Os Silvas
No Condomínio Lunar, as manhãs começavam buliçosas. Muitos tinham a impressão não confirmada de que as paredes estavam cada vez mais próximas, acentuando o aperto dos cubículos habitacionais. Às sete da manhã, os moradores preparavam a sua estratégia para sair de casa sem cair nas garras dos Silvas: o esquadrão engravatado de monóculo térmico que lhes montava guarda nos arbustos das redondezas, composto maioritariamente por agentes imobiliários.
O cerco tinha um duplo propósito: extorquir os apartamentos aos legítimos proprietários, para serem vendidos pelo quádruplo do preço original, até que não sobrasse nenhum no edifício, e alargar as suas fileiras, recrutando novos Silvas para a missão. Os freelancers eram as presas mais fáceis e apetecidas – e os recrutas mais convictos depois de trocarem as calças de ganga puídas pelo fato impessoal de gente com direito a ordenado, que só precisava de saber repetir coisas vagas, como: “O processo ainda se encontra em análise”.
No lado que em tempos fora o crescente da lua, mas que agora também mingava, o Toni esfregava vigorosamente os braços e as pernas com óleo de cânhamo, na esperança de que o efeito combinado do cheiro e da oleosidade mantivesse os Silvas à distância. Por algum motivo, o crachá de Amigo Certificado, que tanto suor lhe tinha custado, não demovera os agentes, provocando-lhes antes uma sanha capaz de congelar qualquer pulsómetro da Felicidade. Talvez já não bastasse ser-se uma pessoa de bem naquele mundo, cogitava ele – ou então era o faro apurado dos Silvas que lhes dizia que o Toni ainda cedia ao pecado da gula.
A barbatana improvisada fez o Emílio acordar dorido depois das práticas noturnas: andava a estudar o teletransporte e as projeções astrais, para uma fuga limpa, sem rasto e sem encontros indesejáveis, mas só conseguia fazer desaparecer o membro inferior (esse nunca tivera dificuldade em mingar). Como ainda não conseguira entrevistar o holograma de Jesus, a quem esperava extrair os mais avançados segredos esotéricos, continuava a vocação de autodidata que já o tinha transformado em escritor e poeta no seu longo percurso pela Universidade da Vida.
Na ponte trémula que ligava as duas metades da lua, o Leitor Ufano descobrira que os novelos de cordel não serviam apenas para tricotar camisolas e treinar remates à baliza: podia lançá-los mais longe e prendê-los aos ramos das árvores, abrindo uma rota de fuga aérea, com o músculo do intelecto dispensando a força de braços. Mal podia esperar pela próxima disputa amigável, para esfregar a proeza na cara dos pavões dos Aferradinhos a Deus.
Terminada a marmita para o almoço, a Maria das Dores era a única que saía pela porta da frente, afastando os Silvas à paulada, enquanto trauteava o Nessun Dorma e distribuía panfletos sobre os benefícios do mindfulness.