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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

11
Jan25

"Nox, noctis"

Sónia Quental

‘Do you consider people to be basically sophisticated animals?’

With a straight face, Rose answered: ‘No, they’re not that sophisticated’. 

John Kent

 

 

 

Morgan-Greer-Tarot-Review-The-Moon.jpg

       As noites não eram de veludo para todos. Para alguns, tinham a rugosidade da serapilheira; para outros, eram quebradiças e ruidosas como o celofane dos rebuçados, sem o rebuçado dentro. Certo era que poucos dormiam durante o período noturno e que a insónia era a regra que o Império calava quando acendia a iluminação de rua.

       Duas da manhã. Do lado minguante da meia-lua do prédio de apartamentos onde morava, o Emílio experimentava um par de collants cor de beringela, com efeito escama, enquanto tentava enfiar os dois pés no mesmo sapato de salto alto. Havia duas coisas que sempre sonhara ser: sereia e super-herói e, num rasgo de génio, percebeu que podia ser ambas. O único equipamento que lhe faltava para trazer à tona a sereia que havia em si era o fato de super-herói. Já tinha um aquário de tamanho humano, hermético e espelhado, que construíra com as próprias mãos com materiais que recolhera dos contentores de lixo. Às duas da manhã de segunda-feira, o Emílio praticava o equilíbrio e a delicadeza diante da superfície espelhada. Declamava de improviso um poema a que dera o nome de “Crateras da lua”, expressando o romantismo atormentado que precisava de espremer todas as noites do coração flagelado pelo Cupido, com a mesma sofreguidão com que as mães de recém-nascidos bombeavam o leite orgânico para não encaroçar.

          Do lado crescente da meia-lua, o Toni era dos poucos que dormiam um sono inquieto. Fazia o seu treino de cárdio num pesadelo onde fugia de um instrutor de ioga. Satisfeito com o volume de transpiração e o número de passadas, só não contava com a casca de banana que o fez estatelar-se no chão quando já levava uma boa margem de vantagem. Ao levantar-se para matar a sede e apagar qualquer vestígio traumatizante da respiração de fogo, pensou na Ramona, a única mulher que o amava com amor de mãe. Com grande pena sua, as mãos trepadeiras com que fora abençoado tinham sido prontamente repelidas pela Ludovina durante a massagem da tarde. Não se podia esquecer de ligar à Ramona para marcar a sessão de sadomasoquismo e reparar os danos à autoestima, antes que se tornassem irreversíveis.

          No T0 da ponte invisível que unia as duas metades desavindas da lua, o Leitor Ufano aproveitava as horas da madrugada para tricotar uma camisola vintage com os seus novelos de cordel. A rotina continuava com os remates à baliza na varanda, um ensaio intensivo para o próximo confronto com os Aferradinhos. Nas três horas de sono que dormia, sonhava com notas de rodapé e letras miudinhas.

         À mesma hora funesta, a Miss Magnética fazia um lançamento de tarô para a Ramona, que tinha marcado uma consulta urgente depois de ter sido atingida com um novelo de cordel caído do céu, que lhe ficara preso ao cabelo. A combinação da Lua, do Diabo e da Torre fez a intuitiva arregalar os olhos para além da conta. Talvez tivesse sido o movimento súbito das pestanas em caracol a apagar a chama das velas, uma explicação perfeitamente natural para um fenómeno que a superstição poderia atribuir ao paranormal. A sua tenda inteligente, porém, não perdeu tempo a interpretar os sinais de fumo e a ativar o alarme sonoro: um grito de loba agudíssimo que a Maria das Dores tinha gravado num biscate para a empresa de alarmes Tique e Toque, que provocou um pequeno abalo sísmico na rua, onde uma Ramona espavorida corria com o empeno mal-azado do fato de cabedal.

         No pequeno anexo ao lado da Piscina dos Saltos Quânticos e ainda com os tampões nos ouvidos, a Maria das Dores tinha terminado a lição de canto lírico e enfiava a touca para saltear os grilos do rolinho primavera que ia levar para o trabalho no dia seguinte. Pelo sim, pelo não, achou melhor juntar-lhe uma farofa de formigas pretas, para aproveitar a matéria-prima do quintal – gostava de carregar na proteína.

        Ludovina era a única que dormia indiferente ao alarme que fazia balançar a rua, o corpo flutuando com uma leveza que não se importava de sustento nem dos três centímetros que a cama se moveu durante o sono. O toque da noite era de algodão.

 

Imagem: baralho Morgan-Greer

19
Dez24

A dança da chuva

Sónia Quental

Why would the sky look for itself in a mass of passing clouds? 

John Wheeler

 

 

         Nas praças das cidades, nas arenas de touros, nos palcos, nos campos de futebol, nos cemitérios e adros das igrejas abandonas, fazia-se a dança da chuva. Não havia anúncio, convocatória, data marcada, nada além de uma clepsidra que do lado invisível do tempo fazia soar a insónia e os levava em marcha desordenada para onde se pudessem juntar.

     Por mais que a felicidade vivesse na mente vazia, no coração desacordado, era preciso sacudir-se as partes de baixo, abrir o tampão ao subsolo da consciência, num ambiente de descontrolo simulado onde humanos, animais, ciborgues e as todas variantes híbridas de seres sencientes restauravam os antigos cultos a Baco, num presépio invertido que se desenrolava de improviso um pouco por toda a cidade.

         O ritual cumpria várias finalidades: descongestionamento e descarga de energia, libertação de impulsos reprimidos, quebra do tédio e fortalecimento da união tribal em torno de um inimigo comum: o céu, que se obstinava na secura, sem se se chorar por nada. O descontentamento era estrategicamente dirigido para os tronos cimeiros, absolvendo os da terra, que impediam a chuva de desabar por imperativos só seus, promovendo a difamação dançante da sua contraparte hostil.

    A medida tinha uma eficácia razoável, com um grau de imprevisibilidade que empolava o interesse geral: a dança da chuva fazia chuva, mas nem sempre de água. Já tinha acontecido choverem nozes, castanhas, pepitas de chocolate, soluços. Não se sabia se a dificuldade de comunicação residia no canal, se era questão de afinar os ritos, oferecer sacrifícios ou se o céu era simplesmente mouco, por isso continuavam as tentativas de sinalizar uma chuva de água líquida, no grau certo de alcalinidade e pureza.

         O Jardim das Delícias Terrenas sonhado por Bosch fora uma visão de retorno a este ato de comunhão telúrica em que o mais nobre desejo era ser-se engolido pelo chão, com a rega possante do céu. Ser-se adubo de um mundo novo, em que o instinto do orgânico comeria os degraus já gastos da civilização. Nessa esperança os coros se desentoavam, rachando com decisão o firmamento, dando livre curso aos apetites carnais, até à dissolução final, que celebraria o sublime no Nada.

         Sem arca preparada para o que viesse, a resposta foi maciça do céu: do alto caíam limões, pesados de sumo catártico, certeiros na pontaria.

 

No chafariz (7).jpg

Fotografia (recorte): 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

09
Dez24

Pés para que vos quero

Sónia Quental

 

        Com o brunch à boca do estômago e depois da manhã fértil em acontecimentos, Ludovina decidiu saltar o almoço e aproveitar a tarde de domingo para continuar a desenvolver a sua abordagem à teoria das personalidades de Myers-Briggs, desautorizada pelo Império. O apartamento onde morava, pequeno, mas verticalizado, ocupava dois andares, dando azo a subidas e descidas que lhe desembaraçavam o tráfego mental.

         Toni, que conhecera numa das idas à Biblioteca de Cordel onde era voluntário e que recentemente fora notícia devido a uma aparatosa evasão aérea, ficara de aparecer para lhe fazer uma massagem aos pés. O pedido, quase roçando a súplica, assustara-a o seu tanto: não lhe agradava ser objeto de fetiche, e as bochechas trementes e luzidias do rapaz inspiravam-lhe decidida aversão. Já tentara, com uma atrapalhação fracassada, deixar escorregar o cumprimento do rosto para o pescoço, mas Ludovina não podia deixar de se doer da sua condição de Amigo do Amigo que não consegue subir de posto. Foi o que a levou a aceitar emprestar-lhe os pés, recitando para consigo os inúmeros benefícios do relaxamento. O Natal deixava-a sempre tensa e ainda não conseguira sacudir os Jingle Bells da cabeça.

       As mãos do Toni apresentaram-se ao serviço como borboletas pesadas, mas hábeis, untadas da extrema vontade de agradar e segurando um tabuleiro de rabanadas caseiras feitas no forno. “Adoçadas com estévia”, apressou-se a dizer enquanto se infiltrava, aspirando os odores da casa para se apropriar do espaço antes de pôr mãos à dona. Se era pouco dado aos desabafos, desempenhando por hábito o papel de ouvinte, não se fez rogado desta vez, talvez pelo efeito inebriante do contacto com uma pele feminina, que lhe soltou as peias. Ou talvez quisesse deslumbrá-la com o seu perfil de candidato com ânsias de ser promovido dos pés para as abóbadas.

         Fosse qual fosse o motivo, enquanto mastigava meticulosamente os pontos de pressão podais, ao ritmo cadenciado da vibração das bochechas, tagarelava sem parar sobre o pioneirismo da empresa de autoclismos de que era proprietário, que, depois de ter lançado a descarga dupla, contribuindo para uma redução de 50% do consumo de água mundial, voltara a inovar ao produzir um autoclismo com material 100% reciclado. Aclamado pelo sucesso da proeza, que lhe valera o tão cobiçado passe para a Web Summit 2025, confessava a esperança casual de ser selecionado como Amigo Certificado pelo Centro de Bem-Estar Integral, a vocação de uma vida coroada em papel.

       A expetativa de descontração fora-se, apesar da massagem superlativa, de que Ludovina ficou a conhecer todos os benefícios terapêuticos. Como seria de esperar, Toni tinha tirado um curso de reflexologia e entendia ser seu dever libertar todas as toxinas daquele corpo que olhava com uma fome saliente no rosto riscado pelos galhos das árvores – uma fome que não se calaria com estévia.

 

05
Dez24

Os Amuadinhos

Sónia Quental

 

         A fulminação desceu sobre ambos com a mesma força. A silhueta dela em contraluz era o negativo da visitação do Anjo; ele, uma poça de sangue aguado a feder a peixe, lembrou-lhe as práticas ritualísticas dos maometanos. Pensando estar a obstruir o sinal para Meca, deu ela um passo ao lado, fazendo com que o arremesso súbito de luz o pregasse a uma bem-aventurança que durou cinco segundos eternos – uma eternidade extática, consumada lado a lado, numa simetria que não podia vir do acaso.

        Ignorando o latejar da marca que tinha entre as sobrancelhas, Ludovina escorregou para fora da Piscina de Saltos Quânticos para ser recebida por uma manifestação de representantes da segunda religião oficial do Império, que ultrapassava a primeira em número de associados e grau de fanatismo: a denominação atávica dos Ateus. Reunindo pessoas de duas ou três grandes proveniências, o grupo interno de maior expressão era o dos Amuadinhos, que sofriam alguns embaraços naquele género de intervenções públicas, graças à protuberância bucal alongada que os caracterizava. Todas as manifestações eram vigiadas por agentes munidos de Pulsómetros, que garantiam o nível mínimo de Felicidade obrigatório por lei, com o semblante dos amuados representando um perigo iminente de queda.

         O bizarro do espetáculo, apreciava Ludovina, era que os Ateus, quer por inclinação natural quer por pirraça, para espicaçarem os Aferrados a Deus, se passeavam em bicos de pés e nariz ao alto. Alguns caminhavam em cima de andas, que tinham acabado por integrar na sua vida diária, exigindo que as portas se alongassem à sua passagem. Os jogos de futebol amigáveis que disputavam tinham o seu quê de caricato, com os Ateus a chutarem a bola com as andas, os Aferrados arrastando-se de joelhos no relvado, com um posicionamento estratégico que não favorecia nenhuma das partes. A casta dos Humildes, que desfilava de branco em ambos os plantões, deixava-se espalmar com gritos de júbilo, sendo o árbitro a única figura que se mantinha de pé.

         Desde que a política fora abolida que os grandes palcos ideológicos de debate eram a religião e, um pouco mais atrás, a alimentação, que inflamava menos os ânimos e não tinha equipas de futebol amador. De resto, os campeonatos profissionais tinham sido extintos: as emoções não podiam andar à solta, devendo ser canalizadas para fins superiores, ao serviço da coesão do tecido social.

 

25
Nov24

"Quantum"

Sónia Quental

 

Verdadeiramente assustador era o Ministério do Amor. Não tinha nenhuma janela.

George Orwell

 

 

        Sem saber onde estava e nauseada com os Jingle Bells que embalavam as ruas, escapuliu pela primeira porta que encontrou, num edifício alto e estreito, descaracterizado, com cheiro intenso a cloro. A chapa que coroava o busto bicudo da rececionista dizia “Maria das Dores”, a qual cantarolou em voz de soprano “Piscina de Saltos Quânticos”, novo nome dado à antiga igreja local, recuperada pelo Império. Estendendo à recém-chegada uma taça fit de pernas de gafanhoto caramelizadas em amêndoas e tâmaras, ofereceu-se para a acompanhar numa visita guiada, desculpando-se pela inexperiência de estreante: com a chegada da Simpatia Ecuménica, que exalava de todos os poros, tinha sido dispensada do posto habitual na Feira da Vandoma, uma vez declarada a obsolescência dos julgamentos. Era o seu segundo dia ali.

       O serviço era mais parado e, como a menina Ludovina podia constatar, os visitantes eram bastante ecléticos, sendo de notar que uma boa parte ocultava os seus verdadeiros desígnios: havia desde fãs do Elvis, que tentavam provar que ele estava vivo, até extremistas que queriam voltar ao jardim do Paraíso e neutralizar a serpente, mudando o curso de toda a História. Na maioria dos casos, porém, os saltos quânticos não eram usados para qualquer reviravolta pessoal ou projeto de conquista planetária, mas para fins turísticos: viagens no tempo ou escapadinhas interdimensionais, com consequências inócuas, daí que a administração continuasse a encorajá-los.

          Talvez ela já tivesse ouvido falar da nova aquisição, dedicada aos saudosistas da religiosidade, muito publicitada nos meios de comunicação social: Deus sed Machina, uma instalação de Jesus alimentada por IA, a quem os visitantes ventilavam as suas agruras e pediam conselhos, respeitando a advertência de anonimizarem os dados pessoais. O realismo da engenhoca holográfica fizera grande sucesso, mas infelizmente encontrava-se interdita para manutenção: os programadores tentavam corrigir o bug que levara Jesus a acusar as pessoas de serem um desperdício de recursos para o planeta, dando-lhes um comando de morte explícito que as fizera precipitar-se para os saltos quânticos, com objetivos menos construtivos. Mas não era caso para preocupação, acrescentou com confiança – o conceito ainda estava na sua fase beta, esse tipo de deslizes já era previsto e seria integrado na resolução de problemas do manual. Em geral, era tudo muito seguro, amigo do utilizador e tinham até nadadores-salvadores na prancha de saltos, prontos a acudir aos desconsolados.

         Ao observar as figuras de Speedos que faziam aquecimento junto à piscina, Ludovina não pôde evitar pensar nas NPC: personagens não jogáveis, vazias de recheio e falhas de autonomia, que preenchiam o mundo para o tornar verosímil, limitadas à função que lhes era concedida. Tudo na brancura interior daquelas divisões, de uma verticalidade desviada, parecia um cenário de fazer de conta, ocupado por simulacros de criaturas que a qualquer momento podiam ficar congeladas nos saltos, bastando para isso que alguém premisse “Pause”.

 

22
Nov24

"Buffering"

Sónia Quental

We are the authors of why we suffer by the fiction in which we dwell.

 Caroline Myss  

 

 

      Afastando-se do Moonbucks a toda a pressa, Ludovina atravessou a forma-pensamento que tinha criado e energizado no seu ecrã mental, que girou sobre si mesma até perder a força e se desmaterializar antes de conseguir manifestar fosse o que fosse. A impressão visual daquele círculo inacabado, em rotação convulsa, fê-la pensar na sua vida como um buffer incessante, um processo de armazenamento de dados na memória temporária que impede a continuidade de qualquer fluxo.

         O cheiro a enxofre foi o único rasto daquela experiência malograda, que preferia deixar para os confins do esquecimento. Não era daquelas que acreditavam no valor intrínseco das experiências, vivendo suspensas da novidade e extraindo prazer da sua quantidade e variedade, com a boca eternamente aberta ao próximo estímulo. Tentava lembrar-se se fora Proust ou Kafka que dissera que não era preciso sair do quarto para desmascarar o mundo. De resto, desde que o Partido dos Bons tinha assumido o poder e decretado a atmosfera de Simpatia Ecuménica, era inútil sair para apanhar ar, porque o sufoco cercava quem quer que andasse na rua.

         Contra a expetativa dos seus mais acérrimos apoiantes, o Império da Simpatia tinha gerado fortes reações adversas. Não podendo escapar fisicamente ao pólen de doçura, as pessoas procuravam asilo mental, regredindo para estágios infantis em que se entregavam aos cuidados dos outros. A demência estava em ascensão, tal como os acidentes, confirmando a tese de um conhecido psicanalista, que acreditava que a maioria das mortes era uma forma de autossabotagem ou de suicídio indireto – armado pelo próprio, mas não declarado.

Bob Moran.jpg

       Em todas as esquinas, havia carcaças carcomidas pela Ingenuidade, tentando agarrar-se aos promontórios de luz das moças que passavam distraídas, na ânsia de reviverem a fase oral do desenvolvimento através do aleitamento compulsivo. A mulher caída no chão antes do brunch não tinha conseguido escapar, sucumbindo à perda de todos os fluidos corporais. O polícia que lhe ajeitava o casaco debaixo da cabeça não tinha vindo para prestar socorro ou investigar a ocorrência, mas para se certificar de que ela morrera feliz e de que não tinha havido alterações no nível médio de felicidade da zona.

         Evitando esquinas e despistando vultos a torto e a direito, Ludovina fazia um caminho difícil para casa, imitando com os pés o buffering do destino.

 

07
Nov24

Essência Inc.

Sónia Quental

All we are, essentially, is a defense mechanism against the truth.

John Kent

 

 

         Tendo percebido tarde que não havia guardanapos, saíra do brunch com a marca da bebida cafeinada a desenhar-lhe um bigode no beiço. No meio da confusão, alguém lhe tinha enfiado um panfleto no bolso:

 

Essência Inc.

 

Sofre de insónias? Acorda sem ânimo para enfrentar o dia? Tem dificuldades de concentração? Desejos incontroláveis de açúcar? Foi diagnosticado com Infelicidade mórbida? Nada que um toque de Essência não cure.

Desenvolvemos um programa patenteado de recondicionamento mental que sonda o seu potencial latente para o transformar na versão mais avançada de si mesmo. Navegamos consigo pelos desafios da vida moderna, mostrando-lhe como materializar visões de Sucesso e unir-se à corrente de energia da Era de Aquário, em que fundimos intenções para elevar a vibração coletiva e cocriar um mundo sem mácula.

Venha forjar o seu impacto connosco, numa proposta de simbiose íntima que parte do diálogo entre o humano e a máquina: um upgrade essencial para um Ser mais pleno e autêntico.

 

Essência Inc. Felicidade concentrada, à distância de um mantra.

 

 

         O anúncio era de um dos Centros de Bem-Estar Integral financiados pelo Gabinete da Desinformação, com instalações em todas as cidades do plano físico e astral, e sede social na Nuvem. No grupo de Desplataformados a que pertencia, Ludovina tinha começado por ouvir rumores das atividades que promoviam com o incentivo de donativos conscientes, em que a elevação de consciência era proporcional à magnanimidade do patrocínio.

          Falava-se da lista de cirurgias estéticas que tinham lugar nos antigos matadouros para tratar desordens de autoestima, e eram também eles que acomodavam os serviços de lavagem automática com mangueira de pressão e sucção cerebral para eliminar o vácuo mental onde nasciam as ideias perigosas. Os sócios tinham o benefício exclusivo de um Amigo Certificado para garantir que elas não despontassem, prevenindo o perigo de mutação para as Ideias contra o Bem Comum e outras variantes, com diferentes níveis de risco. Outra das funções destes companheiros chegados era conter o ressentimento e impedir a frustração de germinar, trabalhando ao mesmo tempo para erradicar a epidemia de solidão do planeta.

         Havia sessões semanais de 8 minutos de tantra ao som pacífico das focas que fazia vibrar as ruas e que funcionava como cartão de visita destes centros vanguardistas. Uma das últimas novidades eram as salas de tittytainment, uma medida de combate ao individualismo e de reforço dos recreios comunitários em que se fazia a afirmação de identidades imaginárias.

        O conhecimento que Ludovina a princípio obtivera por vias não oficiais fora substituído pelo estudo prático destes laboratórios de positividade, uma vez que a renovação da sua carteira profissional incluíra um módulo obrigatório de formação para a Responsabilidade Social e o Sucesso Sincronizado. Esquecida da marca no bigode e com a música da Barbie a alinhar a nota desarmónica das suas células, Ludovina deu consigo em céu aberto, onde a esperava a forma-pensamento que tinha projetado para o exame do curso.

No barco azul (1).jpg

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

04
Nov24

Açúcar amarelo

Sónia Quental

De onde vens, certeza

de que um pouco mais de açúcar

não fará mal a ninguém.

Adélia Prado

 

 

         O Ministério da Felicidade e o Ministério da Vida Saudável tinham tomado a iniciativa conjunta de consagrar o domingo como Dia do Brunch, oficializando aquele que era já um hábito informal de famílias e pessoas emancipadas. Ludovina queria escapar à fila de estabelecimentos cor-de-rosa que transformavam esse destino em certeza, mas os agentes da polícia que rodeavam uma mulher caída no chão, ajeitando-lhe o casaco a servir de almofada, dificultavam-lhe a fuga.

         Entrou apressadamente na primeira porta que encontrou, com um letreiro de néon a piscar “Moonbucks”. No ambiente, que cheirava a panquecas, ovos mexidos e flocos de simpatia, destacavam-se os cubos de açúcar amarelo amontoados nas mesas, uma orientação governamental amigável para uma saúde 100%. O açúcar branco há muito tinha deixado de ser consumido e só se conseguia a preços exorbitantes na dark web.

       Depois da generalização do trabalho remoto, era mais comum os animais de estimação levarem os donos à rua do que o oposto, aliciando-os com a promessa dos torrões de açúcar que lhes atiravam uma vez instalados na mesa familiar e human-friendly, onde se reaprendia um convívio salutar.

         Ludovina procurava um recanto sossegado onde pudesse pegar no livro que andava a ler, outro produto de consumo a que o governo franzia publicamente o sobrolho. Dirigiu-se ao único espaço individual do estabelecimento, reservado à prática do mindfulness, pensando poder camuflá-lo entre o cor-de-rosa fofo das almofadas. A bebida com cafeína que pedira, um gesto cada vez menos usual da clientela patusca de domingo, veio acompanhada de um pequeno copo de água vitaminada, que cheirou com desconfiança.

         O faro era o único sentido em que ainda confiava. Olhando à sua volta enquanto esperava o momento certo para expor o livro de capa dura, notou as frases de motivação que se acendiam ao som da Barbie Girl, uma técnica subliminar ao serviço da felicidade duradoura. Aturdida pelos estímulos sensoriais e temendo a estranheza dissonante que sabia não conseguir deixar de exalar, afundou-se no banco. A sensação de esmagar um dos cubos amarelos com o traseiro fez-lhe disparar o coração, que pulsava azul por entre a névoa que induzia o nirvana.

 

02
Set23

Enxoval: precisa-se

Sónia Quental

 

Definir o politicamente correto com precisão não é fácil, mas reconhecê-lo quando está presente é. Ele tem sobre mim o mesmo efeito do ruído que, durante minha infância, a unha do professor fazia sobre o quadro-negro quando o pedaço de giz estava curto demais, causando-me frio na espinha. Trata-se da tentativa de reformar o pensamento tornando certas coisas indizíveis. Consiste, ainda, numa ostentação conspícua, para não dizer intimidadora, de virtude (a qual é concebida como a adoção pública das visões ‘corretas’, isto é, das visões ‘progressistas’) mediante um vocabulário purificado e um sentimento humano abstrato. Contradizer esse sentimento ou deixar de usar tal vocabulário é excluir-se do grupo de homens (ou deveria eu dizer ‘pessoas’?) civilizados.

 

Theodore Dalrymple

(citação retirada de edição brasileira)

 

 

A maior desfeita foi quando passei a receber enxoval, porque quem o dava lhe ganhou gosto, mas não me contagiou com ele. Se com o tempo aprendi a dar valor às prendas em dinheiro, o enxoval deixou-me sempre um travo inconformado a desilusão. Isto até saber que Jordan Peterson tinha sido condenado a um campo de reeducação (estabelecimentos que ameaçam instalar-se deste lado da civilização) e de novo me render aos desígnios da Providência. Admirei a sabedoria genial das minhas tias, que não era porque não me conhecessem que ofereciam enxoval, mas porque tinham a premonição das circunstâncias em que faria falta. Talvez me adivinhassem no cadastro o crime de ferir sensibilidades e achassem que o sítio para onde seria mandada carecesse de toalhas com cheiro a mofo.

Tenho a sorte de o Jordan Peterson ter chegado primeiro. Pelo menos, terei alguém interessante com quem trocar bilhetinhos nas aulas de socialização. De certeza que tira apontamentos melhor do que eu e tenho a esperança secreta de que me deixe copiar nos testes. Eu posso ajudá-lo na parte linguística, a declinar a lista de pronomes (é fácil para quem já estudou latim). Se formos apanhados, penso que é mais provável que seja ele a levar com a cana, uma vez que é homem branco, falo – quero dizer, símbolo – do patriarcado, por isso posso estar relativamente descansada. Não me importo de dividir o lanche com ele, já que tenho muitos paninhos de renda, bordados pela bisavó, e, da primeira vez que me educaram, ensinaram-me a não ser egoísta. Espero que faça vista grossa às manchas amarelas, pois só no mês passado aprendi a usar lixívia.

Vestido amarelo (2).jpg

 

Pode ser que no campo de reeducação deem aulas de economia doméstica e não façam discriminação de género, para que o Jordan Peterson também possa ir. Se ele souber fazer um pequeno-almoço energizante, sem glúten nem hidratos de carbono, seremos amigos para sempre. Sei que ele vai gostar de mim, porque estou habituada a arrumar o quarto. Uma vez, quando fui a Tormes, a senhora da limpeza não me deixou toalha de banho, porque eu fazia a cama todos os dias e ela pensou que, em vez de duas, só uma estivesse ocupada. Também aí o enxoval vinha a calhar.

Acho que vou sugerir no centro de reeducação a ideia que tivemos em Tormes quando o calor se tornou intenso, que foi levar cadeiras de plástico e sentar-nos à sombra das videiras, enquanto ouvíamos a voz melíflua do Pedro Eiras discorrer sobre Eça de Queirós. Suspeito que Jordan Peterson vá gostar do Eça, que me envergonho de já não ler, mas parece-me que também ao portuguesinho receitariam a reeducação. Que bom que seria eu, o Jordan e o Eça a especular quantos géneros há para dois sexos e a comer as uvas da ramada, com os meus paninhos de renda no colo.

 

 

Fotografia: 2022 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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