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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

02
Dez24

Polarizar

Sónia Quental

 

Todo o dever do autor é agradar a si próprio e deixar-se satisfeito, e o verdadeiro escritor toca sempre para uma plateia de um. Deixe-o começar a farejar o ar ou a olhar para a Máquina de Tendências e mais valia estar morto, embora até possa ter uma boa vida. 

William Strunk Jr.

 

 

         Costumava pensar que era para mim que me vestia, até que veio a pandemia, essa torrente fascinante de revelações sobre a natureza humana, e descobri a relutância de vestir roupa de ir à rua para sair de casa. Para quê vestir-me se ninguém ia ver? Não devo ter sido só eu a achar que a recompensa de continuar a aderir aos cânones da civilização – aparentemente suspensos em todas as frentes – não compensava o esforço, porque cheguei a ver gente de pijama no supermercado, façanha que ainda hoje invejo com renovado vigor. No fim de contas, o peso triunfante da inércia mostrou-me que não me vestia para mim, mas para me dar a ver.

         Com a escrita, passa-se o mesmo: pensamos que escrevemos para nós, mas é algo que poucas vezes acontece, sobretudo quando os textos se destinam a ser publicados. A partir do momento em que se começa a ter um público assíduo, começa também a tentação de escrever para ele, de retribuir simpatias, forjar alianças. E o instinto de pertença pulsa forte mesmo em quem já se habituou a circular na faixa estreita das minorias.

     A ânsia, a princípio benigna, de querer agradar, mostrar reconhecimento ou pelo menos não hostilizar e evitar o conflito, começa a deslizar para um hula hoop social, com mesuras carregadas e concessões forçadas. O próprio já não escreve para si, mas para uma falange de seguidores a quem custa ofender, mesmo os que dizem apreciar a franqueza – o que não custa dizer enquanto não se leva com ela ou ela não ultrapassa certos limites.

         A escolha mais fácil para quem é persistentemente castigado por dizer a verdade, ou por um inconveniente excesso de honestidade, seria deixar de o fazer e manter-se ao largo de assuntos polémicos. A vida fica mais plana no nível da concórdia, o descanso é maior quando se roda pelas vias tonificantes da aprovação, além de que não se pode estar sempre em peleja com o mundo, condenando-nos a um autoexílio que só aumenta em distância e duração.

         Por isso, escrever para afastar leitores ou para gerar incompreensão não é, no que me toca, uma escolha amena, mas um dissabor que considero parte do ofício, se o levo a sério – se me levo a sério. Mesmo com a reconhecida dificuldade de escrever só para um, esse um deve ser o primeiro e é à sua verdade que há que agradar, até porque a escrita, mais do que meio de expressão, é um caminho de descoberta dessa verdade. Quem se importa com ela não pode fazê-lo para entrar em clubes da amizade, que pagará postumamente na troca de favores, mesmo que amizades sinceras e espontâneas possam brotar nas afinidades que se vão confirmando com o tempo.

         A verdade divide. Não frequenta as arenas da popularidade, mas é uma recompensa em si mesma. Endireita-nos a espinha, torna-nos mais livres e sãos, desimpede o andar. Conhecendo os seus efeitos, escolho cada vez mais o estreme que por vezes raia o extremo, dividindo e polarizando conscientemente, deixando de me moderar e de rodear certos assuntos, ainda que aqueles que verdadeiramente me importam tenham um lugar modesto nesta plataforma. Tal como escolhemos os autores que lemos, é natural que no ato de escrita filtremos os leitores que nos procuram, o que acontece tanto de modo automático como por golpes deliberados.

         Não somos para todos. Não sou para todos, nem sequer para muitos. Se pelo menos conseguir começar a vestir-me para me ver, será o suficiente.

 

Azulejos azuis.jpg

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

15
Nov24

Casulo

Sónia Quental

 

          Para alguns, a vida é um casulo depois do outro. A falta de vínculos seguros faz sentir a porosidade ventosa de uma cápsula que não protege, apenas isola, tornando-nos ilhas à deriva num oceano de pessoas felizes, que nascem com a certeza de qual é o seu lugar e do seu direito inato de o ocupar.

      Na altura, o bullying não estava na moda. Ouvia-se apenas os cochichos de troça pelas costas, a segregação desdenhosa dos autoconfiantes, com a pressão para nos fazer imitar-lhes os modos em troca de aceitação – a sugestão inocente da mutilação para nos colarmos aos vincos que alguém dobrou por nós. Quem achava que tomava conta da nossa felicidade ao participar dessa pressão para funcionarmos em sociedade, por mais convencido que estivesse das suas boas intenções e da sua autoridade pedagógica, não conseguia disfarçar o desconforto de conviver com o que sobrava à normalidade, ameaçando trazer ao de cima o que a custo asfixiava sob o limiar da consciência.

      A vida era um casulo de plasticina, que as mãos dominantes apertavam e moldavam ao seu critério – porque quem não sabe nem finge saber qual é o seu lugar, quem não teve uma estaca de amor a ajudar as suas hastes a medrar seguras, é durante muito tempo frágil e fraco, suscetível, movido pela fome de pertença que o faz render e render partes de si. A resistência diária exige um dispêndio incomportável de energia, por isso vai-se cedendo aqui e ali, até que deixa de se notar. Quando a cedência se torna modo de vida, perde-se conta às suas manifestações mínimas, que têm um efeito tão devastador quanto as maiores, pelo costume que criam – por escaparem mais facilmente à deteção.

        Em cada patamar que traz a renovada clareza de que a busca de quem somos nos leva por um trilho cada vez mais solitário, há uma escolha a fazer. Quem porfia, quem faz essas escolhas deixando-se morrer e voltar à vida sem saber se voltará a respirar, abandonando um casulo depois do outro, contrariando os reflexos condicionados, reconstruindo a sua integridade psicológica e anímica, com um compromisso cada vez mais estreito com a verdade, descobre que já não quer pertencer, que já não é o enjeitado, mas aquele que enjeita. O oceano de plástico lá fora, o nonsense da alienação ubíqua, as manipulações impercetíveis nas relações pessoais já não convencem. Não se suportam. Porém, a cada casulo rompido, revela-se uma força desconhecida, a pele fica mais transparente, há um centro que ganha em vitalidade e firmeza.

         Ficam para trás os tempos de mendigar sobras, assim que se sentem os primeiros respingos de uma fonte interna, essa que ninguém procura, com a cerveja ou o copo de vinho na mão, as incontáveis concessões às amizades de conveniência e ao desejo de aceitação adolescente, que nem a passagem do tempo acalma. O casulo abre-se em casa e os funcionais interrompem a pose para nos assaltarem os segredos e surripiarem o mapa da felicidade que afinal também procuram, desfeitas as ilusões da funcionalidade, do sucesso, das respostas que afinal nunca tiveram.

 

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0