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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

02
Out24

Curvas

Sónia Quental

Our bodies are not designed to follow straight lines.

Angela Farmer

 

 

         O corpo expressa-se por linhas curvas. Conhece bem o ataque de retas e vértices, o castigo requintado de ocupar uma pose que não é a sua. O corpo não quer fazer acrobacias: quer ir para o chão amolecer dores incrustadas. Quer esticar-se, torcer-se e destorcer-se, moer devagar a recusa com que se fecha. O corpo conhece o cuidado que as aberturas pedem: a escolha certa do grau certo no momento exato. Fera subtil, não obedece a mandos. Sabe o que quer e o que talvez queira, mapa da memória que só quem não sabe atravessa a direito. Conhece melhor a sua astúcia do que quem o açoita, regime marcial em rotação contínua, vinte flexões e outras vinte e ainda não chega. Senhor dos seus ouvidos e só depois do nariz, o corpo reage à brutalidade que o agride, quebra o molde e vai embora.

 

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Fotografia: 2024 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

21
Jun24

Vigésima

Sónia Quental

Já não é apenas suspeita que tenho queda para separações, especializada que sou em finais, com valência em precipícios e falésias. No encore desses fins, que foram removendo os plurais da vida, adelgaçando-lhe cada vez mais a cintura, o caminho da renovação, ainda que involuntária, acabou por me revelar mais larga afinal, numa inteireza desconhecida, que por vezes me levou por caminhos criativos inexplorados. A reviravolta que marcou o ano de 2018 brindou-me com um desses escapes acidentais, proposto por um fotógrafo que conheci na dança de rua, que encheria de cor e entusiasmo os anos vindouros.

O gosto pela arte, pelas contaminações da intertextualidade, a veia espiritual e o ímpeto a expressar uma sensualidade até aí abafada deram origem a um material que talvez se abeire do oxímoro, com uma certa ponta de escândalo para quem me conhecia tapada e posta em sossego. Não vesti personagens: provei facetas, percorrendo os diferentes prismas e escamas que a inspiração ia revelando do Feminino. Crendo-me fadada à invisibilidade, voz revolta e desavinda com a escrita, foi novidade descobrir-me parte da paisagem, cavar lugar no mundo às claras, apesar do esforço que o movimento de expansão e exposição pedia a quem antes preferia encolher-se, arrastar os olhos ao chão.

Cabe dizer que o meu amadorismo, uma certa limitação de recursos e a falta de habilidade para os artifícios da beleza tornaram a produção quase sempre pouco ambiciosa. Havia a inclinação natural para a simplicidade, que deu naturalmente mãos às circunstâncias, fazendo com que o material descartado ultrapassasse em muito o apurado, de que reuni uma seleção num portefólio entretanto fechado ao público, devido à qualidade da atenção que atraía. Reabro-o* num curto trecho de alguns dias, como forma de comemoração desta 20.ª sessão (ainda por editar), por terras de Nossa Senhora do Vau. Ao fotógrafo e amigo, Francisco Amaral, reafirmo a minha gratidão: porque me viu na multidão onde me sumia, e me deu a ver a quem pôde.

 

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* Já fechado, entretanto.

**Especialmente dedicada à Câmara Municipal de Amarante, que não teve conhecimento da nossa presença e não emprega vigilantes para informar a população de que em espaços públicos só se pode tirar selfies.

 

03
Jun24

Desvéus

Sónia Quental

 

À medida que fui observando o mundo, comecei a sentir um pouco de pena da mulher moderna, que não tem véus para usar.

Clarissa Pinkola Estés

 

           

As mulheres perderam os véus. Na rua, no metro, sobram carnes dos tecidos que as apertam. Mostram-se as pústulas e deformidades que traduzem a igualdade do valor. Uma fêmea já madura masca pastilha elástica de boca aberta. Outra cheira o sovaco do homem a que se encosta. Aqui e ali, corpos esfregam-se pegados. Uma terceira carrega um pacote de 24 rolos de papel higiénico. Na estação onde trocamos de linha, vê um filme no telemóvel enquanto desce na escada rolante.

Está tudo à vista, não porque a essência tenha vencido as aparências, mas porque não há o que ver além da aparência. Sem véus, o mundo despoja-se do mistério, sem verdade que valha a pena conhecer. As máscaras da impessoalidade cobrem com um esgar universal o que era da ordem do translúcido. E os inteligentes, encostados à esquina, ostentam o escárnio da ignorância embutida.

Rasgam-se os véus onde outrora nasciam parábolas, os símbolos da iniciação. Através deles falam os oráculos. Um véu promete, mas não se dá, porque de si se desfia o caminho ao infinito. Não de portas, mas de véus sucessivos, que convidam à revelação, ao mesmo tempo que a regulam para proteger o olhar da cegueira certa, confundir os curiosos, que cedo se perdem pela recusa do sacrifício.

O véu é casulo de silêncio onde o espírito fermenta. Um casulo sem hóspede, agora que os corpos e as emoções se querem libertados, emancipados os costumes. Onde não há véus encontram-se só as cortinas do subterfúgio, que não escondem castidade nem glória. Feitas de segredos fingidos, sintetizados artificialmente em laboratório. Logo a falta de peso os acusa.

Mas não ao véu, toca do sagrado. Quando se cai dentro de um, a queda é demorada – com tendência a não acabar.

 

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Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

28
Fev24

O lado negro da espiritualidade

Sónia Quental

Não sei precisar quando o conceito de “ego” entrou na moda nos meios espirituais e todos passaram a contar como o “seu” ego tinha feito isto e aquilo com toda a autonomia, num estranho exercício dissociativo que o transformou numa espécie de animal de estimação, separado do indivíduo que assim se expressava. A pessoa que falava parecia desempenhar o papel de mónada iluminada que descia por instantes à Terra para censurar o mau comportamento da mente que tinha ficado a animar aquele corpo, presa a tendências retrógradas que não eram de sua responsabilidade.

Nos grupos que tratavam o trabalho espiritual com marcada austeridade, o desconforto era constante, porque a tendência a vigiar o ego tinha planos de expansão e não se ficava pelo próprio: precisava de vigiar também o dos outros. Assim, a pessoa dita “consciente” tinha de andar em contrição permanente, com a culpa do pecado original gravada na testa, o semblante grave e os ombros curvados, não fosse alguém acusá-la de caminhar demasiado direita e querer amestrar-lhe o ego, lembrando-lhe todas as suas projeções, compensações e programações herdadas.

Debbie Ford, uma das autoras que trouxeram à ribalta o trabalho com a sombra, publicou no final dos anos ’90 o livro The Dark Side of the Light Chasers, em que expunha as pretensões dos "trabalhadores da luz", chamando a atenção para a importância da integração de todos os aspetos do Eu. Não seria um livro que Ramana Maharshi tivesse escrito, mas abriu espaço a outras vozes, que preferem trabalhar mais perto da terra, convidando-nos a sujar as mãos, a voltar ao corpo e a deixar de castigar o ego por crimes presumidos. Duas delas são as de Amoda Maa e Miranda Macpherson, que reconfiguraram a espiritualidade pela rendição do feminino – e não há como passar ao lado de Mātā Amritanandamayī Devi, ou simplesmente Amma, a propósito de quem, no documentário Darshan: The Embrace, alguém que se sentou perto dela durante as horas intermináveis que passa a abraçar pessoas dizia ter sentido que o tempo deixara de existir.

There were times (...) when I was just like any other woman (...) at times feeling like a traumatized animal shivering on the floor. All of the models of spiritual realization I had worked with previously, which had been delivered through the masculine lens only, might have viewed my process as a failure to remain in the no self-state. However, the transmission of ego relaxation revealed a much more integrated, feminine approach to walking the path – to surrender in and through all that we encounter, including our animal humanity and all of our emotions.

Miranda Macpherson

 

De minha parte, recordo como, depois de vários dias de um curso de terapia alternativa que fiz em Madrid, o momento que mais me tocou foi quando o motorista do transfer que me levou do hotel para o aeroporto me contou o segredo da felicidade. Era um domingo de Páscoa e o atraso do avião fez-me lamentar a conversa abreviada pela pressa.

À semelhança dessa experiência, aprendi mais sobre espiritualidade a dançar do que a estudar teosofia. Conheci mais de perto o amor no olhar daquela monja do que em qualquer palestra que tenha ouvido. Ensina-me mais quem ocupa uma caixa de supermercado, as pessoas que vejo trabalhar com energia e alegria, sem contar os dias que faltam para chegar a sexta-feira, a professora que repara em quem não foi à aula e quer saber o que lhe aconteceu.

Foi talvez o mesmo que levou os reclusos, na última sessão de formação que dei no estabelecimento prisional masculino de Custoias, a entrarem na sala antes da hora, encurtarem o intervalo, com a formalidade voluntária da fila indiana, e fazerem em silêncio tudo o que lhes pedi, declarando finalmente o carinho que tinham por mim. Não que tivesse sido branda com eles (pelo contrário): era que me importava, e eles tinham-no testado vezes suficientes para se convencerem disso.

Nos dias que correm, mesmo que ainda não tenha largado a minha máquina de etiquetas e continue a fazer separações, nem todas essenciais, posso dizer que uma das que deitei fora foi a que dizia “espiritual/não espiritual”. Aprendi a deixar os intelectualismos de lado e a tomar posse de mim e da vida. Divisão por divisão, em vez de fustigar o ego, escolho dançar com a sombra que projeta. Acho graça quando me calca os pés: a sintonia é plena.

 

 

08
Fev24

De quatro folhas

Sónia Quental

           

Acredito nos amores à primeira leitura como nos amores e desamores à primeira vista. Infalíveis, uns e outros, ao olhar aguçado da experiência, à intuição que nas mulheres apura o passar do tempo, quando chegam a descobrir que não é cego o amor, mas vê bem ao longe.

Como a poesia de Adélia Prado, amei à primeira leitura o talhe dos versos de Amalia Bautista, que me persuadiram a comprar-lhe o Trevo. Não sendo feminista, há um sentir do feminino ao mesmo tempo selvagem e delicado que esparsamente me chama ao seu resgate. Estes vultos na poesia, outros na pintura e nas coisas do espírito, cativam-me pela violência simples e crua da emoção a caminho da transfiguração, de um corpo devocional do feminino com uma fisiologia distinta em cada uma delas, oscilando entre a adoração e o esconjuro.

Num mundo dominado por pretensões de racionalismo, lembram-nos que é no escuro que caminha a mulher, que por lá a leva uma fome primordial que resiste a planos, estratégias, à mais residual tentativa de controlo. Para apaziguar essa fome, há o ato de um canibalismo amoroso que não procura desculpas, o instinto acirrado de uma presa antiga, mantida a pão e água, como Amalia Bautista no seu “Em dieta”:

Deitei-me sem jantar e nessa noite

sonhei que te comia o coração.

Deveria ser por causa da fome.

Enquanto eu devorava aquela fruta,

que era doce e amarga ao mesmo tempo,

tu beijavas-me com os lábios frios,

mais frios e mais pálidos do que nunca.

Deveria ser por causa da morte.

 

           Acudiu-me por estas linhas a lembrança de um colega que, quando foi promovido a diretor, se propôs o desafio de ver quantas mulheres conseguia fazer chorar no gabinete. Eu também chorei uma vez, tenho as lágrimas como preciosas e atirei-lhas quais pérolas de Virgem contrariada, que ele não saberia apreçar, apesar da cobiça que tinha por elas. Lágrimas que uns querem ganhar, erguer como troféus, e a outros espantam.

Há-os como ele, que não sabem que é com as lágrimas que a mulher se regenera e segura o mal à distância: “(…) há algo na pureza das lágrimas verdadeiras que anula o poder do demónio”, diz Clarissa Pinkola Estés no seu formidável Mulheres que Correm com os Lobos.

Depois da minha oferta, fiz o que outras não fizeram: juntei o resto das lágrimas e vim embora. Ainda são elas que me salvam quando fico sem jantar e me apetecem os corações que um dia me deixaram à míngua.

 

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22
Ago23

Vigilantes

Sónia Quental

 

Beauty needs a witness.

Zan Perrion

 

O animus é uma cor primária na paleta da psique feminina. 

Clarissa Pinkola Estés

 

 

Noto, em retrospetiva, as figuras vigilantes que atravessaram a minha vida adulta, velando discretamente por mim. Não falo de anjos, mas de homens. Conheço alguns, que são ou foram amigos; outros frequentam apenas os mesmos espaços que eu, vigiando à distância, desconhecendo talvez que a mulher é sensível ao seu radar.

Invade-me um misto de sentimentos: de um lado, a comoção, contrastando com o desgosto do desabrigo que conheci pela mão de outras presenças masculinas, começando pela que me ensinou a correr antes de me mostrar como caminhar.

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Quando me fiz a esse caminho aos tropeços, com pernas maiores do que eu, houve sempre algum vigilante que ajudou a aplanar o piso ou pegou por momentos na minha bagagem, fosse dando-me boleias porque não tinha carro, cedendo o ombro escorreito da amizade, dividindo inquietações existenciais ou os passos da busca da transcendência. Com uma atitude protetora e uma lealdade inabalável, que, com o respeito pelos limites da vida íntima de cada um, me faziam preferir a sua companhia à das mulheres, eram geralmente mais calados e contidos, diziam a verdade e sabiam guardar segredos.

Descobri que eu era o segredo que precisava que guardassem, enquanto me ocupava de o conhecer. Precisava do seu desvelo à minha volta enquanto mergulhava no profundo – dos seus braços sólidos e capazes para me puxarem à superfície quando me esquecia de respirar. Precisei da sua estrutura para descobrir a sacralidade da beleza e dar-lhe a forma que lhe permitisse ser vista. Socorri-me dos seus olhos quando não me via, do seu valor para achar o meu.

No zelo pela minha integridade física, sei-os protetores da inocência que não quero perder, porque a perda seria também sua. Testemunhas e custódios do esplendor, são a retorta que a redenção procura, no seu estado líquido ou ígneo. Quem lhes conhece a força não vê a fragilidade estoica que ocultam. É em nós, mulheres, que a protegem, à custa dos corações tantas vezes dilacerados.

 

 

Recorte de fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

15
Jun23

A devoção não magoa

Sónia Quental

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We are called by the divine like an eagle is called by the wind.

 Neil Kramer 

 

In the heroine’s journey we realise that the dragon lies not in a far-off land, but curled within.

 Lucy H. Pearce

 

 

           

Ao primeiro par de sapatos que me magoou, percebi que tinha sido feita para andar descalça. Como com quase todas as verdades que estorvam, fiz-me desentendida para passar vez. Levei os pés para longe da terra, protegidos por sola e desconforto, e continuei em busca de chão, ignorando os arrozeiros que me casavam ao piso.

Se me tivessem dito que a devoção não magoa, talvez tivesse sido mais pronta a largar parafernália, em vez de me sujeitar a apertos escusados, bolhas, joanetes, um sem-fim de mazelas por meter o pé onde não era chamado. Ter-me-ia ajoelhado mais cedo.

Não era dessas crianças com resposta pronta quando lhes perguntam o que querem ser quando forem grandes. A mim, já me chegava ser grande. Os adultos usavam sapatos e seguiam por caminhos batidos, por isso o que tinha era de ir atrás e transformar-me num cisne dócil. Seria inevitável se me esforçasse o bastante.

Mas o esforço nunca bastou enquanto tentava usar sapatos que não eram os meus, seguir por caminhos que eram de todos. O horizonte continuava à distância e as minhas costas, longe de produzirem penas, torciam-se em nós indecifráveis, porque o mundo era pesado e eu não merecia o céu.

Tentei usar calçadeira, ver se os sapatos alargavam com o uso, aplicar-lhes verniz, a eles e a mim, fazer arranques de voo. Acontece que todo o verniz estalava, o batom não pegava nem me assentavam os moldes.

Quando nos pés não havia mais lugar para marcas, o corpo começou a esfarelar-se em terra, dos nós na espinha rebentaram ramos que me embrulhavam os membros, desabrocharam flores nos poros desimpedidos, orbe espacial em convolução orgânica. A força da gravidade trouxe-me ao chão. Árvore alada, prostrada na terra, com pés que se afundam e raízes que sobem, não me doía a devoção.

 

Fátima - Francisco Amaral (1).jpg

 

Fotografias: © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0