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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

08
Jul23

Aprender a ser musa

Sónia Quental

Juncos verdes (1).jpg

The human soul is hungry for beauty (…). 

John O’Donohue

 

 When you’re nothing, it’s always a good-hair day. 

Byron Katie

 

 

Ninguém aprende a ser musa. A vida não leva para isso. Na antestreia da maioridade, entregaram-me o roteiro: curso com saída – emprego – marido – assentar, para que não se desperdiçassem em mim os dotes de menina prendada. Em nota de rodapé, sublinhava-se, com letra não muito miúda: deixar de ser mal-agradecida e, acima de tudo, não fazer ondas, porque os conflitos não levam a nada.

Hoje, olho para o que fiz da vida, ou para o que ela fez de mim, para o curso sem saída (sem saída que eu queira), o trabalho sem emprego, o marido por materializar, ainda abalada porque há dias alguém se referiu a mim como mulher de meia-idade. A única coisa que faço razoavelmente bem é a sentar, desde que não me peçam agachamentos, e não há dúvida de que tenho talento para as ondas, que são o que mais gosto de fazer. Ainda assim, não invejo a vida de quem tem tudo aquilo que me parece faltar, fora as ondas.

Não queria sair do meu curso: queria ficar, ser para sempre aluna de professores apaixonados, que não ensinavam coisas práticas, mas ensinavam a sua paixão, adamantinos diante dos grupos de recém-adultos que saíam em debandada a meio da aula para irem jogar cartas para o bar, enquanto eu bebia as palavras daqueles amantes incendiados, com vergonha de quem lhes dava costas. Não era aluna do meu curso: era devota e foi como quem escuta blasfémia que, já adiantados nele, ouvi uma dessas que faziam tráfico de apontamentos e tiravam o curso no bar perguntar-me se gostava daquilo que estudava. Gostar??...

Mas, chegada ao último ano, acabaram mesmo por me mostrar a saída e, como um tropo gasto, em vez do final feliz, foi a realidade que encontrei à porta. Vi que era feiinha e não me convinha. Ser-se adulto não era o sonho que imaginava quando não queria nada além de crescer. Cedo apurei que a vida profissional era uma continuação do jardim-escola e que adultos a sério não havia nenhum. Estavam todos a fazer de conta, as mulheres a brincar às senhoras com sapatos de salto alto e as unhas pintadas, os homens entretidos com brinquedos maiores. E ninguém sabia o que era a vida.

Entre casórios, crias e descasórios, os despautérios do emprego, dramas de família, crises de saúde pelo meio, férias no Algarve e passagens de ano bem regadas, o pacote clássico em oferta nem com desconto e brilhantina convencia, embora continuassem a tentar impingi-lo com toda a espécie de extras, vendedores-abutres que não acreditam no que vendem, mas se dedicam à causa com afinco redobrado, como se quisessem contagiar os outros com a própria infelicidade e receber comissão por isso. Que é como quem diz: comissão pela mentira, porque o cartão de visita da vida “normal” só dizia essa palavra: “Mentira”. Lda. Escritórios espalhados pelo mundo.

O que eu queria era o inverso dela, mas não lhe conhecia morada. Para resumir a história, deixei que a fome me levasse. Ela levou. Mergulhou-me no substrato da existência, que me seduzia mais do que a capa, mesmo que não fosse coisa prática, não desse para faturar, encher o currículo nem para orientar os workshops do arco-da-velha que por aí pululam. Com a Verdade, descobri a Beleza, descobri que a devoção não era apenas pelos professores apaixonados, mas um fogo que já ardia em mim, souvenir oculto do sagrado. Para o manter aceso, teria de aprender a dançar na corda bamba, sem emprego, sem marido, sem destino traçado. Sem a segurança da normalidade e das coisas certas da vida, apesar da condescendência com que sempre me lembram que nada é certo na vida.

O que me alimenta é esse fogo. Hoje, já não quero lugar no jogo cruel das cadeiras, criança infeliz que ficava sempre de fora. Sou a chama, cheia de ondas, que arde no centro. Não há mais a que possa aspirar.

 

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

15
Jun23

A devoção não magoa

Sónia Quental

Série com o Véu - Madalena (03.12 (2).jpg

 

We are called by the divine like an eagle is called by the wind.

 Neil Kramer 

 

In the heroine’s journey we realise that the dragon lies not in a far-off land, but curled within.

 Lucy H. Pearce

 

 

           

Ao primeiro par de sapatos que me magoou, percebi que tinha sido feita para andar descalça. Como com quase todas as verdades que estorvam, fiz-me desentendida para passar vez. Levei os pés para longe da terra, protegidos por sola e desconforto, e continuei em busca de chão, ignorando os arrozeiros que me casavam ao piso.

Se me tivessem dito que a devoção não magoa, talvez tivesse sido mais pronta a largar parafernália, em vez de me sujeitar a apertos escusados, bolhas, joanetes, um sem-fim de mazelas por meter o pé onde não era chamado. Ter-me-ia ajoelhado mais cedo.

Não era dessas crianças com resposta pronta quando lhes perguntam o que querem ser quando forem grandes. A mim, já me chegava ser grande. Os adultos usavam sapatos e seguiam por caminhos batidos, por isso o que tinha era de ir atrás e transformar-me num cisne dócil. Seria inevitável se me esforçasse o bastante.

Mas o esforço nunca bastou enquanto tentava usar sapatos que não eram os meus, seguir por caminhos que eram de todos. O horizonte continuava à distância e as minhas costas, longe de produzirem penas, torciam-se em nós indecifráveis, porque o mundo era pesado e eu não merecia o céu.

Tentei usar calçadeira, ver se os sapatos alargavam com o uso, aplicar-lhes verniz, a eles e a mim, fazer arranques de voo. Acontece que todo o verniz estalava, o batom não pegava nem me assentavam os moldes.

Quando nos pés não havia mais lugar para marcas, o corpo começou a esfarelar-se em terra, dos nós na espinha rebentaram ramos que me embrulhavam os membros, desabrocharam flores nos poros desimpedidos, orbe espacial em convolução orgânica. A força da gravidade trouxe-me ao chão. Árvore alada, prostrada na terra, com pés que se afundam e raízes que sobem, não me doía a devoção.

 

Fátima - Francisco Amaral (1).jpg

 

Fotografias: © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

10
Jun23

Isso que existe

Sónia Quental

No labirinto.jpg

Assim como a subida da maré levanta todos os navios, o resplendor do amor incondicional num coração humano eleva toda a vida.

 Fran Grace

 

All the love and affection and kindness that came from Maharajji – you cannot get these from man.

 Ram Dass

 

 

O olhar de mais puro amor que alguma vez presenciei foi entre uma monja e uma criança. Parei a contemplar a cena com um pudor maldisfarçado, naquele princípio de noite em que as velas ainda não ardiam no Santuário de Fátima.

Ali estava, antes da procissão, como noutras ocasiões em que fui a Fátima, sem conseguir sentir qualquer beatitude ou atmosfera que sublimasse o lugar, além da miséria das pessoas em súplica ou do castigo de quem cumpre promessa. Chagava-me a exploração comercial dos peregrinos, sugados até ao tutano pela mais mísera refeição que tomassem, sem que a sua verdadeira fome fosse saciada. A missa a que numa dessas manhãs assisti pôs à prova o que me restava de candura: como é possível celebrar-se a fé com tamanho artificialismo e ostentação?...

A monja do olhar amoroso não era uma monja qualquer, mas essa é outra história. Naquele momento, trouxe-me à lembrança o documentário sobre Sri Prem Baba, Isso Existe, que traduz no título o arrebatamento de quando conheceu o seu mestre e sentiu o amor que dele irradiava. Outros, como Ram Dass, deram testemunhos semelhantes.

Naquela noite de maio, que à memória parece ter sido fresca, percebi que não era preciso viajar à Índia nem a lugares remotos para se achar raridades. Elas encontram-se no lusco-fusco do comum; dão-se a quem se dispõe a cruzar o umbral. Podíamos encontrá-las ao nosso lado, não nos achássemos pequenos em demasia.

Uns, ocupados com o corre-corre mundano, não aspiram a mais e, mesmo quando inclinados para a religiosidade, repetem litanias por tradição ou sentido de obrigação; os aflitos dividem-se entre as velhas e as novas igrejas, estas com rituais mais emancipados, mas continuando a falhar as promessas aos crentes. São poucos os que buscam – sabe-se que ainda menos os que encontram e realizam. Trancados na separação que trazemos no corpo, não queremos largar, embora, no fundo de nós, mesmo não lhe chamando Deus, algo se lembre e clame por aquele Amor que vi em Fátima, amor que salva e descansa.

É “isso” que procuramos sem saber, por vielas tortuosas e esconsas, crianças perdidas à espera que Ele nos reconheça e nos dê a graça do Seu olhar, contritas das nossas feições desfiguradas tanto tempo depois da Perfeição.

Fátima - Francisco Amaral (6).jpg

 

Fotografias: © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0