"Nox, noctis"
‘Do you consider people to be basically sophisticated animals?’
With a straight face, Rose answered: ‘No, they’re not that sophisticated’.
John Kent
As noites não eram de veludo para todos. Para alguns, tinham a rugosidade da serapilheira; para outros, eram quebradiças e ruidosas como o celofane dos rebuçados, sem o rebuçado dentro. Certo era que poucos dormiam durante o período noturno e que a insónia era a regra que o Império calava quando acendia a iluminação de rua.
Duas da manhã. Do lado minguante da meia-lua do prédio de apartamentos onde morava, o Emílio experimentava um par de collants cor de beringela, com efeito escama, enquanto tentava enfiar os dois pés no mesmo sapato de salto alto. Havia duas coisas que sempre sonhara ser: sereia e super-herói e, num rasgo de génio, percebeu que podia ser ambas. O único equipamento que lhe faltava para trazer à tona a sereia que havia em si era o fato de super-herói. Já tinha um aquário de tamanho humano, hermético e espelhado, que construíra com as próprias mãos com materiais que recolhera dos contentores de lixo. Às duas da manhã de segunda-feira, o Emílio praticava o equilíbrio e a delicadeza diante da superfície espelhada. Declamava de improviso um poema a que dera o nome de “Crateras da lua”, expressando o romantismo atormentado que precisava de espremer todas as noites do coração flagelado pelo Cupido, com a mesma sofreguidão com que as mães de recém-nascidos bombeavam o leite orgânico para não encaroçar.
Do lado crescente da meia-lua, o Toni era dos poucos que dormiam um sono inquieto. Fazia o seu treino de cárdio num pesadelo onde fugia de um instrutor de ioga. Satisfeito com o volume de transpiração e o número de passadas, só não contava com a casca de banana que o fez estatelar-se no chão quando já levava uma boa margem de vantagem. Ao levantar-se para matar a sede e apagar qualquer vestígio traumatizante da respiração de fogo, pensou na Ramona, a única mulher que o amava com amor de mãe. Com grande pena sua, as mãos trepadeiras com que fora abençoado tinham sido prontamente repelidas pela Ludovina durante a massagem da tarde. Não se podia esquecer de ligar à Ramona para marcar a sessão de sadomasoquismo e reparar os danos à autoestima, antes que se tornassem irreversíveis.
No T0 da ponte invisível que unia as duas metades desavindas da lua, o Leitor Ufano aproveitava as horas da madrugada para tricotar uma camisola vintage com os seus novelos de cordel. A rotina continuava com os remates à baliza na varanda, um ensaio intensivo para o próximo confronto com os Aferradinhos. Nas três horas de sono que dormia, sonhava com notas de rodapé e letras miudinhas.
À mesma hora funesta, a Miss Magnética fazia um lançamento de tarô para a Ramona, que tinha marcado uma consulta urgente depois de ter sido atingida com um novelo de cordel caído do céu, que lhe ficara preso ao cabelo. A combinação da Lua, do Diabo e da Torre fez a intuitiva arregalar os olhos para além da conta. Talvez tivesse sido o movimento súbito das pestanas em caracol a apagar a chama das velas, uma explicação perfeitamente natural para um fenómeno que a superstição poderia atribuir ao paranormal. A sua tenda inteligente, porém, não perdeu tempo a interpretar os sinais de fumo e a ativar o alarme sonoro: um grito de loba agudíssimo que a Maria das Dores tinha gravado num biscate para a empresa de alarmes Tique e Toque, que provocou um pequeno abalo sísmico na rua, onde uma Ramona espavorida corria com o empeno mal-azado do fato de cabedal.
No pequeno anexo ao lado da Piscina dos Saltos Quânticos e ainda com os tampões nos ouvidos, a Maria das Dores tinha terminado a lição de canto lírico e enfiava a touca para saltear os grilos do rolinho primavera que ia levar para o trabalho no dia seguinte. Pelo sim, pelo não, achou melhor juntar-lhe uma farofa de formigas pretas, para aproveitar a matéria-prima do quintal – gostava de carregar na proteína.
Ludovina era a única que dormia indiferente ao alarme que fazia balançar a rua, o corpo flutuando com uma leveza que não se importava de sustento nem dos três centímetros que a cama se moveu durante o sono. O toque da noite era de algodão.
(Imagem do baralho Morgan-Greer)