Polarizar
Todo o dever do autor é agradar a si próprio e deixar-se satisfeito, e o verdadeiro escritor toca sempre para uma plateia de um. Deixe-o começar a farejar o ar ou a olhar para a Máquina de Tendências e mais valia estar morto, embora até possa ter uma boa vida.
William Strunk Jr.
Costumava pensar que era para mim que me vestia, até que veio a pandemia, essa torrente fascinante de revelações sobre a natureza humana, e descobri a relutância de vestir roupa de ir à rua para sair de casa. Para quê vestir-me se ninguém ia ver? Não devo ter sido só eu a achar que a recompensa de continuar a aderir aos cânones da civilização – aparentemente suspensos em todas as frentes – não compensava o esforço, porque cheguei a ver gente de pijama no supermercado, façanha que ainda hoje invejo com renovado vigor. No fim de contas, o peso triunfante da inércia mostrou-me que não me vestia para mim, mas para me dar a ver.
Com a escrita, passa-se o mesmo: pensamos que escrevemos para nós, mas é algo que poucas vezes acontece, sobretudo quando os textos se destinam a ser publicados. A partir do momento em que se começa a ter um público assíduo, começa também a tentação de escrever para ele, de retribuir simpatias, forjar alianças. E o instinto de pertença pulsa forte mesmo em quem já se habituou a circular na faixa estreita das minorias.
A ânsia, a princípio benigna, de querer agradar, mostrar reconhecimento ou pelo menos não hostilizar e evitar o conflito, começa a deslizar para um hula hoop social, com mesuras carregadas e concessões forçadas. O próprio já não escreve para si, mas para uma falange de seguidores a quem custa ofender, mesmo os que dizem apreciar a franqueza – o que não custa dizer enquanto não se leva com ela ou ela não ultrapassa certos limites.
A escolha mais fácil para quem é persistentemente castigado por dizer a verdade, ou por um inconveniente excesso de honestidade, seria deixar de o fazer e manter-se ao largo de assuntos polémicos. A vida fica mais plana no nível da concórdia, o descanso é maior quando se roda pelas vias tonificantes da aprovação, além de que não se pode estar sempre em peleja com o mundo, condenando-nos a um autoexílio que só aumenta em distância e duração.
Por isso, escrever para afastar leitores ou para gerar incompreensão não é, no que me toca, uma escolha amena, mas um dissabor que considero parte do ofício, se o levo a sério – se me levo a sério. Mesmo com a reconhecida dificuldade de escrever só para um, esse um deve ser o primeiro e é à sua verdade que há que agradar, até porque a escrita, mais do que meio de expressão, é um caminho de descoberta dessa verdade. Quem se importa com ela não pode fazê-lo para entrar em clubes da amizade, que pagará postumamente na troca de favores, mesmo que amizades sinceras e espontâneas possam brotar nas afinidades que se vão confirmando com o tempo.
A verdade divide. Não frequenta as arenas da popularidade, mas é uma recompensa em si mesma. Endireita-nos a espinha, torna-nos mais livres e sãos, desimpede o andar. Conhecendo os seus efeitos, escolho cada vez mais o estreme que por vezes raia o extremo, dividindo e polarizando conscientemente, deixando de me moderar e de rodear certos assuntos, ainda que aqueles que verdadeiramente me importam tenham um lugar modesto nesta plataforma. Tal como escolhemos os autores que lemos, é natural que no ato de escrita filtremos os leitores que nos procuram, o que acontece tanto de modo automático como por golpes deliberados.
Não somos para todos. Não sou para todos, nem sequer para muitos. Se pelo menos conseguir começar a vestir-me para me ver, será o suficiente.
Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados