Macadâmia
Wanderer am I.
A misfit, perpetual freelancer in someone else’s world.
John J. Falone
Normalmente, não quero escrever. Quero, mas não quero, até que uma das forças leva a melhor e acaba por me arrastar até à página em branco. Hoje, a resistência era maior, por me ver empurrada em simultâneo para a mesma sala de espera, a mesma senha e cadeira, a mesma gravata, desta vez num pescoço de mulher. O computador já não era o mesmo, mas usava astúcias gémeas para surripiar a atenção das mãos que o manuseavam, menos coniventes do que as do funcionário que me atendeu em fevereiro, desculpando-se profusamente pela demora.
A suavidade submissa da voz derrapou por breves instantes do guião quando, ante a minha renitência em aderir a produtos de investimento a longo prazo, me disse que também tinha sido freelancer – designer, mais propriamente, agora convertida ao ar condicionado que a obrigava a usar fato de inverno no pino do verão e a desviar-se dos olhares fulminantes dos clientes à espera de vez. A centelha foi breve, mas inconfundível.
Quando vinha embora, subindo a mesma rua tórrida que subo desde o princípio dos tempos, vi desenhar-se um padrão: o das criaturas com que me tenho cruzado que abandonaram a área criativa em que se formaram ou se expressavam (poetas, pintores, terapeutas, designers) para irem parar à banca ou ao setor imobiliário. Ora por quererem constituir família ora por já não conseguirem suportar a vida na corda bamba ou no fio da navalha, sem rendimentos certos, sem saber se o mês vai ser de vacas gordas ou magras, sem poder fazer planos, que o mesmo é dizer: vivendo sem garantia. O desgaste acaba por levar a melhor, reforçado pelos ecos de quem nos quer bem e vem ensinar a sabedoria de que o mundo não é para sonhadores.
Achando-me num desses frequentes momentos de paralisia em que tento fazer ouvidos moucos à matemática do futuro, descubro-me a pensar sobre vocações e destinos. E a arriscar que vocação é mais do que dom: é quando não se tem mais para onde ir. É quando todos os caminhos vão dar ao mesmo sítio e na frente está um abismo. Mais do que não capitular ou do que resistir, é saber que não há fuga possível.
Assistindo ao desespero e à debandada instigados pela pressão da IA, o que lamento são as almas perdidas para as falanges cinzentas da certeza, porque a farda que se enverga por fora se infiltra nos poros e raros são os que entram no sistema e permanecem ilesos.
Na revisitação que costumo fazer de leituras passadas sobre a espiral dos temas que me assombram, fui dar com um termo desconhecido: “pronoia”, definido, num sentido positivo, como o oposto de “paranoia” e em torno do qual Rob Brezsny escreveu todo um livro - a pista de leitura que me desanuviou o espírito. Consta que o autor é astrólogo e escreve horóscopos inspiradores, segundo o princípio da benevolência do universo. Fui ver o meu para hoje, que aqui deixo em tradução, para propagar esta nota de inesperado alento e leveza:
Setenta por cento das nozes de macadâmia em todo o mundo têm o mesmo antepassado: uma árvore específica de Queensland, na Austrália. Em 1896, dois irmãos havaianos apanharam sementes dessa árvore e levaram-nas para a sua propriedade em Oahu. A partir deste pequeno começo, as nozes de macadâmia havaianas passaram a dominar a produção mundial. Prevejo que em breve terá semelhanças com essa árvore original, Gémeos. O que lançar nas próximas semanas e meses poderá ter um tremendo poder de permanência e chegar muito além da inspiração original.
Fotografia: 2024 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados