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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

22
Mar24

Dos sapos e de outros anfíbios

Sónia Quental

 

Nunca beijei um sapo que se tivesse transformado em príncipe. Foi assim que as histórias infantis se me infiltraram na pele, à letra, levando-me na missão de restaurar a realeza aos sapos com potencial.

Mas, se eu via os príncipes nos sapos, eles não viam em mim a princesa. Não havia transformação que se notasse depois de lhes suportar o coaxar intenso e a língua amarrada à minha. Se alguma coisa acontecia, era tornarem-se ainda mais sapos, convencidos do seu garbo irresistível. Inchavam o papo e davam saltos malucos, exibindo as pernas de elefante, engordadas à custa do cocktail de hormonas – sapos que não se achavam sapos o bastante ou que queriam mostrar que eram mais sapos do que os outros, desgostados das suas pernas magrinhas e das suas vozes fininhas, que culpavam por afastarem as princesas.

A abraçar árvore (5).jpg

Não sabiam que às princesas pouco impressionava o aparato das piruetas ou a grossura dos seus membros, se os sapos eram influencers e tinham um milhão de seguidores ou se eram os donos do charco. Eram dotadas de raio-x capaz de lhes iluminar o esqueleto, mostrar a substância que existia dentro das pernas insufláveis, a fibra de príncipe no ADN oculto, perante a evidente falta de trato.

A única mudança visível era que, em vez de os sapos se transformarem em príncipes, as princesas se metamorfoseavam em sapos, ora para lhes fazer o gosto, ora por força da convivência. Porque as princesas andavam encolhidas, sem saber que eram princesas, como os sapos não sabiam que eram sapos. Se tinham nascido entre patos e viam nas águas uma imagem distorcida, achavam que pato + sapo devia ser match feito no Céu, onde nascem os contos de fadas e se é para sempre feliz.

Com isto, os verdadeiros príncipes perderam-se das princesas, as princesas transformaram-se em anfíbios e os sapos ficaram como estavam. The end.

 

Metamorfose

Aquela menina era tão pura

e tinha tão limpo o seu coração,

que não lhe caíram os anéis dos dedos

por beijar um sapo. Mas desde então

o namorado não sabe por que motivo

todas as sextas, à tarde, os lábios

da sua rapariga se transformam

num frio cristal verde, cor de esmeralda.

 

Amalia Bautista

 

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

01
Jan24

A galinha cor-de-rosa

Sónia Quental

 

A minha avó das Corgas tinha coelhos, vacas e galinhas. Costumava vê-la a dar erva às vacas e a ir buscar ovos ao galinheiro. Um dia, eu disse à minha tia favorita que tinha visto uma galinha com penas cor-de-rosa, comentário recebido com a candura de quem se desacredita dos absurdos perfeitamente lógicos que saem da boca de uma criança. Tanto foi que a história se espalhou e desde então a minha avó perguntava-me sempre pela galinha cor-de-rosa, que não voltei a pôr os olhos em cima.

Pus empenho em encontrar a galinha, quanto mais não fosse por uma questão de honra, algo que as crianças não dispensam. Não podia desdizer-me nem apresentar provas e devia ser das poucas que não queriam a Galinha dos Ovos de Ouro: só pedia uma cor-de-rosa, que pudesse apontar em triunfo para ser levada a sério.

Até que começaram a diagnosticar-me excesso de seriedade e uma vez me perguntaram:

           

- Porque é que és tão triste?

           

Tinha deixado a galinha noutro troço da infância, mas talvez lhe tivesse ficado o fantasma. Em vez de chamar estúpida à pessoa por fazer uma pergunta daquelas, fiquei ainda mais séria, a cismar no verbo “ser”, em vez de “estar”, que me traçava todo um destino, e eu que tinha uma galinha para achar e ainda nem sequer gostava de Português.

Vultos diferentes deram eco à mesma pergunta ao longo do tempo, variações poucas. Porque és tão séria, tão triste, porque não vês connosco a novela. Quando perguntavam pelas costas, a malícia tinha um vocabulário mais expressivo, mas sempre a pender para o mesmo lado. Nem eu sabia que era enjoada nem as pessoas que eu tinha uma galinha atravessada na infância. No hard feelings.

Depois, o meu primeiro namorado a sério, que também me achava séria, cancelou o contrato vitalício antes do fim da garantia, porque, dizia, eu tinha um segredo que ele nunca conseguira decifrar. Os mistérios a resolver já eram muitos e agora mais este, que veio juntar-se à galinha lá no topo e me acusava outra vez de males de que eu não sabia sofrer.

Por estes dias, ao preparar a lista de desejos para o Ano Novo, eles lá estão, vivinhos da Silva, e eu a copiá-los de novo, com uma letra desacostumada do papel, “Achar a galinha e o segredo”. Imagino esse tal namorado, que teve morte prematura (aqui é à letra, não é figura de estilo), a abanar a cabeça do Além enquanto digito ao Leo, nas primeiras horas do ano, “De que cor são as penas das galinhas”, a julgar que a galinha sou eu.

 

Porta azul.jpg

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0