Outra vez a maçã
Dizem que o diabo mora nos detalhes. Acho que me cruzei com ele por lá. No relativismo moral reinante, que nos urge a velarmos pelos nossos interesses sem escrúpulos de maior, inquietam-me as escolhas que podem fazer-me derrapar por entre as fendas da consciência. Não alimentar expetativas, não cobrar, não julgar, ser tolerante e flexível, esperando gozar da mesma flexibilidade enquanto faço o que me dá proveito, sem que possam pedir-me contas ou sequer apontar-me dívidas.
À mínima oportunidade, a serpente levanta a cabeça, convidando-me a trincar a maçã. E ei-la que reluz, coberta de pesticidas, num cabaz com o rótulo “orgânico”. Parece que tenho passado a vida a contemplar a dita maçã, mas agora a serpente reuniu claque e eu fiquei sozinha a defender a árvore. A pressão aumenta. Em volta, veem-se cartazes de gente feliz agarrada à sua fruta. Faz bem aos dentes, dizem, irradiando a brancura dos sorrisos de satisfação. Prazer sem limites condensado numa mera maçã. O cabaz traz um Adão, 30 dias de avaliação grátis e benefícios premium.
Eu também quero irradiar! Quero um Adão no meu cabaz, que me pegue ao colo sem esforço e me diga que não preciso de mudar. Só tenho de facilitar e deixar de ser o pomo que gera a discórdia. A minha vida será mais simples – saem todos a ganhar! Na verdade, estarei a ser egoísta se não comer a maçã. Vai cair ao chão, estarei a desperdiçar. Serei culpada da miséria que passam os meninos em África. Quem lhes dera uma maçã igual àquela, ali à mão de semear. Se não for por mim, por eles. É pecado não comer a maçã. É o alimento do futuro e já traz a larva incorporada. Posso fazer criação e não terei de pensar mais em comida. Serei ingrata se não aproveitar.
Se comer a maçã, estarei a dar prova de desenvolvimento social. Moral é para as avozinhas. Aqui, o único absoluto é o bem coletivo. Na verdade, a maçã guarda o segredo da juventude eterna. Basta uma trinca…
Por entre o atordoamento, noto: estão uns fones ali ao lado, objeto mágico deixado por Deus ou apenas a desculpa ideal. Ao aplicá-los, ouço: “Uma maçã nunca é só uma maçã”. Nisto, a serpente cai da árvore. Ponho-lhe o pé em cima e empoleiro-me num ramo antes que a Liga dos Direitos do Animal acuda.
Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados