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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

16
Ago24

Deus-Ikea

Sónia Quental

           

         A designação não é minha, mas de um artigo de Pedro Saraiva Ferreira sobre as novas espiritualidades que vieram substituir a religião – uma religiosidade de consumo, que o autor classifica como um “Cristianismo sem Cristo”, à imagem do Homem psicológico, que nasceu para ser feliz, indiferente à ideia de salvação. Guia-o uma busca pelo sagrado que segue o modelo “faça você mesmo”, à semelhança dos móveis do Ikea.

         A única coisa que tenho contra os móveis do Ikea são as arestas cortantes, as bicadas que às vezes dão e ter de pedir a outra pessoa para os montar. Não sou essa mulher emancipada que se diverte em noites de insónia agarrada aos hieróglifos de manuais de instruções e a dezenas de parafusos, peças, pecinhas e objetos de natureza incógnita, com uma pequena chave como varinha mágica, capaz de encaixar tudo no sítio.

         No entanto, serve-me a comparação para defender que, no que toca à busca do sagrado, não há como escapar ao DIY: cada um tem de redescobrir a roda, levantar a própria cama. Podemos formar comunidades, reclamar com o bot do atendimento ao cliente, pedir orientação a quem já montou a sua ou vai mais adiantado, mas serão sempre nossos os braços e as mãos, a irritação solene, a paciência ao limite, os momentos de epifania, as misérias, a glória.

         Quem faz questão de montar um móvel sozinho, sem os selos de autoridades externas, embalados em dogmas ossificados, não procura necessariamente os atalhos enganosos da autoajuda nem está preocupado com garantias de bem-estar. Tem como fito o Profundo, que quer conhecer e amar, um palmo de cada vez, na aspereza salgada da pele. Não anda em busca das "opiniões certas" que o colunista do Observador opõe à tentação do relativismo ou à fantasia das preferências pessoais – nem sequer lhe interessam opiniões, que não entram no túnel estreito que se vai abrindo com o peso do corpo no chão, os olhos sondando o céu, o punho esfolado de vontade.

         Não vejo Felicidade que não seja salvação.

 

Juncos verdes - B&W (3).jpg

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

08
Jun24

Expulsos do Paraíso

Sónia Quental

Como o cão, minha língua ladrava

à aterradora beleza.

 

Adélia Prado

 

One thing is certain: beauty has a holy vibration.

 

Zan Perrion

 

 

Quando vejo a democratização da moda, não me sinto representada: sinto-me expulsa do Paraíso. A reprodução do meu corpo real numa campanha inclusiva, aberta à diversidade dos padrões de beleza, estende-me um conforto temporário, que percebo trémulo e logo tomado por uma repulsa insidiosa.

A onda solidária de celebridades que expõem a celulite no Instagram também não me faz sentir mais próxima delas nem vê-las como mais humanas. Pouco me afrouxou os complexos: é só mais uma manifestação da sordidez que procura a infatigável ribalta.

Expor corpos reais, mostrar as pessoas “como são” é de uma nobreza que rápido oxida, com a doutrina da aceitação facilmente se convertendo no cânone da complacência, descartando como supérflua a atitude reverencial que a beleza evoca até em quem não tem fé. É, pasme-se, o efeito transfigurador da beleza que afinal chama à inclusão.

Quando me vejo fisicamente representada pelas marcas que abraçam a diversidade, sinto-me diminuída, em vez de reconhecida. Fixa num molde definitivo, lembrando-me sem descanso que não sou digna de entrar no Paraíso – instalando a dúvida de que sequer exista.

Com o pecado original, veio a feiura primordial. É por isso que no caminho da salvação está o resgate da beleza perdida, que não é atributo intangível da alma, mas totalidade incorporada. A certidão de óbito que tentam passar a Deus só será oficial quando conseguirem erradicar a beleza, Sua face e condão. Depois da arte, é a vez da mutilação e carnavalização dos corpos, dos padrões estéticos generalizados, atribuídos a capricho aleatório.

A carne lastima a inocência perdida quando se vê retratada no seu realismo cru, tentando fazer-nos crer que estamos bem como somos (o que quer que isso seja) e que o é preciso é abolir os tabus, encetar manobras enérgicas de reanimação da autoestima.

Sem beleza, apenas a violência pode medrar. Como na teoria das janelas partidas, a degradação a céu aberto convida à franca ação demolidora. Não nos torna mais felizes ou benévolos. Para isso, continuamos a ter de esticar o pescoço, olhar para cima. Assim se fazem os cisnes: contemplando a existência do Paraíso.

 

Em lugares onde tudo é feio e esteticamente indiferente, é fácil ao comportamento modelar-se por esse padrão, tornando-se vulgar e grosseiro (…).

Theodore Dalrymple

 

02
Mai24

Os novos tementes a Deus

Sónia Quental

Com o aniversário a aproximar-se, sinto-me tentada a celebrar a data com um batismo no Douro, à semelhança de Russell Brand no Tamisa, imitado por uma onda de celebridades em cenários nem sempre tão exóticos, mas igual publicidade nos tabloides. O único senão é que já fui batizada uma vez, mas, se conta para alguma coisa, não me lembro disso, e tenho quase a certeza de que o cadastro estava praticamente limpo.

É como celebrar as bodas de prata ou de ouro do casamento, representando aqui a Igreja Católica o cônjuge de um matrimónio arranjado antes de me rebentarem os dentes (se fosse depois, é provável que eu já mordesse), cujos votos posso agora renovar mais senhora de mim.

Pondero, enfim, alistar-me no pagode dos novos tementes a Deus, como também gostam de se chamar. Além de ser exonerada dos pecados, Deus passará a ser o único a poder administrar-me justiça, porque de nenhum outro admito julgamento nem a ninguém presto contas. Ainda por cima, não tendo Ele apartado nem e-mail, e sendo pouco dado a aparecer em público, não há quem possa pedir as atas das diligências.

Espero que simpatize com a bajulação e o suborno, dê um jeitinho aqui e ali em troca de 20 padre-nossos e 10 ave-marias, 20 metros de joelhos pelo chão. Se nos desentendermos ou afrouxar o temor que lhe devo e o estragar com AMOR (mesmo que orgânico), os sacerdotes católicos aí estão a servir de conselheiros matrimoniais, reavivando com vigor o medo constante a esse Deus que se esconde na escuridão e gosta de pregar sustos. O susto e o reforço intermitente são, a bem dizer, o modelo de educação dos tementes a Deus, presos, não pelo fio da navalha, mas pela caridade e a esperança, à mistura com o condicionamento operante de Skinner, que já converteu muitos à fé.

 

13
Mar24

Domingo, manhãs

Sónia Quental

Saio nas manhãs de domingo à hora a que apenas os turistas japoneses cobrem de flashes a Capela das Almas. Nesse momento de transição, em que a luz e a sombra dão de ombros uma com a outra, a coexistência de fenómenos contrários está em evidência.

Ao lado da loja de manutenção de bicicletas, onde um grupo de ciclistas dispostos marca encontro todas as semanas, emerge de uma cave um bando de vampiros, sofrendo as dores do alvorecer com um montinho de erva na mão, que deduzo não será incenso nem mirra, contemplando-o como que esperando que a luz do dia também o ponha a fumegar. Não fico para ver, embora note que a indumentária daquelas que já não posso jurar serem do sexo feminino deixa pouco à imaginação.

O Facebook avisa-me que é dia de eleições. No Twitter (X), alguém brada que as mulheres não são nada sem a vocação da maternidade. Quase me engasgo com a torrada, mas consigo reunir forças para lhe enviar à distância a minha tísica compaixão maternal. Atravessa-me o pensamento a experiência do horrendo e do sublime no baile de domingo passado, sem saber o que esperar deste. Ao passo que o sublime é fugaz, o horrendo tem o hábito de se pegar, por mais que o sacuda.

Pelo caminho, a memória da semana traz-me ecos sumidos: encaixa a baciaaperta os glúteos. Pessoas com a chave na mão pedem duas vezes ajuda para lhes abrir a porta de casa, apontando-me a vocação a que sacrifiquei a maternidade: facilitar entradas.

Quisera seguir os passos de Sophia neste meu caminho da manhã, mas não é época de figos pretos no mercado, que tem hoje o seu dia de descanso. Aqui não há cigarras que cantem o silêncio de bronze – apenas homens que sacodem os tapetes do carro. Onde quer que a manhã pouse, o sublime chega-se com a sua lágrima de mel numa paisagem de azulejos, harmonias e contrastes. E o amor do Invisível pelas coisas visíveis afigura-se ralo só a quem precisa de altar para deitar os joelhos ao chão.

 

15
Jun23

A devoção não magoa

Sónia Quental

Série com o Véu - Madalena (03.12 (2).jpg

 

We are called by the divine like an eagle is called by the wind.

 Neil Kramer 

 

In the heroine’s journey we realise that the dragon lies not in a far-off land, but curled within.

 Lucy H. Pearce

 

           

Ao primeiro par de sapatos que me magoou, percebi que tinha sido feita para andar descalça. Como com quase todas as verdades que estorvam, fiz-me desentendida para passar vez. Levei os pés para longe da terra, protegidos por sola e desconforto, e continuei em busca de chão, ignorando os arrozeiros que me casavam ao piso.

Se me tivessem dito que a devoção não magoa, talvez tivesse sido mais pronta a largar parafernália, em vez de me sujeitar a apertos escusados, bolhas, joanetes, um sem-fim de mazelas por meter o pé onde não era chamado. Ter-me-ia ajoelhado mais cedo.

Não era dessas crianças com resposta pronta quando lhes perguntam o que querem ser quando forem grandes. A mim, já me chegava ser grande. Os adultos usavam sapatos e seguiam por caminhos batidos, por isso o que tinha era de ir atrás e transformar-me num cisne dócil. Seria inevitável se me esforçasse o bastante.

Mas o esforço nunca bastou enquanto tentava usar sapatos que não eram os meus, seguir por caminhos que eram de todos. O horizonte continuava à distância e as minhas costas, longe de produzirem penas, torciam-se em nós indecifráveis, porque o mundo era pesado e eu não merecia o céu.

Tentei usar calçadeira, ver se os sapatos alargavam com o uso, aplicar-lhes verniz, a eles e a mim, fazer arranques de voo. Acontece que todo o verniz estalava, o batom não pegava nem me assentavam os moldes.

Quando nos pés não havia mais lugar para marcas, o corpo começou a esfarelar-se em terra, dos nós na espinha rebentaram ramos que me embrulhavam os membros, desabrocharam flores nos poros desimpedidos, orbe espacial em convolução orgânica. A força da gravidade trouxe-me ao chão. Árvore alada, prostrada na terra, com pés que se afundam e raízes que sobem, não me doía a devoção.

 

Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

10
Jun23

Isso que existe

Sónia Quental

No labirinto.jpg

Assim como a subida da maré levanta todos os navios, o resplendor do amor incondicional num coração humano eleva toda a vida.

 Fran Grace

 

All the love and affection and kindness that came from Maharajji – you cannot get these from man.

 Ram Dass

 

 

O olhar de mais puro amor que alguma vez presenciei foi entre uma monja e uma criança. Parei a contemplar a cena com um pudor maldisfarçado, naquele princípio de noite em que as velas ainda não ardiam no Santuário de Fátima.

Ali estava, antes da procissão, como noutras ocasiões em que fui a Fátima, sem conseguir sentir qualquer beatitude ou atmosfera que sublimasse o lugar, além da miséria das pessoas em súplica ou do castigo de quem cumpre promessa. Chagava-me a exploração comercial dos peregrinos, sugados até ao tutano pela mais mísera refeição que tomassem, sem que a sua verdadeira fome fosse saciada. A missa a que numa dessas manhãs assisti pôs à prova o que me restava de candura: como é possível celebrar-se a fé com tamanho artificialismo e ostentação?...

A monja do olhar amoroso não era uma monja qualquer, mas essa é outra história. Naquele momento, trouxe-me à lembrança o documentário sobre Sri Prem Baba, Isso Existe, que traduz no título o arrebatamento de quando conheceu o seu mestre e sentiu o amor que dele irradiava. Outros, como Ram Dass, deram testemunhos semelhantes.

Naquela noite de maio, que à memória parece ter sido fresca, percebi que não era preciso viajar à Índia nem a lugares remotos para se achar raridades. Elas encontram-se no lusco-fusco do comum; dão-se a quem se dispõe a cruzar o umbral. Podíamos encontrá-las ao nosso lado, não nos achássemos pequenos em demasia.

Uns, ocupados com o corre-corre mundano, não aspiram a mais e, mesmo quando inclinados para a religiosidade, repetem litanias por tradição ou sentido de obrigação; os aflitos dividem-se entre as velhas e as novas igrejas, estas com rituais mais emancipados, mas continuando a falhar as promessas aos crentes. São poucos os que buscam – sabe-se que ainda menos os que encontram e realizam. Trancados na separação que trazemos no corpo, não queremos largar, embora, no fundo de nós, mesmo não lhe chamando Deus, algo se lembre e clame por aquele Amor que vi em Fátima, amor que salva e descansa.

É “isso” que procuramos sem saber, por vielas tortuosas e esconsas, crianças perdidas à espera que Ele nos reconheça e nos dê a graça do Seu olhar, contritas das nossas feições desfiguradas tanto tempo depois da Perfeição.

 

Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

29
Abr23

Luminárias

Sónia Quental

Escadaria do Mercado do Bolhão (4).jpg

It is so dificult to find a teacher these days. There are mostly preachers. A real teacher has no teaching.

H. W. L. Poonja

 

Most teachers are false teachers, and most seekers and false seekers.

H. W. L. Poonja

  

Percebo que Alexandre Mota quisesse perguntar a Jordan Peterson que compatibilidade haveria entre o Deus Cristão e aquele a que de modo incauto chama o “Deus Panteísta”, à guisa de matchmaker desavindo, em busca de uma luminária que lhe dê razão.

Andamos, muitos, em busca de luminárias, entre tantos falsos brilhos e a falta de referências que alumiem um ignoto deo. Percebo o que diz, apesar da falta de rigor, quando fala das “experiências esotéricas ao estilo panteísta” que vieram substituir o fascínio do existencialismo. Penso, sim, que é preferível “agir como se Ele existisse” do que sucumbir à convicção fácil do ateísmo (embora me pareça que a diferença não seja tanta assim).

Também a mim me indignam muitas das tendências que nomeia no seu artigo, que dão má fama ao que é da ordem do Invisível e a quem se empenha com seriedade em conhecê-lo. O sincretismo New Age é o red light district da Espiritualidade. Estou bem familiarizada com a confusão entre desenvolvimento pessoal e espiritual e com quem se considera espiritual porque queima incenso, faz visualizações criativas, aplica a lei da atração, lança o pêndulo e as cartas, comunica com os anjos e os mestres ascensos, pratica Reiki, Access Consciousness ou ThetaHealing, fala como entendido das crianças índigo e da era de Aquário, faz regressões a vidas passadas, leituras da aura, anda com cristais pendurados ao pescoço, recita afirmações positivas, participa em cerimónias ayahuasca e atira namastês à discrição. Enjoei das frases feitas de grupos que viram verdadeiras seitas, empenhados na eterna procura, mas não no Encontro. É disso que também se priva quem age “como se Ele existisse”: da oportunidade da descoberta.

É à boca cheia que se ouve falar de “luz”, “energia”, "cocriação" e do malfadado “ego”, nos locais mais desusados, por seres que trajam de branco, cobertos de medalhinhas de Nossa Senhora e de Cristo Jesus, que são “tu cá, tu lá” com o Arcanjo Miguel e têm contactos privilegiados na 9.ª dimensão. É o auge da pornografia. A espiritualidade tornou-se um acessório barato, que ora se põe ora se tira, consoante a ocasião e o dress code, deixando atrás de si um rasto carnavalesco de inquestionável mau gosto.

Por isso, caro Alexandre, entendo perfeitamente o que diz. No entanto, por muito respeito e admiração que sinta por Jordan Peterson, sei que não será ele a dar-lhe a resposta que procura – desde logo, porque ele próprio não a tem. Deus não se revela pela via do intelecto. Nas expressivas palavras de H. W. L. Poonja, “If you are looking for diamonds, do you go to a potato shop?”

Se quer começar por algum lado, sugiro-lhe, caro Alexandre, que comece por se livrar da suposição de que Ele existe, teve batismo cristão e é um “alvo exterior” (a abater ou não). Atreva-se a admitir que nada sabe e que só daí poderá partir: sem saber o que vai encontrar. Livre-se dos conceitos que formou antes de querer saber se o Deus cristão pode dar o nó com o “panteísta” e quem irá presidir ao casório. Remova os modificadores do nome. E, se quiser falar em esoterismo e budismo, estude-os primeiro. Não os confunda com as versões aciganadas que por aí circulam nem os irmane à erva daninha do relativismo. Desenvolva a faculdade da discriminação. Se precisar de ajuda, escolha luminárias que realmente saibam, não sem antes começar a acender a própria luz – porque só as luminárias se reconhecem entre si.

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

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