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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

06
Abr24

À janela

Sónia Quental

 

Captura de ecrã 2024-04-06 191012.png

O lugar fora sempre à janela, uma forma de cruzar o movimento no tempo e no espaço com o desconhecido que desbravava ao de leve, com o olhar em laser sobre a paisagem. Não gostava que me enganassem sobre o tempo e a distância até ao destino, com o corpo mole a escorregar para a lamúria do ainda-falta-muito-para-chegar, abafada com uma mentira sempre igual. O enjoo só costumava vir quando a viagem de carro era longa, para uma sorte forçada, e me faziam engolir arroz-doce e pinhões à chegada.

A vida foi essa espera constante, numa viagem de coordenadas incertas. Espera pela noite de consoada, pelas férias de verão, pela carta que há de vir no correio, pelo toque do telefone, pelo episódio da próxima semana, por rapar a taça e espetar o palito no bolo, pela época dos morangos e das vindimas, pelo dia de aniversário, pela picada da seringa, pelos guinchos do porco quando a goela rasgava – a espera pela encomenda, que é sempre a mesma. Quando uma espera acaba, começa logo outra, desejada ou temida (às vezes ambas). A saciedade traz consigo a ameaça do vazio, por isso é preciso recriar a espera e a incerteza com uma tensão que não seja excessiva e possa respirar nos breves momentos de consumação.

Só o estado de fluxo que a descoberta dos talentos traz faz esquecer essa espera, projetando uma cápsula que leva em viagem, não no tempo, mas para fora dele, e apagando o rasto do enigma no trava-língua “quanto tempo o tempo tem”, o único que conseguia dizer sem tropeçar nas sílabas. Talvez seja o empenho em resolvê-lo que me faça andar sempre adiantada, condenando a paciência às agruras da espera.

A reflexão, porém, nasce de não me ter feito esperar para ler o ensaio que Andrea Köhler dedicou à espera, na obra O Tempo que Passa, que me cortejava às claras desde o primeiro olhar. A expetativa não foi defraudada, envolvendo-me agora em castelo no arco de metáforas culinárias que a leitura serve para o jantar.

 

 

28
Mar24

"Trivia"

Sónia Quental

        Sento-me, preparada para esperar, quando recebo um e-mail com um inquérito sobre o que é a beleza nos dias de hoje. Um estudo sobre a beleza “real”. Ocorrem-me fragmentos de um questionário que Luís Quintais promoveu a poema: “Em que medida o incomodam sentimentos de predestinação? Nada? Um pouco? Moderadamente? Muito? Muitíssimo?”

        Chega a minha vez. Perguntam-me se quero acelerador. O cronómetro grita em surdina: acelera, acelera. Digo: “Não”. Desacelera. 35 minutos com a tinta. Como se me ouvisse, na rádio uma música desatualizada fala de chamas eternas e destino. Ainda não sabe que o destino é um algoritmo. A beleza, estatística de cabelos brancos.

       Enquanto me torno mais carvão, a cabeça rascunha. Consigo fazer as duas coisas ao mesmo tempo e há que aproveitar quando o tempo desacelera, mesmo que as mãos crispadas nos joelhos ainda estejam a contar. Desassossego nos momentos de transição, principalmente se espremidos pela pressa. Queria ter comigo o Ensaio sobre a Espera, de Andreia Köhler, que vinha muito a calhar, mas ainda não o comprei.

        Faço antes uma leitura ligeira, mas esperançosa: como curar a dor de costas através da conexão mente-corpo, mas nem a desaceleração dá tempo para praticar. No telemóvel, uma fotografia de uma página do Tao Te Ching aberta ao acaso (faltou-me a paciência para a copiar à mão): “Quem se põe em bicos de pés não se mantém ereto./ Quem estica muito as pernas não pode andar”.

        Tudo o que precisava de saber sobre dores de costas e predestinação. Quanto à beleza, tendo a concordar – moderadamente, isto é.

 

06
Jun23

À espera de uma encomenda

Sónia Quental

Parede rosa (5).jpg

 

The ultimate gift is the waiting.

Jean Klein

 

 

A encomenda não chega. Quero debulhar as horas e os dias, raspá-los desta espera que não acaba. Não saio de casa, porque a encomenda pode chegar e o mais certo é que chegue quando não estou. É nesses momentos que a vida acontece: quando me ausento. O que me apanha são as contas, o condomínio, as infiltrações, mesmo quando ando em bicos de pés e tento não fazer barulho. O telefone não atendo, a campainha ainda menos – só o correio me atraiçoa. Exceto quando estou à espera de encomenda: é então que se faz de rogado.

À porta, aparece-me todo o tipo de gente. Da última vez que abri, porque a espera da encomenda me fez relaxar cautelas, era um emissário da Securitas a perguntar-me se queria assistir a um curso que decorria na rua ao lado. Horas antes, ao atender sem querer o telemóvel entre provas de sutiãs, não era para mim a chamada (deram-me um número que já teve dono, por isso até no Natal ligam ao engano).

Tudo porque estou à espera de encomenda e temo que seja o carteiro à porta ou o estafeta ao telefone. Não posso aspirar a casa porque às tantas a encomenda chega e eu não ouço. Não posso atirar-me ao trabalho, porque a campainha me sobressalta a concentração. Cozinhar está fora de questão, para não deixar o fogão ao abandono e o cheira a comida a escorregar da roupa. Levar o lixo, só se for a correr e a olhar por cima do ombro. Vestir o pijama não é aconselhável, porque vou ter de descer para abrir a porta. E de nada adianta pôr-me à janela, porque o correio só vem quando não estou a ver.

Só me resta esperar. Falha na distribuição. Uma vez, duas. Mensagens de SMS, e-mails a avisar que a encomenda está na rua e de novo a dizer que é arredia à entrega. A única coisa que me resta entre um dia e o outro é dormir, mas a inquietação não deixa. Já não quero saber da encomenda – o que quero é que a espera acabe. Quero a rotina, quero retomar o fio do sono. Quero voltar a escorraçar vendedores, fazer de conta que não ouço a porta. Quero que me deixem lavar os dentes, foliar à vontade com o secador. Quero caminhar sem tropeçar nas horas. Quero fazer a digestão em paz. Quero o fim da agonia, do abafo que cisma em não trovejar. Quero a certeza das coisas previsíveis, que não se desviam da hora marcada. 

 

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0