Divisões
No negócio de família, não gostava de atender ao balcão, mas gostava de etiquetar os produtos e de os arrumar na prateleira, um dos gestos concretos com que dava ordem e significado ao mundo. Da mesma forma, rotulamos e dividimos objetos e pessoas em categorias para fazermos mapas que nos situem, para nos defendermos do perigo, mesmo quando ele nasce de ficções ou embirrações pessoais. Tal como divido o mundo entre quem usa cinto e quem não usa, quem toma a meia de leite escura ou clara, morna ou quente (o que tem vastas implicações), há quem o divida entre pessoas simpáticas e antipáticas, bem-dispostas ou maldispostas – eu divido-o ainda entre as superficiais, que fazem divisões destas, e as profundas, que são as raras.
A superficialidade faz-me crispar a pele. Uma das coisas que não deixam saudades da época em que me deslocava para um local de trabalho era o “Bem-disposta?” com que me recebiam ainda antes de pousar pé no recinto – levando a crer que o modo como uma pessoa se apresenta, a sua forma de estar e de ser andassem ao sabor do vento, que sopra aleatoriamente numa direção ou noutra, e fosse preciso fazer medições cautelosas para os restantes adotarem a distância necessária durante o dia. Era a forma de nos dizerem que, se algo corresse mal, a razão não era outra além da má-disposição do culpado. Para quem gosta de dividir o mundo como os polos das pilhas, não haveria outra causa, mais substancial, para uma reação negativa do que a pessoa não se ter disposto como devia.
O mesmo quando vieram as “distâncias de segurança” e tentavam cumprimentar-me com o cotovelo. No dia em que decidi dizer não, obrigada, a pergunta que logo veio, “Acordaste maldisposta?”, ajudou a virar o resto que faltava de umas tripas que costumam portar-se melhor. Como se houvesse sanidade em andar a dar cotoveladas às pessoas e a evitar-lhes o bafo, com aquele ar gorduroso e pífio de “Chega-te para lá, mas somos amigos na mesma”. Também divido o mundo entre esses e os outros.
Há dias em que gostava de pousar a máquina das etiquetas, permitir uma certa desordem durante 5 minutos inteiros, misturar os preços, trocá-los até (arrepio-me só de pensar!). São as divisões que nos fazem sentir seres separados, saber onde começamos e acabamos, responder continuamente à pergunta “Quem sou eu?” na construção de uma identidade que se vai refazendo ao longo da vida. Acontece que tendemos a levá-las longe de mais. Eu levo: esqueço-me de como estar sem a labuta mental de rotular, dividir, embalar, como se não pudesse ser segura sem deixar de cartografar o território, e coisas e pessoas não pudessem mudar de categoria (não costumam, mas haja fé). Como se o mundo se desmanchasse se eu não lhe desse ordem.
Quando me visitam as vozes dos sábios realizados que passaram pelo planeta, soprando-me o seu neti-neti circunspecto (“nem isto, nem aquilo”), é impossível ignorar o fascínio das etiquetas fluorescentes e da máquina com um rolo novo já pronta a imprimir: de um lado, os iluminados; do outro, os remediados!
(A propósito de compulsões, aqui fica a torrente poética inspiradora de um obsessivo-compulsivo:)