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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

31
Jul25

Uma saia

Sónia Quental

         Uma saia pode ser arma, protesto, vaidade. Mas há uma suavidade que desarma na mulher que usa saia só por ser mulher. Com a falta de bronze a expor a pele que o sol pouco conhece, há um assomar de redondezas que se deixam ser, sem narração ou desculpa. Como a flor que abre as pétalas da fragilidade sem memória de ser esmagada, dispensando as calças da igualdade e do pragmatismo.

         Não me lembro de ver muitas mulheres usar saia quando crescia. A saia era para dias de exceção, associados ao desconforto já preparado pela decisão de a vestir – um desconforto com que certa vez um professor se mostrou solidário diante da turma do sexo feminino a que ensinava alemão e a que pertencia eu, atónita na plateia, enquanto ouvia o queixume do difícil que lhe era desviar o olhar quando as alunas levavam saia para a aula. Terá sido esse um dos momentos determinantes para a desconfiança empedernida que passei a sentir dos homens que usam bigode.

         Depois da meninice, e com a mudança do corpo, a saia começa a ser expressão de uma vaidade ainda inofensiva, até ser descoberta como instrumento de sedução, com os dissabores com que nos surpreende nas mãos do crepúsculo e das bermas de estrada. Instala-se um desconforto que, além de físico, é psicológico, quando o que se põe a descoberto desperta uma cobiça mais inclusiva do que o almejado ou a mulher começa a reduzir-se às sugestões pouco castas que a peça acorda em formato mini.

         Suponho que seja esta ambivalência que nos leve de novo, não para os braços, mas para as pernas das calças que, mesmo expondo formas, dão uma sensação de maior proteção. São práticas, rápidas e não costumam rasgar, como os collants. No começo da maioridade e geralmente durante muito tempo, ainda não nos descobrimos mulheres, como aconteceu comigo, que até há poucos anos achava que éramos mesmo iguais aos homens, tirando as diferenças óbvias, que agora parecem estar sujeitas a debate.

         Aquelas de nós que começam o caminho de descobrir quem são como mulheres dão consigo a escorregar outra vez para saias mais próximas da meninice – não nos folhos ou no feitio, mas na ausência de malícia, no achado do que assenta à nossa expressão natural, já não guardada. Mesmo que não seja a saia que faz a mulher, como sugeri num texto anterior, quando a mulher cai na saia sente um alívio que prevalece sobre o desconforto e o perigo: o alívio daqueles entes sem defesas que erguem o rosto para o sol e ocupam o seu lugar na Criação.

 

 

16
Mai25

Onde está a Jane?

Sónia Quental

      Quando me desafiam a ser a minha melhor versão, apetece-me perguntar: a minha melhor versão de quê?... Mas ensinaram-me no estágio pedagógico que não se devia terminar perguntas em “quê”, porque confunde as cabeças das criancinhas. A gramática estaria desculpada se o conteúdo equilibrasse os lapsos, só que entre as selfies com os músculos a brilhar e os chavões que se repetem nas páginas de todos os personal trainers e mentores de vida, o plástico é o mesmo (ainda que reciclado).

         Força, empoderamento, superação, transformação pessoal, liderança, dominação: onde está a Jane, agora que todas querem ser o Tarzan?... Quanto maior o foco no corpo, maior a distância do centro. Mais desocupado ele fica. No caminho a que tantas vezes se compara a vida, agora transformado numa eterna prova de obstáculos, não somos apenas encorajadas a ser mais: somos intimidadas. Há um novo bullying do fitness e do autocuidado, que martela frases de motivação em bruto e tenta purgar a língua de todos os traços de negatividade, no pressuposto de que a reforma das palavras se transfira para o pensamento, onde se acredita residir o poder da mudança. Com tanta ênfase no ser mais – que se traduz em sermos a nossa melhor versão – o valor em oferta encolhe cada vez mais. Convence cada vez menos.

       Quem tanto insiste em adotar uma versão 2.0 da própria pessoa costuma falhar o que na dança se chama "passo-base": conhecer a atual. Aceita ainda que a melhor versão de todas tem os mesmos músculos de aço da conquista: física, profissional, social. É uma versão que nasce de uma lapidação tão transpirada quanto alienada – não do conhecimento, da sabedoria, do aprofundamento. Do desenvolvimento de uma luz própria, que nem sempre é toda luz, mas tem matizes de sombra. Ah, o prazer de dizer “não” quando me estendem uma liana e me atiçam a saltar de galho em galho na floresta colorida desta mesmice tonta!

 

 

10
Mai25

O lugar da mulher

Sónia Quental

           

         Ao intitular o seu artigo sobre a igualdade de género e a liderança “O lugar da mulher é onde ela quiser”, Carla Fernandes aponta-nos desde o começo o lugar a que, no seu entender, qualquer mulher aspira: a luta pela ascensão a cargos de liderança e pelo derrubar de preconceitos sociais. O vocabulário gasto daquilo que mais soa a panfleto político e me fez lembrar muito texto didático que tive de engolir na escola deu-me um pequeno choque na precisa semana em que deixei cair uma das minhas armaduras.

        Recebemos uma educação voltada para o intelecto e, pelo menos desde que entrei nela, empenhada em moer estereótipos e em vincar uma ideia deformada de igualdade. Ao crescer, sabia que era mulher pelo corpo, sem conhecer as implicações disso. Não tinha referências femininas – nem, a bem dizer, masculinas. O certo é que nos faltam modelos de virtude e honra. Desligada do corpo, da sua expressão primária, socorri-me daquilo em que era boa para compreender o mundo e para me defender enquanto ele se ia fazendo mais largo e perigoso: a mente. Para tentar exercer controlo cerrado sobre a meia dúzia de metros quadrados à minha volta, antecipar o futuro e, se possível, evitá-lo, por não o imaginar benévolo. A violência da emoção que não se prestava ao sufoco da racionalidade emaranhava-se nela, embora nascida das linhas da frente desta defesa, que julgava profunda quando era reativa, espigando das meadas de medo.

       Com o hábito de analisar tudo, dissequei a vida de forma tão implacável como a literatura. Fiz do funcionamento mental uma identidade e uma barreira, sem me ocorrer que pudesse prescindir dele nem que estaria segura se fosse indefesa. Ironicamente, foram ele e a vontade de saber mais sobre o ser humano que me levaram a investigar também o que era ser mulher e que facetas estariam gravadas em mim, numa aprendizagem que continuava a ser guiada pela sonda rígida do intelecto. O corpo não reagia ao que ele sabia, ainda não o sentia. Até que, talvez por começar a ser escutado, começou a deixar escapar o seu perfume inato. Sem aviso, senti uma chapa cair por dentro e fiquei exposta sem correr a esconder-me. Descobri que não precisava dela para me proteger e posicionar – que a proteção não precisa de se tornar um modo permanente de ser e que isso não implica um regresso à ingenuidade. Nem por isso passei a gostar menos da palavra “não”. Como tal:

         NÃO creio que, com a sua militância e o seu afã de prolongar lutas imaginárias, a mulher tenha algo de qualitativamente diferenciado para oferecer como líder. Conheci pouco da empatia, inclusão e colaboração exaltadas por Carla Fernandes quando as avistava nos picos da liderança, que as deixaram mais destituídas do que coroadas. Choravam, batiam com portas, apunhalavam pelas costas e gritavam.

       Antes de querer ocupar qualquer lugar, a mulher precisa de se conhecer e de resgatar a sua natureza de mulher. Só então poderá escolher onde quer estar.

 

 

A happy woman is a woman relaxed in her body and heart: powerful, unpredictable, deep, potentially wild and destructive, or calm and serene, but always full of life, surrendered to and moved by the great force of her oceanic heart.

 

Women do not become free by analyzing themselves. They become free by surrendering into love. Not your love. Their love. They become free by surrendering to the immense flow of love that is native to their core and allowing their lives to be moved by this force in their heart.

 

David Deida, in The Way of the Superior Man

 

Catwoman (18.10 (10).jpg

(Foto de bastidores)

 

2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

28
Mar25

A revolta do galinheiro

Sónia Quental

Captura de ecrã 2025-03-28 103902.pngAinda me lembro do tempo em que a doença mental era estigmatizada e escondida dos olhos do público – um tempo distante do de hoje, em que a debilidade psicológica procura argumentos para se justificar, explora a vitimização em benefício próprio e recruta seguidores.

O interesse pelo desenvolvimento pessoal, pelos temas do feminino e do masculino e dos relacionamentos em geral trouxeram à minha atenção há alguns anos grupos como os dos MGTOW (Men Going Their Own Way), que fui acompanhando muito à distância e de olhos semicerrados, não fossem entrar salpicos de lama daquela chafurdice intelectual e moral, impermeável a qualquer tentativa de diálogo coerente.

         As referências repetidas à red pill e à black pill traduzem desde logo uma ignorância de base: os celibatários deviam saber que a pílula não lhes serve de nada e que o abuso de estupefacientes não dá bom nome à causa. Fui ler pela primeira vez os 12 passos dos Narcóticos e Alcoólicos Anónimos, que já tinha visto referidos de forma lisonjeira em obras de cunho espiritual e fiquei tão agradavelmente surpreendida que me atrevo a dizer que está ali a cura. O primeiro passo consiste em reconhecer a impotência face ao vício e a perda de controlo sobre a própria vida – a perda da razão, acrescento. O segundo, em reconhecer que existe um poder superior que pode devolver-lhes a sanidade – não há casos perdidos. O quarto, que recomendaria como requisito preliminar, corresponde ao inventário moral minucioso de si mesmo – isto é, ao assumir da responsabilidade contrário à vitimização masoquista com que estas seitas se masturbam publicamente.

         Mesmo entre influencers que não usam o rótulo “MGTOW” ou “Incel”, as perturbações de personalidade são evidentes. O ambiente de apoteose da adolescência começa logo pela legião de seguidores acéfalos, suspensos das lives e da sabedoria trémula de homens que recusam não só tornarem-se homens, mas tornarem-se adultos – que não andam à procura de mulher, mas de mãe; que à frente das câmaras enchem o peito de ar, mas na vida privada andam encolhidos e se oferecem para ser o capacho dos outros, acusando depois quem lhes passa por cima. É como se o galinheiro tivesse decidido revoltar-se contra as leis da selva e quisesse ser tratado como leão só porque acha ter direito à igualdade de cidadania. Senão amua ou pega numa metralhadora.

          Aposto que os Incel foram espezinhados na corrida ao chocolate do Dubai, sem dúvida por uma manada de mulheres. Sem saia onde se esconderem, porque elas agora usam calças, ficaram a chuchar no dedo. E que bem lhes faz.

 

Imagem: O Sono da Razão Produz Monstros, Francisco de Goya

 

08
Mar25

"Thy name is woman"

Sónia Quental

 

Elegância é a arte de não se fazer notar, aliada ao cuidado subtil de se deixar distinguir.

Paul Valéry

 

 

         O movimento de diluição das diferenças de género que ganhou expressão nos últimos anos foi precedido nalgumas décadas por uma fação a dado ponto paralela, de redescoberta dessas mesmas diferenças, em que se baseiam muitas mentorias de relacionamento. É assim que hoje se vê uma afluência de coaches que vendem os segredos não só dos relacionamentos, mas do que é, em essência, a feminilidade e a masculinidade. A par da estreiteza de certas generalizações, a visão de cada um traduz, como não podia deixar de ser, a própria maturidade, fazendo circular novos estereótipos que refletem diferentes graus de miopia. Foi neste contexto que me deparei com o vídeo abaixo, em que uma coach desfila na rua, descrevendo-se como modelo de feminilidade e elegância. Consigo depreender porque é que os olhares se voltam para ela, mas deixo a interpretação a cada um.

         A pretexto deste vídeo e da efeméride, aproveito para expressar aquilo que não tenho como marca de feminilidade: feminilidade não é usar sapato de salto alto; não é pintar as unhas nem carregar a pele de maquilhagem; não é o menear de ancas que se vê aqui. Esta manhã, depois de ter sido recebida numa loja por uma pessoa que me desejou feliz Dia da Mulher com um sorriso treinado e uma voz estridente (daqueles votos que agradeço e não devolvo), fui atendida logo a seguir por outra que me ofereceu ajuda exalando uma feminilidade natural, apesar do excesso de peso e das calças de ganga que usava.

         Se em textos anteriores propus que a afirmação do feminino não passa pela exibição relaxada de deformidades, em nome da aceitação e protesto contra a ditadura de uma imagem social de beleza, ela também não reside na artificialidade decorativa nem na neurose. Conheci ao longo da vida várias mulheres deslumbrantes cuja insegurança as despia de toda a beleza. Conheço quem viva a contar calorias e só consiga usar leggings pretas, para que não se notem as imperfeições. A perfeição que conheço não é de vidro e não é tirana. Por agradável que tenha sido, a seguir à democracia dos jeans, redescobrir as saias e os vestidos, hoje sei que não é o vestido que faz a mulher, mas a mulher que faz o vestido.

         Depois de crescer num ambiente em que não se reconheciam diferenças entre o modo de ser masculino e o feminino – o que, em vez de aumentar a compreensão entre ambos os sexos, a dificultava – foi extremamente curativo redescobrir-me como mulher, mesmo que não me reveja na forma de estar da maioria das mulheres que me rodeiam. Nesse percurso, aprendi também que a maturidade de homens e mulheres os leva a conhecer e a dominar crescentemente, e de modo consciente, a polaridade oposta. No entanto, antes de aspirarmos à androginia, sugiro que comecemos por ser aquilo que a natureza nos fez.

 

 

Always a paradox. Always tangible, but also, somehow, elusive and just out of reach. Always present, and yet, somehow, removed, the true female seems for ever, strangely, inexplicably, a wonderful and unfathomable mystery!

Théun Mares

 

02
Out24

Curvas

Sónia Quental

Our bodies are not designed to follow straight lines.

Angela Farmer

 

 

         O corpo expressa-se por linhas curvas. Conhece bem o ataque de retas e vértices, o castigo requintado de ocupar uma pose que não é a sua. O corpo não quer fazer acrobacias: quer ir para o chão amolecer dores incrustadas. Quer esticar-se, torcer-se e destorcer-se, moer devagar a recusa com que se fecha. O corpo conhece o cuidado que as aberturas pedem: a escolha certa do grau certo no momento exato. Fera subtil, não obedece a mandos. Sabe o que quer e o que talvez queira, mapa da memória que só quem não sabe atravessa a direito. Conhece melhor a sua astúcia do que quem o açoita, regime marcial em rotação contínua, vinte flexões e outras vinte e ainda não chega. Senhor dos seus ouvidos e só depois do nariz, o corpo reage à brutalidade que o agride, quebra o molde e vai embora.

 

A espreitar pelo buraco (2).jpeg

Fotografia: 2024 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

03
Jun24

Desvéus

Sónia Quental

 

À medida que fui observando o mundo, comecei a sentir um pouco de pena da mulher moderna, que não tem véus para usar.

Clarissa Pinkola Estés

 

           

As mulheres perderam os véus. Na rua, no metro, sobram carnes dos tecidos que as apertam. Mostram-se as pústulas e deformidades que traduzem a igualdade do valor. Uma fêmea já madura masca pastilha elástica de boca aberta. Outra cheira o sovaco do homem a que se encosta. Aqui e ali, corpos esfregam-se pegados. Uma terceira carrega um pacote de 24 rolos de papel higiénico. Na estação onde trocamos de linha, vê um filme no telemóvel enquanto desce na escada rolante.

Está tudo à vista, não porque a essência tenha vencido as aparências, mas porque não há o que ver além da aparência. Sem véus, o mundo despoja-se do mistério, sem verdade que valha a pena conhecer. As máscaras da impessoalidade cobrem com um esgar universal o que era da ordem do translúcido. E os inteligentes, encostados à esquina, ostentam o escárnio da ignorância embutida.

Rasgam-se os véus onde outrora nasciam parábolas, os símbolos da iniciação. Através deles falam os oráculos. Um véu promete, mas não se dá, porque de si se desfia o caminho ao infinito. Não de portas, mas de véus sucessivos, que convidam à revelação, ao mesmo tempo que a regulam para proteger o olhar da cegueira certa, confundir os curiosos, que cedo se perdem pela recusa do sacrifício.

O véu é casulo de silêncio onde o espírito fermenta. Um casulo sem hóspede, agora que os corpos e as emoções se querem libertados, emancipados os costumes. Onde não há véus encontram-se só as cortinas do subterfúgio, que não escondem castidade nem glória. Feitas de segredos fingidos, sintetizados artificialmente em laboratório. Logo a falta de peso os acusa.

Mas não ao véu, toca do sagrado. Quando se cai dentro de um, a queda é demorada – com tendência a não acabar.

 

Olhar (3).jpg

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

28
Fev24

O lado negro da espiritualidade

Sónia Quental

Não sei precisar quando o conceito de “ego” entrou na moda nos meios espirituais e todos passaram a contar como o “seu” ego tinha feito isto e aquilo com toda a autonomia, num estranho exercício dissociativo que o transformou numa espécie de animal de estimação, separado do indivíduo que assim se expressava. A pessoa que falava parecia desempenhar o papel de mónada iluminada que descia por instantes à Terra para censurar o mau comportamento da mente que tinha ficado a animar aquele corpo, presa a tendências retrógradas que não eram de sua responsabilidade.

Nos grupos que tratavam o trabalho espiritual com marcada austeridade, o desconforto era constante, porque a tendência a vigiar o ego tinha planos de expansão e não se ficava pelo próprio: precisava de vigiar também o dos outros. Assim, a pessoa dita “consciente” tinha de andar em contrição permanente, com a culpa do pecado original gravada na testa, o semblante grave e os ombros curvados, não fosse alguém acusá-la de caminhar demasiado direita e querer amestrar-lhe o ego, lembrando-lhe todas as suas projeções, compensações e programações herdadas.

Debbie Ford, uma das autoras que trouxeram à ribalta o trabalho com a sombra, publicou no final dos anos ’90 o livro The Dark Side of the Light Chasers, em que expunha as pretensões dos "trabalhadores da luz", chamando a atenção para a importância da integração de todos os aspetos do Eu. Não seria um livro que Ramana Maharshi tivesse escrito, mas abriu espaço a outras vozes, que preferem trabalhar mais perto da terra, convidando-nos a sujar as mãos, a voltar ao corpo e a deixar de castigar o ego por crimes presumidos. Duas delas são as de Amoda Maa e Miranda Macpherson, que reconfiguraram a espiritualidade pela rendição do feminino – e não há como passar ao lado de Mātā Amritanandamayī Devi, ou simplesmente Amma, a propósito de quem, no documentário Darshan: The Embrace, alguém que se sentou perto dela durante as horas intermináveis que passa a abraçar pessoas dizia ter sentido que o tempo deixara de existir.

There were times (...) when I was just like any other woman (...) at times feeling like a traumatized animal shivering on the floor. All of the models of spiritual realization I had worked with previously, which had been delivered through the masculine lens only, might have viewed my process as a failure to remain in the no-self state. However, the transmission of ego relaxation revealed a much more integrated, feminine approach to walking the path – to surrender in and through all that we encounter, including our animal humanity and all of our emotions.

Miranda Macpherson

 

De minha parte, recordo como, depois de vários dias de um curso de terapia alternativa que fiz em Madrid, o momento que mais me tocou foi quando o motorista do transfer que me levou do hotel para o aeroporto me contou o segredo da felicidade. Era um domingo de Páscoa e o atraso do avião fez-me lamentar a conversa abreviada pela pressa.

À semelhança dessa experiência, aprendi mais sobre espiritualidade a dançar do que a estudar teosofia. Conheci mais de perto o amor no olhar daquela monja do que em qualquer palestra que tenha ouvido. Ensina-me mais quem ocupa uma caixa de supermercado, as pessoas que vejo trabalhar com energia e alegria, sem contar os dias que faltam para chegar a sexta-feira, a professora que repara em quem não foi à aula e quer saber o que lhe aconteceu.

Foi talvez o mesmo que levou os reclusos, na última sessão de formação que dei no estabelecimento prisional masculino de Custoias, a entrarem na sala antes da hora, encurtarem o intervalo, com a formalidade voluntária da fila indiana, e fazerem em silêncio tudo o que lhes pedi, declarando finalmente o carinho que tinham por mim. Não que tivesse sido branda com eles (pelo contrário): era que me importava, e eles tinham-no testado vezes suficientes para se convencerem disso.

Nos dias que correm, mesmo que ainda não tenha largado a minha máquina de etiquetas e continue a fazer separações, nem todas essenciais, posso dizer que uma das que deitei fora foi a que dizia “espiritual/não espiritual”. Aprendi a deixar os intelectualismos de lado e a tomar posse de mim e da vida. Divisão por divisão, em vez de fustigar o ego, escolho dançar com a sombra que projeta. Acho graça quando me calca os pés: a sintonia é plena.

 

 

08
Fev24

De quatro folhas

Sónia Quental

           

Acredito nos amores à primeira leitura como nos amores e desamores à primeira vista. Infalíveis, uns e outros, ao olhar aguçado da experiência, à intuição que nas mulheres apura o passar do tempo, quando chegam a descobrir que não é cego o amor, mas vê bem ao longe.

Como a poesia de Adélia Prado, amei à primeira leitura o talhe dos versos de Amalia Bautista, que me persuadiram a comprar-lhe o Trevo. Não sendo feminista, há um sentir do feminino ao mesmo tempo selvagem e delicado que esparsamente me chama ao seu resgate. Estes vultos na poesia, outros na pintura e nas coisas do espírito, cativam-me pela violência simples e crua da emoção a caminho da transfiguração, de um corpo devocional do feminino com uma fisiologia distinta em cada uma delas, oscilando entre a adoração e o esconjuro.

Num mundo dominado por pretensões de racionalismo, lembram-nos que é no escuro que caminha a mulher, que por lá a leva uma fome primordial que resiste a planos, estratégias, à mais residual tentativa de controlo. Para apaziguar essa fome, há o ato de um canibalismo amoroso que não procura desculpas, o instinto acirrado de uma presa antiga, mantida a pão e água, como Amalia Bautista no seu “Em dieta”:

Deitei-me sem jantar e nessa noite

sonhei que te comia o coração.

Deveria ser por causa da fome.

Enquanto eu devorava aquela fruta,

que era doce e amarga ao mesmo tempo,

tu beijavas-me com os lábios frios,

mais frios e mais pálidos do que nunca.

Deveria ser por causa da morte.

 

           Acudiu-me por estas linhas a lembrança de um colega que, quando foi promovido a diretor, se propôs o desafio de ver quantas mulheres conseguia fazer chorar no gabinete. Eu também chorei uma vez, tenho as lágrimas como preciosas e atirei-lhas quais pérolas de Virgem contrariada, que ele não saberia apreçar, apesar da cobiça que tinha por elas. Lágrimas que uns querem ganhar, erguer como troféus, e a outros espantam.

Há-os como ele, que não sabem que é com as lágrimas que a mulher se regenera e segura o mal à distância: “(…) há algo na pureza das lágrimas verdadeiras que anula o poder do demónio”, diz Clarissa Pinkola Estés no seu formidável Mulheres que Correm com os Lobos.

Depois da minha oferta, fiz o que outras não fizeram: juntei o resto das lágrimas e vim embora. Ainda são elas que me salvam quando fico sem jantar e me apetecem os corações que um dia me deixaram à míngua.

 

Amalia Bautista.jpg

 

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