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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

24
Set23

O Olho que tudo vê

Sónia Quental

 

No entanto, a cultura atual funciona em bases diametralmente opostas, nas quais o exibicionismo vulgar, a perda da intimidade e a consequente destruição da profundidade estão na ordem do dia.

Maurício Righi

 

A consciência cósmica é substituída pela vigilância social, a percepção do absoluto, pela acrobacia cerebral. Daí resulta uma desidratação progressiva da alma, uma penúria espiritual mais apavorante que a fome.

Arthur Koestler

 

 

 

A pornografia da arte a propósito da remoção de estátuas e a evocação da exposição pretérita Noites Brancas, de Julião Sarmento, coroando a notícia recente do Happiness Camp aqui próximo. A reedição providencial da Beleza de Roger Scruton. Estudos que me permitem continuar a debruçar sobre o masculino e o feminino, interrompidos pela notícia de que quase um terço dos norte-americanos com menos de 30 anos seria a favor da instalação de câmaras dentro de casa.

Se em tempos não acreditava no acaso, hoje já não sei, mas isso não impede que me proponha o desafio de unir as notas aparentemente soltas das últimas semanas e de tentar dar-lhes coerência ou descortinar as relações possíveis entre elas.

Incumbiram-me, em 2012, de levar turmas em visita a uma exposição patente em Serralves: Noites Brancas, de Julião Sarmento, um artista de quem nada sabia e de quem preferiria nada ter ficado a saber. Expor adolescentes à crueldade mórbida e à obscenidade daquela “arte”, por mando de quem vê em toda a cultura instrução vantajosa, foi tarefa aflitiva, que não tentei explicar aos alunos, porque não havia como. Apesar de pouco conhecedora das artes plásticas, diviso nelas a mesma tendência da literatura deste início de século, sobretudo a poesia, que se cose de vísceras e do lado mais pútrido da matéria, no rebaixamento do humano à sua dimensão animal, acometida do desejo gratuito de chocar. No entanto, é esta que merece consagração e que não se pensa em remover da vista pública. Como acusa Zan Perrion, “The symptom of the modern times is that we've turned our face away (...) from beauty. And we celebrate ugliness”.

Não foi apenas o sentido estético que se inverteu, mas a importância que se lhe dá, aventuro que pela relação que a Beleza tem com o transcendente, que, se ainda se inscreve na cultura, é como tradição morta ou fantasia New Age. O questionamento existencial foi substituído pela exploração macabra do excremencial e pelo livre curso dado às ambições demiúrgicas do indivíduo, que não se coíbe de patentear urinóis artísticos e Frankensteins humanos.

 

É possível caracterizar a recaída geral de nossa cultura, rumo à contemplação de formas e conteúdos crescentemente dionisíacos, como uma consagração filosófico-estética de ‘princípios desumanos’. Nesse sentido, o movimento das artes plásticas, em sua depravada hostilidade contra o belo, surge como paradigma dessa degradação.

Maurício Righi

 

       Depois do ataque ao sexo masculino, é a vez de a mulher, representante da Beleza e do Mistério, ser anulada enquanto tal e na nudez que a revela mulher – a menos que seja o tipo de nudez que lhe expõe os fluidos e a decadência da carne.

 

Percebe-se (…) uma rendição incondicional ao biológico em sua faceta decadente e fragmentária, uma vez que o biológico tende, em seu processo orgânico, e de forma inexorável, ao desgaste e à decomposição, junto à correspondente perda de unidade orgânica e harmonia estética.

Maurício Righi

 

 

As forças de decomposição da cultura e da arte, a erosão do género e o materialismo tonificam a apoteose pueril do sucesso, do consumo e da felicidade, concorrendo todos para a exteriorização e a superficialidade do pensamento. Aqui se insere também a influência do New Thought, da psicologia positiva, do coaching e dos movimentos sociais da berra, com as suas fórmulas light, visando substituir moral e religiosidade pelo conforto de lemas progressistas, forçando um falso sentido de harmonia e contentamento que tenta iludir a razão, levando-nos finalmente a repetir que 2+2 = 5.

No entanto, “Na falta de eficientes modelos de transcendência, dos quais dependem as felicidades duradouras, a cultura e as pessoas tendem naturalmente ao vazio e, consequentemente, à infelicidade” (Maurício Righi). O mesmo horror ao vazio, a insegurança, a incapacidade de estar só e de cultivar a solidão que faz com que muitos acendam a televisão desde o raiar do dia farão também com que esses, complacentes com as câmaras que crescem como cogumelos fora de casa, também as queiram instalar dentro. As câmaras e a vigilância tornaram-se o Olho desfigurado da transcendência, a relação que subsiste com o Invisível, despido de Mistério e ao serviço da ordem social, que apenas o sacrifício humano pode aplacar.

 

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Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

10
Abr23

"Guilty pleasures"

Sónia Quental

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Elevation always brings isolation.

R. C. Blakes, Jr.

 

A happy man needs no entertainment and no socializing. He is content.

Lester Levenson

 

You're a success in life when you wake up, when you don't have to apologize to anyone, when you don't have to explain anything to anyone.

Anthony de Mello

 

            Tendemos a esconder os nossos vícios, a entretê-los às ocultas para que não nos apanhem no ato e não tenhamos de nos justificar, sobrevinda a vergonha, o que pode referir-se tanto aos doces como a comer de mais, fazer compras compulsivas, roer as unhas e - como muito se escreve por aí e tudo resume, sem nada dizer - etc. Mas há vícios aparentemente inócuos que incomodam mais a quem os surpreende do que a quem deles sofre: falo, por exemplo, da perversidade de estar em casa. Quando adolescente (e adulta já), ouvia o meu pai censurar-me por estar sempre “fechada em casa”; alguns anos depois, o conselho inopinado com que a minha orientadora de mestrado me deixou, citando Celan, aqui em rude paráfrase, foi que fosse viver a vida; recentemente, recebo a reação de estupefação de alguém por estar dentro de casa num dia de sol. Todos têm em comum acharem que é lá fora que a vida existe, o que ainda não deixou de me incomodar e vai fazendo com que me exponha cada vez menos, agravando mais ainda este aparente agravo.

            Daí o alívio que senti ao encontrar o excerto que a seguir traduzo, num livro de Peter Block (The Answer to How is Yes), dando continuidade ao tema da minha crónica anterior: “Vivemos numa cultura que esbanja todas as suas recompensas naquilo que funciona, uma cultura que parece valorizar mais o que funciona do que aquilo que importa. Uso a expressão ‘o que funciona’ para traduzir o nosso amor pelo que é prático e a nossa atração pelo que é concreto e mensurável. A expressão ‘aquilo que importa’ engloba a nossa capacidade de sonhar, de reclamar a nossa liberdade, de sermos idealistas e de dedicarmos as nossas vidas ao que é vago, difícil de medir e invisível.” Foi a primeira vez que encontrei por palavras uma descrição daquilo que faço: dedicar-me ao que é vago, difícil de medir e invisível. Agora, que sei que isso existe, o meu descanso é outro. Já não tenho de corar quando me perguntam o que estou a fazer, de inventar obrigações domésticas como pretexto para o meu eremitismo nem de sentir peso na consciência por não ser “sociável”, qualidade suprema da pessoa integrada e normal. Já há nome para o que (não) faço (e não é “introversão”).

            Estranhamente, era eu que ia para a rua quando, em anos recentes, todos se fechavam em casa. Tenho uma bússola que me faz viver às avessas e, se algum dia ela avariar ou a demência ameaçar, basta-me ver para onde vão as massas para saber que o caminho é o oposto e voltar a encontrar o norte. A verdade mora no avesso do mundo.

            Ainda assim, é difícil evitar o contágio ou a força do condicionamento. Deixar de pensar em termos de produção quando, ao fim de um dia, nada de “útil” se fez e a mente gira freneticamente sobre si mesma, a procurar desculpas para o que nos dizem ser o mal da procrastinação ou do tempo perdido. Os dias contam em função do que se faz, do que se conseguiu “adiantar”, das tarefas riscadas da lista, e o nosso valor é inferido de quão cheios os temos, da medida do nosso contributo para a sociedade.

            Confesso que o veneno deste espírito utilitário também me ataca às vezes. Penso: qual a utilidade de escrever se nada de novo tenho a acrescentar ao que já foi dito por outros? Porquê perder tempo quando não sou nenhum génio literário e não escrevo o que às pessoas interessa ler? Perguntas cuja resposta escapa à razão. Há coisas que se faz porque se tem de fazer, porque a elas se é impelido e porque fomos postos aqui para isso, não nos cabendo pedir satisfações, medir resultados ou esgrimir comparações. Há perguntas cuja resposta é o tautológico “porque sim” ou “porque não” ou mesmo “porque não sei”.

            Muitos porquês interrogados me foram dirigindo ao longo do tempo, que fundamentalmente se reduziam a um “Porque é que és assim?” que assumia desde logo alguma disfunção. Não eram perguntas de curiosidade, de interesse, de querer saber ou mesmo de bem-querer, mas de acusação, perguntas nascidas do medo do que não é familiar e vem pôr em causa todo um constructo do mundo. Há uma fissura no cenário e é preciso saber porque é que está ali para que possa ser reparada ou disfarçada, sem perturbar a ordem tida como natural e pôr em risco quem nela vive. Sempre em nome do bem comum.

            Acontece que estou a aprender a não me ralar com as minhas alegadas ruindades. Prefiro ocupar-me a desmanchar ideias, desligar automatismos e expandir limites percebidos. Prefiro escolher a liberdade de ser e descobrir constelações que só vislumbra quem mora no vago, no invisível e difícil de medir - sozinha ou acompanhada.

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

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