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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

14
Dez23

Emplastros Anónimos

Sónia Quental

Às assombrações que pairam sobre estes blogues.

 

            

- Emplastros Anónimos. Em que posso ajudar?

- Boas. Olhe lá, ó moça, disseram-me que tinham aí uma teta que tirava cafés…

- Bom dia, Sr. Emplastro. Queria dizer “seio”, certamente. Temos uma máquina que serve leite orgânico, com um cheirinho a acompanhar. Pode escolher a tipologia do mamífero: trans, bi, cis, dis, mis, mu…

- Olhe, mas qual é o objetivo? É a pagar??

- A nossa organização é uma organização filantrópica, sem fins lucrativos...

- Fi… tró… quê??

- Quer dizer que não tem de pagar o leite nem o cheirinho. Aliás, o nosso objetivo é ajudar ao desmame de todos os Emplastros. Temos planos de expansão e em breve marcaremos presença nos países de terceiro mundo.

- Mame ou desmame… Desde que tenha o que interessa….

- Tenha calma, Sr. Emplastro. Não oferecemos cuidados paliativos: estamos aqui para curar dependências. Começamos pelo seio duplo (com ou sem pilosidade), depois passamos para o mono, o biberão, o leite em pó… É um longo percurso até chegar às papas e aos sólidos.

- E entregam canetas ou calendários?

- Temos todo o tipo de brindes e regalias para os sócios. Fazemos inclusive reciclagem do diploma de 1.º ciclo, com financiamento do Estado e estágio integrado para remover o estigma do analfabetismo e promover a reinserção na sociedade.

- E pagam subsídio?

- Pagamos o rendimento social, desde que tenha aproveitamento aos módulos. Depois de aprender a ler e a escrever, temos módulos mais avançados de hermenêutica, com introdução ao sentido de humor, à ironia, ao sarcasmo… Quem conseguir chegar ao 3.º ciclo recebe algumas luzes sobre subtileza e inteligência emocional.

- Mas qual é a utilidade?

- A utilidade é que passará a conseguir ler e interpretar um texto sem ter de pedir ajuda aos autores. Irá desenvolver a autonomia.

- E as casas de banho são mistas?...

- Temos o prazer de informar que subscrevemos integralmente os mandamentos da diversidade e da inclusão, que são o motivo primário da nossa existência. A nossa bandeira é a autodeterminação e a euforia. Somos um baluarte da saúde mental.

- Bal… quê?? O que tu queres sei eu...

- Peço desculpa, Sr. Emplastro, mas tenho outra chamada em linha. Se quiser tornar-se sócio, prima a tecla 1. A tecla 2 se tiver mais perguntas sobre a nossa missão. A tecla 3 para apoio psicológico à disforia do Emplastro…

 

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Fotografia: 2012 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

03
Out23

O metamorfismo

Sónia Quental

 

Ao despertar pela manhã de um sonho agitado, Gregório Sansão percebeu que talvez estivesse a exagerar na comida de insetos. O excesso de proteína arranhava-lhe o goto e provocava-lhe nevoeiro mental. Era isso ou as aulas de português neutro que estava a pagar a um explicador para ter positiva à disciplina de Cidadania.

Estremunhade, esqueceu-se de verificar nesse dia se era rapaz ou rapariga, mas tanto lhe fazia. O importante era saber se não tinha coisas a dizer, para não se engasgar e não ficar com a barriga esquisita. Na cabeceira da cama, estavam as vitaminas para a autoestima que faziam parte do plano de normalização. Ao lado, o termómetro da paciência, para que não desatasse a bater com o nariz na parede e deixasse a pancadaria para as aulas de judo.

Pegou no tablet onde estava a fazer o T.P.C.: escrever uma ode à diversidade, mas debatia-se com a gramática da neutralidade. Tinha dificuldade em encontrar rima perfeita para “todes”. Só se lembrava de “bodes”, “pagodes”, “bigodes” e uma outra palavra feia, que não vinha nada a calhar. Mas sabia que podia gritar e chorar à vontade, contra o conselho da avozinha, porque os homens eram bastante sentimentais – ou assim lho diziam, embora nas aulas de português só lhe tivessem explicado o predicativo do sujeito da frase, classificando o sujeito como indeterminado.

Elu também queria mudar estereótipos e contribuir para a riqueza da sociedade. Daí ter começado a comer larvas em pó. Talvez fossem elas que lhe pusessem a barriga esquisita. Era pergunta para fazer a um especialista.

Subitamente, começou a ouvir o som de sinos no telemóvel: eram chegados os 30 segundos de meditação, a que se seguia a compilação da Lista de Ofensas para a adoração dominical. Nesse preciso instante, alguém bateu ao de leve na porta.

- Gregório – chamou a progenitora número um. Falta um quarto para as dez. Já puseste a trotinete a carregar?

Logo se lembrou de que ainda não tinha mudado as faixas dos pés de lótus, tradição que tinha adotado para extinguir a pegada ecológica, embora não fosse muito à bola com tradições. Orgulhava-se do pensamento progressista e esclarecido que tinha brotado em si desde tenra idade.

Por falar nisso, não se podia esquecer de preencher a candidatura a Vigilante Social, cargo bastante concorrido. Esperava que a nota de Cidadania brilhasse no currículo. Se tudo o resto falhasse, restava-lhe sempre a arma do Amor (tinha licença de porte), com que lutava para tornar a sociedade mais segura e tolerante, dispondo-se a dar o corpo às balas contra a sombra que ameaçava os corações humanos. Apesar das pernas demasiadamente finas, mais aptas para o balé do que para o combate, sabia que só tinha de acreditar em si. Em si e em todes. Logo, logo ia ficar tudo bem.

 

24
Set23

O Olho que tudo vê

Sónia Quental

 

No entanto, a cultura atual funciona em bases diametralmente opostas, nas quais o exibicionismo vulgar, a perda da intimidade e a consequente destruição da profundidade estão na ordem do dia.

Maurício Righi

 

A consciência cósmica é substituída pela vigilância social, a percepção do absoluto, pela acrobacia cerebral. Daí resulta uma desidratação progressiva da alma, uma penúria espiritual mais apavorante que a fome.

Arthur Koestler

 

 

 

A pornografia da arte a propósito da remoção de estátuas e a evocação da exposição pretérita Noites Brancas, de Julião Sarmento, coroando a notícia recente do Happiness Camp aqui próximo. A reedição providencial da Beleza de Roger Scruton. Estudos que me permitem continuar a debruçar sobre o masculino e o feminino, interrompidos pela notícia de que quase um terço dos norte-americanos com menos de 30 anos seria a favor da instalação de câmaras dentro de casa.

Se em tempos não acreditava no acaso, hoje já não sei, mas isso não impede que me proponha o desafio de unir as notas aparentemente soltas das últimas semanas e de tentar dar-lhes coerência ou descortinar as relações possíveis entre elas.

Incumbiram-me, em 2012, de levar turmas em visita a uma exposição patente em Serralves: Noites Brancas, de Julião Sarmento, um artista de quem nada sabia e de quem preferiria nada ter ficado a saber. Expor adolescentes à crueldade mórbida e à obscenidade daquela “arte”, por mando de quem vê em toda a cultura instrução vantajosa, foi tarefa aflitiva, que não tentei explicar aos alunos, porque não havia como. Apesar de pouco conhecedora das artes plásticas, diviso nelas a mesma tendência da literatura deste início de século, sobretudo a poesia, que se cose de vísceras e do lado mais pútrido da matéria, no rebaixamento do humano à sua dimensão animal, acometida do desejo gratuito de chocar. No entanto, é esta que merece consagração e que não se pensa em remover da vista pública. Como acusa Zan Perrion, “The symptom of the modern times is that we've turned our face away (...) from beauty. And we celebrate ugliness”.

Não foi apenas o sentido estético que se inverteu, mas a importância que se lhe dá, aventuro que pela relação que a Beleza tem com o transcendente, que, se ainda se inscreve na cultura, é como tradição morta ou fantasia New Age. O questionamento existencial foi substituído pela exploração macabra do excremencial e pelo livre curso dado às ambições demiúrgicas do indivíduo, que não se coíbe de patentear urinóis artísticos e Frankensteins humanos.

 

É possível caracterizar a recaída geral de nossa cultura, rumo à contemplação de formas e conteúdos crescentemente dionisíacos, como uma consagração filosófico-estética de ‘princípios desumanos’. Nesse sentido, o movimento das artes plásticas, em sua depravada hostilidade contra o belo, surge como paradigma dessa degradação.

Maurício Righi

 

       Depois do ataque ao sexo masculino, é a vez de a mulher, representante da Beleza e do Mistério, ser anulada enquanto tal e na nudez que a revela mulher – a menos que seja o tipo de nudez que lhe expõe os fluidos e a decadência da carne.

 

Percebe-se (…) uma rendição incondicional ao biológico em sua faceta decadente e fragmentária, uma vez que o biológico tende, em seu processo orgânico, e de forma inexorável, ao desgaste e à decomposição, junto à correspondente perda de unidade orgânica e harmonia estética.

Maurício Righi

 

 

As forças de decomposição da cultura e da arte, a erosão do género e o materialismo tonificam a apoteose pueril do sucesso, do consumo e da felicidade, concorrendo todos para a exteriorização e a superficialidade do pensamento. Aqui se insere também a influência do New Thought, da psicologia positiva, do coaching e dos movimentos sociais da berra, com as suas fórmulas light, visando substituir moral e religiosidade pelo conforto de lemas progressistas, forçando um falso sentido de harmonia e contentamento que tenta iludir a razão, levando-nos finalmente a repetir que 2+2 = 5.

No entanto, “Na falta de eficientes modelos de transcendência, dos quais dependem as felicidades duradouras, a cultura e as pessoas tendem naturalmente ao vazio e, consequentemente, à infelicidade” (Maurício Righi). O mesmo horror ao vazio, a insegurança, a incapacidade de estar só e de cultivar a solidão que faz com que muitos acendam a televisão desde o raiar do dia farão também com que esses, complacentes com as câmaras que crescem como cogumelos fora de casa, também as queiram instalar dentro. As câmaras e a vigilância tornaram-se o Olho desfigurado da transcendência, a relação que subsiste com o Invisível, despido de Mistério e ao serviço da ordem social, que apenas o sacrifício humano pode aplacar.

 

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Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

02
Set23

Enxoval: precisa-se

Sónia Quental

 

Definir o politicamente correto com precisão não é fácil, mas reconhecê-lo quando está presente é. Ele tem sobre mim o mesmo efeito do ruído que, durante minha infância, a unha do professor fazia sobre o quadro-negro quando o pedaço de giz estava curto demais, causando-me frio na espinha. Trata-se da tentativa de reformar o pensamento tornando certas coisas indizíveis. Consiste, ainda, numa ostentação conspícua, para não dizer intimidadora, de virtude (a qual é concebida como a adoção pública das visões ‘corretas’, isto é, das visões ‘progressistas’) mediante um vocabulário purificado e um sentimento humano abstrato. Contradizer esse sentimento ou deixar de usar tal vocabulário é excluir-se do grupo de homens (ou deveria eu dizer ‘pessoas’?) civilizados.

 

Theodore Dalrymple

(citação retirada de edição brasileira)

 

 

A maior desfeita foi quando passei a receber enxoval, porque quem o dava lhe ganhou gosto, mas não me contagiou com ele. Se com o tempo aprendi a dar valor às prendas em dinheiro, o enxoval deixou-me sempre um travo inconformado a desilusão. Isto até saber que Jordan Peterson tinha sido condenado a um campo de reeducação (estabelecimentos que ameaçam instalar-se deste lado da civilização) e de novo me render aos desígnios da Providência. Admirei a sabedoria genial das minhas tias, que não era porque não me conhecessem que ofereciam enxoval, mas porque tinham a premonição das circunstâncias em que faria falta. Talvez me adivinhassem no cadastro o crime de ferir sensibilidades e achassem que o sítio para onde seria mandada carecesse de toalhas com cheiro a mofo.

Tenho a sorte de o Jordan Peterson ter chegado primeiro. Pelo menos, terei alguém interessante com quem trocar bilhetinhos nas aulas de socialização. De certeza que tira apontamentos melhor do que eu e tenho a esperança secreta de que me deixe copiar nos testes. Eu posso ajudá-lo na parte linguística, a declinar a lista de pronomes (é fácil para quem já estudou latim). Se formos apanhados, penso que é mais provável que seja ele a levar com a cana, uma vez que é homem branco, falo – quero dizer, símbolo – do patriarcado, por isso posso estar relativamente descansada. Não me importo de dividir o lanche com ele, já que tenho muitos paninhos de renda, bordados pela bisavó, e, da primeira vez que me educaram, ensinaram-me a não ser egoísta. Espero que faça vista grossa às manchas amarelas, pois só no mês passado aprendi a usar lixívia.

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Pode ser que no campo de reeducação deem aulas de economia doméstica e não façam discriminação de género, para que o Jordan Peterson também possa ir. Se ele souber fazer um pequeno-almoço energizante, sem glúten nem hidratos de carbono, seremos amigos para sempre. Sei que ele vai gostar de mim, porque estou habituada a arrumar o quarto. Uma vez, quando fui a Tormes, a senhora da limpeza não me deixou toalha de banho, porque eu fazia a cama todos os dias e ela pensou que, em vez de duas, só uma estivesse ocupada. Também aí o enxoval vinha a calhar.

Acho que vou sugerir no centro de reeducação a ideia que tivemos em Tormes quando o calor se tornou intenso, que foi levar cadeiras de plástico e sentar-nos à sombra das videiras, enquanto ouvíamos a voz melíflua do Pedro Eiras discorrer sobre Eça de Queirós. Suspeito que Jordan Peterson vá gostar do Eça, que me envergonho de já não ler, mas parece-me que também ao portuguesinho receitariam a reeducação. Que bom que seria eu, o Jordan e o Eça a especular quantos géneros há para dois sexos e a comer as uvas da ramada, com os meus paninhos de renda no colo.

 

 

Fotografia: 2022 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

27
Ago23

"Outsiders"

Sónia Quental

(Dedicado à comunidade de outsiders que acompanha Howdie Mickoski e que comentou o vídeo abaixo.)

 

Why would you wanna fit in with insanity?

Howdie Mickoski

 

 

Presumível forasteiro,

 

Devo começar por te dizer que o cão da vizinha vai à rua mais vezes do que eu. Se tocares à campainha, é provável que não abra, não porque esteja de robe, mas porque não disseste que vinhas. O esforço de me obrigar a simpatias com estranhos ou conhecidos precisa de ensaio demorado, por isso avisa quando vieres. Convém acrescentar que não reajo bem às quebras de rotina e que sou ciosa das âncoras que me fixam.

Se quiseres fazer conversa, não me perguntes o que tenho feito. Sabes que nada disso importa e que vieste para falar do insólito, mesmo que não o tivesses planeado direito e que comecemos, hesitantes, pelo postiço das formalidades, porque por estas bandas o costume é falar-se do tempo. Ainda não sabemos que temos Saturno na mesma casa e que podemos passar ao que interessa, sem precisar de aquecimento ou cautelas. Em mistura ao comentário pouco convincente sobre o calor, menciono brevemente um filme de terror e respondes-me com a angústia da luz do dia que começa a escoar-se três minutos de cada vez depois do solstício de verão – angústia subterrânea para a maioria das pessoas, mas que o nosso termómetro regista. Entre esta troca improvisada e a galope, que desemboca no tema dos rituais e sacrifícios humanos, estalam-me foguetes por dentro.

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Posso descontrair, sem ter medo de dizer a coisa errada, das interpretações que vais fazer, se vais ficar ofendido ou magoado quando te digo a verdade. Não me pedes fórmulas de assertividade nem te importas que rosne se for caso disso, e o alívio que sinto faz-me querer encostar a cabeça e ficar, receber enfim no silêncio quem domina o idioma e não me cobra palavras. Não me estranhas, mesmo que sejas estrangeiro por cá. Não me acusas de julgamento nem confundes as minhas intenções, porque o nosso desencaixe é simétrico. Identificas-te como homem, eu como mulher, e não usamos pronomes como fetiches. O nosso fetiche é o Profundo. É com isso que nos identificamos, um plano mítico para quem vive à superfície, deformando o corpo, confundindo a consciência e escamoteando palavras, mutilada a razão com um arco-íris na machadinha.

 

Gostava de continuar a conversa, mas está na hora de ir à rua. O cão da vizinha leva-me três voltas de avanço.

 

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

22
Ago23

Vigilantes

Sónia Quental

 

Beauty needs a witness.

Zan Perrion

 

O animus é uma cor primária na paleta da psique feminina. 

Clarissa Pinkola Estés

 

 

Noto, em retrospetiva, as figuras vigilantes que atravessaram a minha vida adulta, velando discretamente por mim. Não falo de anjos, mas de homens. Conheço alguns, que são ou foram amigos; outros frequentam apenas os mesmos espaços que eu, vigiando à distância, desconhecendo talvez que a mulher é sensível ao seu radar.

Invade-me um misto de sentimentos: de um lado, a comoção, contrastando com o desgosto do desabrigo que conheci pela mão de outras presenças masculinas, começando pela que me ensinou a correr antes de me mostrar como caminhar.

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Quando me fiz a esse caminho aos tropeços, com pernas maiores do que eu, houve sempre algum vigilante que ajudou a aplanar o piso ou pegou por momentos na minha bagagem, fosse dando-me boleias porque não tinha carro, cedendo o ombro escorreito da amizade, dividindo inquietações existenciais ou os passos da busca da transcendência. Com uma atitude protetora e uma lealdade inabalável, que, com o respeito pelos limites da vida íntima de cada um, me faziam preferir a sua companhia à das mulheres, eram geralmente mais calados e contidos, diziam a verdade e sabiam guardar segredos.

Descobri que eu era o segredo que precisava que guardassem, enquanto me ocupava de o conhecer. Precisava do seu desvelo à minha volta enquanto mergulhava no profundo – dos seus braços sólidos e capazes para me puxarem à superfície quando me esquecia de respirar. Precisei da sua estrutura para descobrir a sacralidade da beleza e dar-lhe a forma que lhe permitisse ser vista. Socorri-me dos seus olhos quando não me via, do seu valor para achar o meu.

No zelo pela minha integridade física, sei-os protetores da inocência que não quero perder, porque a perda seria também sua. Testemunhas e custódios do esplendor, são a retorta que a redenção procura, no seu estado líquido ou ígneo. Quem lhes conhece a força não vê a fragilidade estoica que ocultam. É em nós, mulheres, que a protegem, à custa dos corações tantas vezes dilacerados.

 

 

Recorte de fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0