ver, porque as luvas de nitrilo não chegavam para tanto e a inépcia respingava por todo o lado, ameaçando manchar-me a capa recém-lavada do sofá.

No parágrafo inicial, que descreve a missão da plataforma, o apelo reiterado é à denúncia – muito simplesmente porque “nem todos os conteúdos são inspiradores”. E, se dúvidas restassem de que a redação destas diretrizes foi feita por crianças, basta atentar na secção sobre assédio e críticas, em que a mágoa arbitrária que alguns possam sentir, por atos que entendam como ofensivos, é critério de exclusão ou limitação da visibilidade de conteúdos. A acusação tornou-se sinónimo de culpa, como bem aponta Theodore Dalrymple na obra Podres de Mimados, provindo de um julgamento automático e omnipresente de quem, ironicamente, se posiciona contra os julgamentos e tanto trabalha para combater teorias da conspiração.

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Pretende-se purgar os espaços sociais virtuais de todos os vestígios de negatividade, para que se mantenham “inspiradores” e felizes – acrescentaria que de “bom gosto”, característica que aparentemente não abençoou a estátua de Camilo no Largo do Amor de Perdição, considerada feia pelo presidente da câmara, pornográfica por outros tantos “especialistas” em arte, em tendências que confirmam a ameaça assustadora da purga a pairar sobre o mundo físico.

 

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*Citações extraídas da edição brasileira das obras.

**A esta data, as restrinções aplicam-se apenas ao termo com um "s": "sapiosexual", o que significa que a correção ortográfica iludiu a censura.

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0