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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

22
Nov24

"Buffering"

Sónia Quental

We are the authors of why we suffer by the fiction in which we dwell.

 Caroline Myss  

 

 

      Afastando-se do Moonbucks a toda a pressa, Ludovina atravessou a forma-pensamento que tinha criado e energizado no seu ecrã mental, que girou sobre si mesma até perder a força e se desmaterializar antes de conseguir manifestar fosse o que fosse. A impressão visual daquele círculo inacabado, em rotação convulsa, fê-la pensar na sua vida como um buffer incessante, um processo de armazenamento de dados na memória temporária que impede a continuidade de qualquer fluxo.

         O cheiro a enxofre foi o único rasto daquela experiência malograda, que preferia deixar para os confins do esquecimento. Não era daquelas que acreditavam no valor intrínseco das experiências, vivendo suspensas da novidade e extraindo prazer da sua quantidade e variedade, com a boca eternamente aberta ao próximo estímulo. Tentava lembrar-se se fora Proust ou Kafka que dissera que não era preciso sair do quarto para desmascarar o mundo. De resto, desde que o Partido dos Bons tinha assumido o poder e decretado a atmosfera de Simpatia Ecuménica, era inútil sair para apanhar ar, porque o sufoco cercava quem quer que andasse na rua.

         Contra a expetativa dos seus mais acérrimos apoiantes, o Império da Simpatia tinha gerado fortes reações adversas. Não podendo escapar fisicamente ao pólen de doçura, as pessoas procuravam asilo mental, regredindo para estágios infantis em que se entregavam aos cuidados dos outros. A demência estava em ascensão, tal como os acidentes, confirmando a tese de um conhecido psicanalista, que acreditava que a maioria das mortes era uma forma de autossabotagem ou de suicídio indireto – armado pelo próprio, mas não declarado.

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       Em todas as esquinas, havia carcaças carcomidas pela Ingenuidade, tentando agarrar-se aos promontórios de luz das moças que passavam distraídas, na ânsia de reviverem a fase oral do desenvolvimento através do aleitamento compulsivo. A mulher caída no chão antes do brunch não tinha conseguido escapar, sucumbindo à perda de todos os fluidos corporais. O polícia que lhe ajeitava o casaco debaixo da cabeça não tinha vindo para prestar socorro ou investigar a ocorrência, mas para se certificar de que ela morrera feliz e de que não tinha havido alterações no nível médio de felicidade da zona.

         Evitando esquinas e despistando vultos a torto e a direito, Ludovina fazia um caminho difícil para casa, imitando com os pés o buffering do destino.

 

15
Nov24

Casulo

Sónia Quental

 

          Para alguns, a vida é um casulo depois do outro. A falta de vínculos seguros faz sentir a porosidade ventosa de uma cápsula que não protege, apenas isola, tornando-nos ilhas à deriva num oceano de pessoas felizes, que nascem com a certeza de qual é o seu lugar e do seu direito inato de o ocupar.

      Na altura, o bullying não estava na moda. Ouvia-se apenas os cochichos de troça pelas costas, a segregação desdenhosa dos autoconfiantes, com a pressão para nos fazer imitar-lhes os modos em troca de aceitação – a sugestão inocente da mutilação para nos colarmos aos vincos que alguém dobrou por nós. Quem achava que tomava conta da nossa felicidade ao participar dessa pressão para funcionarmos em sociedade, por mais convencido que estivesse das suas boas intenções e da sua autoridade pedagógica, não conseguia disfarçar o desconforto de conviver com o que sobrava à normalidade, ameaçando trazer ao de cima o que a custo asfixiava sob o limiar da consciência.

      A vida era um casulo de plasticina, que as mãos dominantes apertavam e moldavam ao seu critério – porque quem não sabe nem finge saber qual é o seu lugar, quem não teve uma estaca de amor a ajudar as suas hastes a medrar seguras, é durante muito tempo frágil e fraco, suscetível, movido pela fome de pertença que o faz render e render partes de si. A resistência diária exige um dispêndio incomportável de energia, por isso vai-se cedendo aqui e ali, até que deixa de se notar. Quando a cedência se torna modo de vida, perde-se conta às suas manifestações mínimas, que têm um efeito tão devastador quanto as maiores, pelo costume que criam – por escaparem mais facilmente à deteção.

        Em cada patamar que traz a renovada clareza de que a busca de quem somos nos leva por um trilho cada vez mais solitário, há uma escolha a fazer. Quem porfia, quem faz essas escolhas deixando-se morrer e voltar à vida sem saber se voltará a respirar, abandonando um casulo depois do outro, contrariando os reflexos condicionados, reconstruindo a sua integridade psicológica e anímica, com um compromisso cada vez mais estreito com a verdade, descobre que já não quer pertencer, que já não é o enjeitado, mas aquele que enjeita. O oceano de plástico lá fora, o nonsense da alienação ubíqua, as manipulações impercetíveis nas relações pessoais já não convencem. Não se suportam. Porém, a cada casulo rompido, revela-se uma força desconhecida, a pele fica mais transparente, há um centro que ganha em vitalidade e firmeza.

         Ficam para trás os tempos de mendigar sobras, assim que se sentem os primeiros respingos de uma fonte interna, essa que ninguém procura, com a cerveja ou o copo de vinho na mão, as incontáveis concessões às amizades de conveniência e ao desejo de aceitação adolescente, que nem a passagem do tempo acalma. O casulo abre-se em casa e os funcionais interrompem a pose para nos assaltarem os segredos e surripiarem o mapa da felicidade que afinal também procuram, desfeitas as ilusões da funcionalidade, do sucesso, das respostas que afinal nunca tiveram.

 

 

07
Nov24

Essência Inc.

Sónia Quental

All we are, essentially, is a defense mechanism against the truth.

John Kent

 

 

         Tendo percebido tarde que não havia guardanapos, saíra do brunch com a marca da bebida cafeinada a desenhar-lhe um bigode no beiço. No meio da confusão, alguém lhe tinha enfiado um panfleto no bolso:

 

Essência Inc.

 

Sofre de insónias? Acorda sem ânimo para enfrentar o dia? Tem dificuldades de concentração? Desejos incontroláveis de açúcar? Foi diagnosticado com Infelicidade mórbida? Nada que um toque de Essência não cure.

Desenvolvemos um programa patenteado de recondicionamento mental que sonda o seu potencial latente para o transformar na versão mais avançada de si mesmo. Navegamos consigo pelos desafios da vida moderna, mostrando-lhe como materializar visões de Sucesso e unir-se à corrente de energia da Era de Aquário, em que fundimos intenções para elevar a vibração coletiva e cocriar um mundo sem mácula.

Venha forjar o seu impacto connosco, numa proposta de simbiose íntima que parte do diálogo entre o humano e a máquina: um upgrade essencial para um Ser mais pleno e autêntico.

 

Essência Inc. Felicidade concentrada, à distância de um mantra.

 

 

         O anúncio era de um dos Centros de Bem-Estar Integral financiados pelo Gabinete da Desinformação, com instalações em todas as cidades do plano físico e astral, e sede social na Nuvem. No grupo de Desplataformados a que pertencia, Ludovina tinha começado por ouvir rumores das atividades que promoviam com o incentivo de donativos conscientes, em que a elevação de consciência era proporcional à magnanimidade do patrocínio.

          Falava-se da lista de cirurgias estéticas que tinham lugar nos antigos matadouros para tratar desordens de autoestima, e eram também eles que acomodavam os serviços de lavagem automática com mangueira de pressão e sucção cerebral para eliminar o vácuo mental onde nasciam as ideias perigosas. Os sócios tinham o benefício exclusivo de um Amigo Certificado para garantir que elas não despontassem, prevenindo o perigo de mutação para as Ideias contra o Bem Comum e outras variantes, com diferentes níveis de risco. Outra das funções destes companheiros chegados era conter o ressentimento e impedir a frustração de germinar, trabalhando ao mesmo tempo para erradicar a epidemia de solidão do planeta.

         Havia sessões semanais de 8 minutos de tantra ao som pacífico das focas que fazia vibrar as ruas e que funcionava como cartão de visita destes centros vanguardistas. Uma das últimas novidades eram as salas de tittytainment, uma medida de combate ao individualismo e de reforço dos recreios comunitários em que se fazia a afirmação de identidades imaginárias.

        O conhecimento que Ludovina a princípio obtivera por vias não oficiais fora substituído pelo estudo prático destes laboratórios de positividade, uma vez que a renovação da sua carteira profissional incluíra um módulo obrigatório de formação para a Responsabilidade Social e o Sucesso Sincronizado. Esquecida da marca no bigode e com a música da Barbie a alinhar a nota desarmónica das suas células, Ludovina deu consigo em céu aberto, onde a esperava a forma-pensamento que tinha projetado para o exame do curso.

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Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

04
Nov24

Açúcar amarelo

Sónia Quental

De onde vens, certeza

de que um pouco mais de açúcar

não fará mal a ninguém.

Adélia Prado

 

 

         O Ministério da Felicidade e o Ministério da Vida Saudável tinham tomado a iniciativa conjunta de consagrar o domingo como Dia do Brunch, oficializando aquele que era já um hábito informal de famílias e pessoas emancipadas. Ludovina queria escapar à fila de estabelecimentos cor-de-rosa que transformavam esse destino em certeza, mas os agentes da polícia que rodeavam uma mulher caída no chão, ajeitando-lhe o casaco a servir de almofada, dificultavam-lhe a fuga.

         Entrou apressadamente na primeira porta que encontrou, com um letreiro de néon a piscar “Moonbucks”. No ambiente, que cheirava a panquecas, ovos mexidos e flocos de simpatia, destacavam-se os cubos de açúcar amarelo amontoados nas mesas, uma orientação governamental amigável para uma saúde 100%. O açúcar branco há muito tinha deixado de ser consumido e só se conseguia a preços exorbitantes na dark web.

       Depois da generalização do trabalho remoto, era mais comum os animais de estimação levarem os donos à rua do que o oposto, aliciando-os com a promessa dos torrões de açúcar que lhes atiravam uma vez instalados na mesa familiar e human-friendly, onde se reaprendia um convívio salutar.

         Ludovina procurava um recanto sossegado onde pudesse pegar no livro que andava a ler, outro produto de consumo a que o governo franzia publicamente o sobrolho. Dirigiu-se ao único espaço individual do estabelecimento, reservado à prática do mindfulness, pensando poder camuflá-lo entre o cor-de-rosa fofo das almofadas. A bebida com cafeína que pedira, um gesto cada vez menos usual da clientela patusca de domingo, veio acompanhada de um pequeno copo de água vitaminada, que cheirou com desconfiança.

         O faro era o único sentido em que ainda confiava. Olhando à sua volta enquanto esperava o momento certo para expor o livro de capa dura, notou as frases de motivação que se acendiam ao som da Barbie Girl, uma técnica subliminar ao serviço da felicidade duradoura. Aturdida pelos estímulos sensoriais e temendo a estranheza dissonante que sabia não conseguir deixar de exalar, afundou-se no banco. A sensação de esmagar um dos cubos amarelos com o traseiro fez-lhe disparar o coração, que pulsava azul por entre a névoa que induzia o nirvana.

 

16
Ago24

Deus-Ikea

Sónia Quental

           

         A designação não é minha, mas de um artigo de Pedro Saraiva Ferreira sobre as novas espiritualidades que vieram substituir a religião – uma religiosidade de consumo, que o autor classifica como um “Cristianismo sem Cristo”, à imagem do Homem psicológico, que nasceu para ser feliz, indiferente à ideia de salvação. Guia-o uma busca pelo sagrado que segue o modelo “faça você mesmo”, à semelhança dos móveis do Ikea.

         A única coisa que tenho contra os móveis do Ikea são as arestas cortantes, as bicadas que às vezes dão e ter de pedir a outra pessoa para os montar. Não sou essa mulher emancipada que se diverte em noites de insónia agarrada aos hieróglifos de manuais de instruções e a dezenas de parafusos, peças, pecinhas e objetos de natureza incógnita, com uma pequena chave como varinha mágica, capaz de encaixar tudo no sítio.

         No entanto, serve-me a comparação para defender que, no que toca à busca do sagrado, não há como escapar ao DIY: cada um tem de redescobrir a roda, levantar a própria cama. Podemos formar comunidades, reclamar com o bot do atendimento ao cliente, pedir orientação a quem já montou a sua ou vai mais adiantado, mas serão sempre nossos os braços e as mãos, a irritação solene, a paciência ao limite, os momentos de epifania, as misérias, a glória.

         Quem faz questão de montar um móvel sozinho, sem os selos de autoridades externas, embalados em dogmas ossificados, não procura necessariamente os atalhos enganosos da autoajuda nem está preocupado com garantias de bem-estar. Tem como fito o Profundo, que quer conhecer e amar, um palmo de cada vez, na aspereza salgada da pele. Não anda em busca das "opiniões certas" que o colunista do Observador opõe à tentação do relativismo ou à fantasia das preferências pessoais – nem sequer lhe interessam opiniões, que não entram no túnel estreito que se vai abrindo com o peso do corpo no chão, os olhos sondando o céu, o punho esfolado de vontade.

         Não vejo Felicidade que não seja salvação.

 

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Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

19
Jul24

O caroço

Sónia Quental

 

But to find what true happiness is, we must be willing to be disturbed, surprised, wrong in our assumptions – and cast into a very deep well of unknowing.

Adyashanti

 

                  

         Admito que a glorificação da autoconfiança sempre me inquietou. À medida que ia atravessando limiares etários, sempre à espera de chegar ao círculo das pessoas que “sabem” (o que se passa, o que andamos aqui a fazer, com respostas conclusivas para as perguntas que importam), descobri que quase ninguém se importa com as perguntas que importam. Passado aquele breve intervalo da adolescência ou a eventual crise de vida que leva a que se interroguem sobre o motivo de estarmos aqui ou sobre o que é a felicidade, ninguém quer saber. E descobri que, de entre aqueles que se importam, ninguém ou quase ninguém sabe nada que valha a pena saber. Ninguém que eu conheça, pelo menos – que esteja num círculo de convívio que transforme a ideia de um tal ser em algo mais próximo do que o mito ou a improbabilidade estatística, dando-lhe os contornos de possibilidade alcançável.

         Admito que os autoconfiantes me pareciam mais capazes de lidar com a vida. A crença acaba por ter o seu poder hipnótico, dá um certo desembaraço e tenacidade que leva à superação de “desafios”, esse eufemismo que, como todos os que se repetem levianamente, se tornou nada menos do que insuportável.

         Admito que sentia uma certa inveja dos autoconfiantes, a quem o sucesso parecia servido numa bandeja que premiava a simples crença na capacidade própria, fosse qual fosse o seu fundamento. “Autoconfiança” é a qualidade que aparece à cabeça da lista de predicados que se procura no sexo oposto. A pessoa autoconfiante inspira automaticamente confiança – pelo menos, à primeira vista. Chegado o momento da revista, admito que comecei a ver o quanto de propaganda havia na autoconfiança e o escandaloso logro que espreitava por baixo. Percebi que quase todos os autoconfiantes estavam enganados quanto às qualidades de que se achavam investidos, embora não se cansassem de as alardear: se as repetissem muito, talvez conseguissem convencer-se, a si e aos outros, e elas se tornassem reais.

         Admito outra coisa: que os autoconfiantes eram pessoas demasiado normais para mim. Com demasiadas certezas, demasiado instaladas na vida (não conseguia evitar o horror a esse “encaixe”). Convencidas de que a autoconfiança e a força de vontade bastam para marcar pontos, subjugar os obstáculos de uma existência empenhada em criar dificuldades, materializando uma meta depois da outra por pura diversão, numa luta de vontades que pedia, além de autoconfiança e pensamento positivo, perseverança.

         Admito que a perseverança me inspira mais simpatia. Saber a que aplicá-la é para mim um “desafio” bem mais valoroso do que cultivar a autoconfiança à força bruta, envergar trajes glamorosos que nada escondem por baixo. Mais do que a polpa, interessa-me o caroço.

 

25
Abr24

Da marmelada e de outras compotas

Sónia Quental

           

Apesar de termos deixado de nos reduzir ao desempenho de papéis sociais, com a noção de felicidade pessoal e autorrealização ao leme da nau das liberdades individuais, o resultado não parece apontar para um aumento da saúde mental, da satisfação e da felicidade em si. E não, desta vez a culpa não é do governo.

A abundância de possibilidades e as facilidades materiais que nos foram abertas nem por isso trouxeram vidas e relacionamentos mais significativos. Pelo contrário, igualmente fartas são a desorientação e a impermanência, com as pessoas saltando de emprego em emprego, de casa em casa, de relacionamento em relacionamento, de diversão em diversão, despedaçando a sanidade já vacilante contra o relaxamento sedutor dos valores morais, que não cumpriu a promessa de lhes sossegar a alma.

Havendo ainda quem lucre com a propaganda, tudo indica estar condenado à extinção o mito obsoleto das “almas gémeas”, em todas as suas variantes criativas (soulmates, twin flames, ...), dividindo-se as alternativas entre uma visão cínica e amargurada do sexo oposto, e o investimento em parcerias funcionais, segundo a lógica objetificante do comércio. Quando se torna demasiadamente fácil o acesso a relações físicas, e o conceito de intimidade emocional baixa cada vez mais o preço, é tentador sonhar com o unicórnio que se diferencie, reabilitando o que parece já não ter defesa: a pureza, a confiança, a lealdade, a constância – impermeáveis à degradação reinante. É uma ânsia remota, que adquire os contornos esfumados da fantasia e soçobra contra os números dos divórcios e das famílias desfeitas, a normalização dos deslizes e das relações “abertas”, do sexo casual, das situações sem rótulo e sem compromisso, das permutas leves em ambientes de limites também eles esbatidos.

Como os produtos perecíveis e de consumo, as relações têm ciclos cada vez mais curtos, prazos de validade impiedosos. A fluidez insensível dos encontros e das salas de chat já não deixa que se pense em alguém como “especial”. Nesta impessoalidade sem contratos, estamos todos de passagem – no strings attached. Os finais escrevem-se em aberto, o destino pesa: deixá-lo fluir.

 

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Fotografia: © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

06
Abr24

À janela

Sónia Quental

 

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O lugar fora sempre à janela, uma forma de cruzar o movimento no tempo e no espaço com o desconhecido que desbravava ao de leve, com o olhar em laser sobre a paisagem. Não gostava que me enganassem sobre o tempo e a distância até ao destino, com o corpo mole a escorregar para a lamúria do ainda-falta-muito-para-chegar, abafada com uma mentira sempre igual. O enjoo só costumava vir quando a viagem de carro era longa, para uma sorte forçada, e me faziam engolir arroz-doce e pinhões à chegada.

A vida foi essa espera constante, numa viagem de coordenadas incertas. Espera pela noite de consoada, pelas férias de verão, pela carta que há de vir no correio, pelo toque do telefone, pelo episódio da próxima semana, por rapar a taça e espetar o palito no bolo, pela época dos morangos e das vindimas, pelo dia de aniversário, pela picada da seringa, pelos guinchos do porco quando a goela rasgava – a espera pela encomenda, que é sempre a mesma. Quando uma espera acaba, começa logo outra, desejada ou temida (às vezes ambas). A saciedade traz consigo a ameaça do vazio, por isso é preciso recriar a espera e a incerteza com uma tensão que não seja excessiva e possa respirar nos breves momentos de consumação.

Só o estado de fluxo que a descoberta dos talentos traz faz esquecer essa espera, projetando uma cápsula que leva em viagem, não no tempo, mas para fora dele, e apagando o rasto do enigma no trava-língua “quanto tempo o tempo tem”, o único que conseguia dizer sem tropeçar nas sílabas. Talvez seja o empenho em resolvê-lo que me faça andar sempre adiantada, condenando a paciência às agruras da espera.

A reflexão, porém, nasce de não me ter feito esperar para ler o ensaio que Andrea Köhler dedicou à espera, na obra O Tempo que Passa, que me cortejava às claras desde o primeiro olhar. A expetativa não foi defraudada, envolvendo-me agora em castelo no arco de metáforas culinárias que a leitura serve para o jantar.

 

 

28
Fev24

O lado negro da espiritualidade

Sónia Quental

Não sei precisar quando o conceito de “ego” entrou na moda nos meios espirituais e todos passaram a contar como o “seu” ego tinha feito isto e aquilo com toda a autonomia, num estranho exercício dissociativo que o transformou numa espécie de animal de estimação, separado do indivíduo que assim se expressava. A pessoa que falava parecia desempenhar o papel de mónada iluminada que descia por instantes à Terra para censurar o mau comportamento da mente que tinha ficado a animar aquele corpo, presa a tendências retrógradas que não eram de sua responsabilidade.

Nos grupos que tratavam o trabalho espiritual com marcada austeridade, o desconforto era constante, porque a tendência a vigiar o ego tinha planos de expansão e não se ficava pelo próprio: precisava de vigiar também o dos outros. Assim, a pessoa dita “consciente” tinha de andar em contrição permanente, com a culpa do pecado original gravada na testa, o semblante grave e os ombros curvados, não fosse alguém acusá-la de caminhar demasiado direita e querer amestrar-lhe o ego, lembrando-lhe todas as suas projeções, compensações e programações herdadas.

Debbie Ford, uma das autoras que trouxeram à ribalta o trabalho com a sombra, publicou no final dos anos ’90 o livro The Dark Side of the Light Chasers, em que expunha as pretensões dos "trabalhadores da luz", chamando a atenção para a importância da integração de todos os aspetos do Eu. Não seria um livro que Ramana Maharshi tivesse escrito, mas abriu espaço a outras vozes, que preferem trabalhar mais perto da terra, convidando-nos a sujar as mãos, a voltar ao corpo e a deixar de castigar o ego por crimes presumidos. Duas delas são as de Amoda Maa e Miranda Macpherson, que reconfiguraram a espiritualidade pela rendição do feminino – e não há como passar ao lado de Mātā Amritanandamayī Devi, ou simplesmente Amma, a propósito de quem, no documentário Darshan: The Embrace, alguém que se sentou perto dela durante as horas intermináveis que passa a abraçar pessoas dizia ter sentido que o tempo deixara de existir.

There were times (...) when I was just like any other woman (...) at times feeling like a traumatized animal shivering on the floor. All of the models of spiritual realization I had worked with previously, which had been delivered through the masculine lens only, might have viewed my process as a failure to remain in the no self-state. However, the transmission of ego relaxation revealed a much more integrated, feminine approach to walking the path – to surrender in and through all that we encounter, including our animal humanity and all of our emotions.

Miranda Macpherson

 

De minha parte, recordo como, depois de vários dias de um curso de terapia alternativa que fiz em Madrid, o momento que mais me tocou foi quando o motorista do transfer que me levou do hotel para o aeroporto me contou o segredo da felicidade. Era um domingo de Páscoa e o atraso do avião fez-me lamentar a conversa abreviada pela pressa.

À semelhança dessa experiência, aprendi mais sobre espiritualidade a dançar do que a estudar teosofia. Conheci mais de perto o amor no olhar daquela monja do que em qualquer palestra que tenha ouvido. Ensina-me mais quem ocupa uma caixa de supermercado, as pessoas que vejo trabalhar com energia e alegria, sem contar os dias que faltam para chegar a sexta-feira, a professora que repara em quem não foi à aula e quer saber o que lhe aconteceu.

Foi talvez o mesmo que levou os reclusos, na última sessão de formação que dei no estabelecimento prisional masculino de Custoias, a entrarem na sala antes da hora, encurtarem o intervalo, com a formalidade voluntária da fila indiana, e fazerem em silêncio tudo o que lhes pedi, declarando finalmente o carinho que tinham por mim. Não que tivesse sido branda com eles (pelo contrário): era que me importava, e eles tinham-no testado vezes suficientes para se convencerem disso.

Nos dias que correm, mesmo que ainda não tenha largado a minha máquina de etiquetas e continue a fazer separações, nem todas essenciais, posso dizer que uma das que deitei fora foi a que dizia “espiritual/não espiritual”. Aprendi a deixar os intelectualismos de lado e a tomar posse de mim e da vida. Divisão por divisão, em vez de fustigar o ego, escolho dançar com a sombra que projeta. Acho graça quando me calca os pés: a sintonia é plena.

 

 

24
Set23

O Olho que tudo vê

Sónia Quental

 

No entanto, a cultura atual funciona em bases diametralmente opostas, nas quais o exibicionismo vulgar, a perda da intimidade e a consequente destruição da profundidade estão na ordem do dia.

Maurício Righi

 

A consciência cósmica é substituída pela vigilância social, a percepção do absoluto, pela acrobacia cerebral. Daí resulta uma desidratação progressiva da alma, uma penúria espiritual mais apavorante que a fome.

Arthur Koestler

 

 

 

A pornografia da arte a propósito da remoção de estátuas e a evocação da exposição pretérita Noites Brancas, de Julião Sarmento, coroando a notícia recente do Happiness Camp aqui próximo. A reedição providencial da Beleza de Roger Scruton. Estudos que me permitem continuar a debruçar sobre o masculino e o feminino, interrompidos pela notícia de que quase um terço dos norte-americanos com menos de 30 anos seria a favor da instalação de câmaras dentro de casa.

Se em tempos não acreditava no acaso, hoje já não sei, mas isso não impede que me proponha o desafio de unir as notas aparentemente soltas das últimas semanas e de tentar dar-lhes coerência ou descortinar as relações possíveis entre elas.

Incumbiram-me, em 2012, de levar turmas em visita a uma exposição patente em Serralves: Noites Brancas, de Julião Sarmento, um artista de quem nada sabia e de quem preferiria nada ter ficado a saber. Expor adolescentes à crueldade mórbida e à obscenidade daquela “arte”, por mando de quem vê em toda a cultura instrução vantajosa, foi tarefa aflitiva, que não tentei explicar aos alunos, porque não havia como. Apesar de pouco conhecedora das artes plásticas, diviso nelas a mesma tendência da literatura deste início de século, sobretudo a poesia, que se cose de vísceras e do lado mais pútrido da matéria, no rebaixamento do humano à sua dimensão animal, acometida do desejo gratuito de chocar. No entanto, é esta que merece consagração e que não se pensa em remover da vista pública. Como acusa Zan Perrion, “The symptom of the modern times is that we've turned our face away (...) from beauty. And we celebrate ugliness”.

Não foi apenas o sentido estético que se inverteu, mas a importância que se lhe dá, aventuro que pela relação que a Beleza tem com o transcendente, que, se ainda se inscreve na cultura, é como tradição morta ou fantasia New Age. O questionamento existencial foi substituído pela exploração macabra do excremencial e pelo livre curso dado às ambições demiúrgicas do indivíduo, que não se coíbe de patentear urinóis artísticos e Frankensteins humanos.

 

É possível caracterizar a recaída geral de nossa cultura, rumo à contemplação de formas e conteúdos crescentemente dionisíacos, como uma consagração filosófico-estética de ‘princípios desumanos’. Nesse sentido, o movimento das artes plásticas, em sua depravada hostilidade contra o belo, surge como paradigma dessa degradação.

Maurício Righi

 

       Depois do ataque ao sexo masculino, é a vez de a mulher, representante da Beleza e do Mistério, ser anulada enquanto tal e na nudez que a revela mulher – a menos que seja o tipo de nudez que lhe expõe os fluidos e a decadência da carne.

 

Percebe-se (…) uma rendição incondicional ao biológico em sua faceta decadente e fragmentária, uma vez que o biológico tende, em seu processo orgânico, e de forma inexorável, ao desgaste e à decomposição, junto à correspondente perda de unidade orgânica e harmonia estética.

Maurício Righi

 

 

As forças de decomposição da cultura e da arte, a erosão do género e o materialismo tonificam a apoteose pueril do sucesso, do consumo e da felicidade, concorrendo todos para a exteriorização e a superficialidade do pensamento. Aqui se insere também a influência do New Thought, da psicologia positiva, do coaching e dos movimentos sociais da berra, com as suas fórmulas light, visando substituir moral e religiosidade pelo conforto de lemas progressistas, forçando um falso sentido de harmonia e contentamento que tenta iludir a razão, levando-nos finalmente a repetir que 2+2 = 5.

No entanto, “Na falta de eficientes modelos de transcendência, dos quais dependem as felicidades duradouras, a cultura e as pessoas tendem naturalmente ao vazio e, consequentemente, à infelicidade” (Maurício Righi). O mesmo horror ao vazio, a insegurança, a incapacidade de estar só e de cultivar a solidão que faz com que muitos acendam a televisão desde o raiar do dia farão também com que esses, complacentes com as câmaras que crescem como cogumelos fora de casa, também as queiram instalar dentro. As câmaras e a vigilância tornaram-se o Olho desfigurado da transcendência, a relação que subsiste com o Invisível, despido de Mistério e ao serviço da ordem social, que apenas o sacrifício humano pode aplacar.

 

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Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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