À espera de uma encomenda
The ultimate gift is the waiting.
Jean Klein
A encomenda não chega. Quero debulhar as horas e os dias, raspá-los desta espera que não acaba. Não saio de casa, porque a encomenda pode chegar e o mais certo é que chegue quando não estou. É nesses momentos que a vida acontece: quando me ausento. O que me apanha são as contas, o condomínio, as infiltrações, mesmo quando ando em bicos de pés e tento não fazer barulho. O telefone não atendo, a campainha ainda menos – só o correio me atraiçoa. Exceto quando estou à espera de encomenda: é então que se faz de rogado.
À porta, aparece-me todo o tipo de gente. Da última vez que abri, porque a espera da encomenda me fez relaxar cautelas, era um emissário da Securitas a perguntar-me se queria assistir a um curso que decorria na rua ao lado. Horas antes, ao atender sem querer o telemóvel entre provas de sutiãs, não era para mim a chamada (deram-me um número que já teve dono, por isso até no Natal ligam ao engano).
Tudo porque estou à espera de encomenda e temo que seja o carteiro à porta ou o estafeta ao telefone. Não posso aspirar a casa porque às tantas a encomenda chega e eu não ouço. Não posso atirar-me ao trabalho, porque a campainha me sobressalta a concentração. Cozinhar está fora de questão, para não deixar o fogão ao abandono e o cheira a comida a escorregar da roupa. Levar o lixo, só se for a correr e a olhar por cima do ombro. Vestir o pijama não é aconselhável, porque vou ter de descer para abrir a porta. E de nada adianta pôr-me à janela, porque o correio só vem quando não estou a ver.
Só me resta esperar. Falha na distribuição. Uma vez, duas. Mensagens de SMS, e-mails a avisar que a encomenda está na rua e de novo a dizer que é arredia à entrega. A única coisa que me resta entre um dia e o outro é dormir, mas a inquietação não deixa. Já não quero saber da encomenda – o que quero é que a espera acabe. Quero a rotina, quero retomar o fio do sono. Quero voltar a escorraçar vendedores, fazer de conta que não ouço a porta. Quero que me deixem lavar os dentes, foliar à vontade com o secador. Quero caminhar sem tropeçar nas horas. Quero fazer a digestão em paz. Quero o fim da agonia, do abafo que cisma em não trovejar. Quero a certeza das coisas previsíveis, que não se desviam da hora marcada.
Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados