Fidalguias da língua
Os Portugueses deixaram de se intitular; passaram a auto-intitular-se; O Português já não se proclama coisa alguma; ele autoproclama-se. De ego inflado, o Português reluz. Convenhamos: tem mais pinta. Repare: ele não se domina nem se controla; ele autodomina-se e autocontrola-se. É outra loiça.
Tende a não se vitimizar – agora, dá-lhe para se autovitimizar. Não se flagela; autoflagela-se. Não se penitencia; autopenitencia-se. Não se destrói; autodestrói-se. Não se exclui; auto-exclui-se. Não raro, já nem se isola; auto-isola-se. Com jeitinho, até se autofotografaria, mas ele é mais selfies.
Manuel Monteiro*
Lembro-me de estar no café e de ouvir alguém na mesa ao lado descrever uma história como hilária, entre um esboço de riso transformado em inexpressivos lol e as tortas de nós a ilustrar a ementa.
Terá sido na mesma altura em que, a um só tempo, como se todos tivessem recebido o mesmo referencial de termos da moda, deixei de dar formação para passar a ministrá-la e a ter turmas alocadas no horário. Os bons dias ou boas tardes a abrir os e-mails, ou as extraordinárias boas, que só podem vir de quem faz manobras com uma mão ao volante, começaram a fazer parelha com os beijinhos carinhosos das fórmulas de despedida. Comecei a deixar de distinguir as mensagens dos superiores hierárquicos, dos colegas e dos amigos, gerando-se a sensação perigosa de que as ordens não são mais do que pedidos amigáveis, enviados por companheiros de pândega.
Lembro-me de quando, em vez de se pedir coisas, se passou, sem exceção, a solicitá-las, tendo deixado de se pôr o que quer que fosse nalgum lugar para se passar a colocar – fenómeno esse que não poupou o verbo ter, engolido amiúde pelo possuir. Da mesma forma, o comum fazer evoluiu para a fidalguia do efetuar, quando não é caso de se executar. Já o velhinho e maltratado verbo haver foi trocado pelo sofisticado existir, que tem a vantagem de não colocar problemas de “h”. Oferecer, prestar, proporcionar, disponibilizar convergiram todos para esse abominável fornecer, que nos tornou fornecedores universais de toda a espécie (ou tipo) de disparates.
Hoje, já não se confirma nada: verifica-se. Os recursos existentes, invariavelmente caracterizados como exclusivos, estão aí para se alavancar – em caso de dúvida, peça-se ao suporte para esclarecer. Deixou de se escrever artigos ou publicações para se fazer posts, com tags, em vez de etiquetas, e pede-se tuteando um feedback construtivo, sem vestígios de hate speech, tal como estipulado pelas políticas da comunidade, feitas para proteger a sensibilidade dos utilizadores, que reservam a criatividade para os neopronomes.
Aquilo que possa ser significativo ou relevante é o que, para os filósofos do copywriting, se limita a fazer sentido. O que pudesse ser difícil, complexo ou delicado só pode ser complicado, sendo que, em geral, muito se constata que as coisas são complicadas – ou complicaditas, quando se tenta dar ânimo ao interlocutor –, termos estes com tanta plasticidade quanto o insípido adjetivo interessante, que deve ser bege e polígamo, tanto se presta a casar com todo o género de pretendentes.
Por entre estas fidalguias da língua, o que abespinha os falantes, que se têm todos por entendidos, é ouvirem alguém utilizar o pleonasmo subir para cima ou descer para baixo, a metonímia beber um copo de água ou os aondes, quando corretamente empregados. Nos esforços de hipercorreção ou de tradução à letra, acontecem fenómenos como o que Mia Couto relata no texto “A fronteira da cultura”: “(…) esse palestrante, para evitar dizer que ia fazer uma apresentação em power-point, acabou dizendo que ia fazer uma apresentação em ‘ponta-poderosa’. O que pode sugerir maliciosas interpretações.”
Ao contrário da corrente elitista que atribui aos especialistas o monopólio do conhecimento, não é preciso fazer-se faculdade para se saber a usar a língua. A linguística que lá se ensina é pouco voltada para matérias de real utilidade para o falante (pesem embora todas as ressalvas que faço ao que é considerado útil e prático) e, como certa vez proclamou a minha professora menos preferida, assume-se que quem chega à faculdade já tenha o domínio da língua. Mesmo que seja uma conjetura errada, e mesmo num curso de língua materna, nada se faz para colmatar aquilo que já adivinhamos ser… a lacuna. Um ano antes de nos atirarem para o ensino, mandam-nos ser autodidatas e estudar a gramática. E já está.
Para se saber falar e escrever, é preciso ler (livros), utilizar o dicionário e outras ferramentas auxiliares. É preciso ter-se interesse, curiosidade e desvelo, temperados com uma boa pitada de amor à língua. Não é pouco, mas basta.
* O autor usa nos seus textos uma norma ortográfica diferente da deste blogue, opção que foi aqui respeitada.
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