Quanto mais me bates
NOTA: Publiquei este texto em 2021 num blogue anterior. Republico-o aqui, após breve revisão, por conta da efeméride, com a recomendação de leitura do ensaio "Um amor de valentão" em A Vida na Sarjeta, de Theodore Dalrymple.
Só um amor frouxo é compatível com uma vivência pequena em que amar se torna um ato de modéstia.
Montse Barderi
Ei-la com os olhos marejados, a coxa pisada, um relato aparatoso metendo polícia e a vergonha da credulidade com que acabara vítima de violência doméstica, depois de várias relações falhadas que a encheram de um temor que impunha distância. Entre a indignação e a dor, contava agora hesitante como durante o dia ainda lhe tinha ido comprar carne ao talho para deixar no apartamento que o pobre continuava a ocupar (o dela), porque não tinha onde ficar. Enquanto ela passava a noite no salão de cabeleireiro onde trabalhava, à espera de vaga na própria casa.
Pensei que fosse o fim da novela, que a vocação criminosa e as ações deletérias do indivíduo em causa fossem agora inquestionáveis até para quem se deslumbra com diamantes em bruto, que se afoita a lapidar. Um “amor” de mulher que se torna mãe, fazendo jus aos sacrifícios da incondicionalidade, que dá sem esperar pelo troco.
O ar de durona ferida com que narrava o seu epílogo e pedia segredo deu lugar, poucos dias depois, a publicações nas redes sociais em que se juntava ao coro de quem condena “julgamentos”, suplicando para o coitado empatia e amor. A dissonância cognitiva, assim preparada, instalou-se em pleno com a fotografia de Natal de uma família feliz em que o rosto do agressor ocupava, sorridente, o primeiro plano, desobrigando desde logo a minha consciência de silêncios prometidos e conivências para com quem assim traía a própria dignidade e me fazia também a mim sentir enganada.
O caso está longe de ser raro. Nem todas as formas de abuso são físicas, mas a variante psicológica é flagrantemente comum, tal como a cumplicidade que a vítima cede ao ofensor. Há um vínculo mórbido de lealdade que leva o objeto de abuso a encobrir e proteger o seu perpetrador, com quem se une contra quem quer que tente um apelo à razão.
Se o papel de “vítima” não tem género, falando desta vez de mulheres, estas são aquelas a quem Robin Norwood, na sua obra homónima, chama “mulheres que amam de mais”, cumprindo-me dizer que a descrição pertence ao foro da doença. Não se trata de pureza de sentimento, bondade nem abnegação sadia: o que nos faz correr atrás de quem nos maltrata ou faz do amor uma experiência de penitência, em que se é submetido a um jejum e privação constantes, é tudo menos amor.
Há cautelas a empregar quando se conclui pela inocência das “vítimas” que, numa relação parasítica e destrutiva, recebem também o seu alimento. Há uma gratificação subtil no papel do codependente, sofredor involuntário que não deixa de eternizar o próprio drama, mesmo correndo o risco de acabar em tragédia: o tango dança-se a dois. Não é que peça que lhe batam, mas é isso que se vê merecer e foi o hábito que criou - hábito não isento de provocações astutas. Até que a compulsão ganha vida própria e dá azo ao prazer masoquista da vida na iminência do perigo.
É preciso mais do que consciencializar e decidir para nos desenredarmos do ciclo do abuso: são muitas tomadas de decisão, um caminho de tentativa e erro em que se cai demasiadas vezes para o lado do erro, ao ponto de achar que na nossa história aquele é o único enredo. Os instintos ficam desregulados, vive-se no avesso das relações: fechamo-nos em copas para quem nos quer bem e damos alvarás a quem não tem esse bem em conta, com uma couraça que tenta esconder um coração estuprado, que escancara portas só para quem vem de assalto. A esse nos convencemos a entregar joias, contrato, domicílio permanente. No fim de contas, é a sensação familiar que nos moldou: quanto mais me bates, mais gosto de ti.
Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados