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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

23
Dez23

Era uma "bez"

Sónia Quental

 

Embora não seja fã de Bruno Nogueira, a crónica sobre o Porto que publicou há dias na revista Sábado fez-me pender uma das asas uns milímetros na sua direção e desafiar-me de novo a ligar os pontos.

Fez-me lembrar uma interpretação intrigante que encontrei, era ainda estudante, na obra Psicanálise dos Contos de Fadas, em que o autor (outro Bruno, por sinal), a propósito d’ “A Bela Adormecida”, sugeria que o despertar da heroína do sono de 100 anos não se devera tanto ao príncipe eleito, que conseguira finalmente atravessar a sebe de espinhos, mas ao terminar da maldição. Trocando por miúdos: fosse quem fosse o desgraçado a acercar-se do castelo, as sebes abrir-se-iam para lhe dar passagem, simplesmente porque tinha chegado a altura (uma interpretação nada romântica, bem sei).

Diz o Bruno de cá, que vê no Porto um país dentro do país maior que é Portugal, que “Uma cidade não é o que se vê no mapa” e que – aqui em paráfrase –, sejam quais forem os movimentos que a sacudam, continuará a ser aquilo que sempre foi. Tem um espírito próprio, que lhe sobrevive e que contagia quem nela se adentra, ditando desde logo se são compatíveis ou não (isto sou eu que digo). Não é preciso fazer match.

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É aqui que entra a história da Bela Adormecida, não porque ao Porto falte viço ou porque tenha sido amaldiçoado por alguma fada desavinda, mas porque o espírito do lugar não é só do lugar: é dos tempos também. Quero com isto dizer que, mesmo quando não é um conjunto de fatores a imprimir a mudança ao espírito da cidade, os espíritos transitam quando chega a hora disso, porque a cidade não deixa de fazer parte de um sistema maior, também ele governado por ritmos, ciclos e qualidades a expressar. Não vive envidraçada num caixão com um isolamento impenetrável, como a Branca de Neve (outra ilustre adormecida), que ainda assim se sujeitava a que o cristal partisse.

Ao contrário da impressão do nosso cronista, parece-me que o espírito do Porto começa, sim, a dar sinais de mudança. Não sei se é por isso que as pessoas se agarram, mais tenazmente do que nunca, ao Natal e às tradições que lhes transmitem a segurança da continuidade, quando os ventos do desconhecido são cada vez mais céleres e desestabilizadores. São tradições que nos fazem recuar ao conforto da infância, ao tempo em que o “E viveram felizes para sempre” dos contos de fadas ainda era possível e as lareiras crepitavam ao som de uma sabedoria mágica e subterrânea, que nos preparava para a vida, resguardando-nos em simultâneo da crueza das suas tragédias, como bem aponta Nuno Lebreiro noutro artigo recente.

Embora não tenha nascido no Porto, sou mais de cá do que de Portugal. Gostava que a sua genuinidade perseverasse, porque também a mim me aproxima mais de quem quero ser, efeito que não cabe num texto nem num postal. Enquanto escrevo este, chegam-me os gritos dos adeptos no Estádio do Dragão e, por mais que comece a agitar-me quando penso que em breve vou querer dormir, já fazem parte da paisagem, como as gaivotas rapaces e as obstinadas pombas. Que passava melhor sem eles, passava - mas não era a mesma coisa. 

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Fotografias: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

09
Dez23

Feitiços

Sónia Quental

 

Contar histórias é trazer à baila, trazer à tona.

Clarissa Pinkola Estés

 

 

As histórias adormecem-nos e acordam-nos. Levam-nos aos territórios inexplorados da psique profunda, protegidos por uma simbologia dinâmica, mas branda, que impede o contacto direto e excessivo com o conteúdo psíquico que precisa de ser enfrentado, levado à sublimação. Como instrumentos de poder, pela sua capacidade de penetração na vida latente, podem ser manejadas para o bem e para o mal, ser bálsamos medicinais, conjuros, pragas.

 

Adolescente ainda, participei em formações de cosmética promovidas por marcas que os meus pais representavam, contexto em que me sentia como peixe fora de água, e nem as garrafinhas de vidro a marcar os lugares lhe davam um conforto mais líquido.

A experiência não foi desprovida de utilidade, porém – sobretudo a última, em que um formador capaz saiu do registo habitual para nos falar do poder das histórias. Confessou que, numa ida ao hipermercado, tinha tido a curiosidade de ler o rótulo das marcas mais baratas de cremes, surpreendendo-se por terem os mesmos ingredientes que aquela para a qual trabalhava, que praticava outra tabela de preços. Como convencer alguém, então, a gastar mais pelo mesmo? A resposta que nos propunha estava no poder das histórias.

Mostrou-nos a imagem de uma pedra e explicou como o seu valor percebido mudava em função da história que tinha a contar. Que produzia um efeito muito diferente dizer-se que era uma pedra de rua, uma pedra da Grande Muralha da China ou do muro de Berlim, ou uma pedra com origem na superfície lunar, o que a tornava a mais cobiçada de todas as pedras, mesmo que a aparência fosse a mesma. O que cabia ao vendedor era saber escolher as histórias que dessem glamour ao produto e criassem o desejo de compra.

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Se bem que nunca tenha tido talento nem interesse pelas vendas, sei que é na sedução do glamour que vivemos, fascinados por histórias que viram feitiços, não raro cristalizados em fetiches (um bom momento para lembrar que o termo “fetiche” vem do português “feitiço”). No entanto, o glamour é apenas um simulacro da beleza, um artifício que satisfaz o apetite, não a fome.

É nessa esteira que vivemos consumindo histórias; tecendo-as, deslindando-as, sacudindo-as, enredados nelas, transportando-as vivas no corpo, exorcizando-as, tentando resolver o enigma da nossa, separar os fios da malha que nos toca. Somos alvos voluntários dos cantos de sereias, deixando-nos atrair e envolver, cativos felizes de contos do vigário urdidos por nós. Não é fácil deixar o transe coletivo, assumir a autoria das narrativas que nos vitimam e escolher reapropriar-nos de um olhar que não esteja enamorado pela ficção, fazendo ouvidos moucos ao embalo dos flautistas que espreitam a cada esquina.

Sem o glamour, a vida não está fadada ao desencanto. As histórias têm igual poder de remediar e inocentar. Há histórias que, em vez de lançar feitiços, os desfazem, num gesto de mágica meiguice (outro parentesco etimológico oportuno). As teias da ilusão cedem lugar ao numinoso. Uma pedra é uma pedra, venha de onde vier. Há mistério que chegue nisso, sem que tenhamos de mistificar.

 

Apesar de algumas pessoas usarem as histórias apenas para diversão, no seu sentido mais antigo as histórias são uma arte medicinal. (...) Ao lidarmos com as histórias, estamos a trabalhar com a energia arquetípica, que é muito parecida com a eletricidade. Ela pode animar e iluminar, mas no local errado, na hora errada e na quantidade errada, como qualquer medicamento pode produzir efeitos nem um pouco desejados. (…) Temos de nos certificar de que as pessoas estejam preparadas para as histórias que contam.

 

Clarissa Pinkola Estés

 

Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

14
Nov23

Silêncio que é chumbo

Sónia Quental

Foi a saudosa coleção da Formiguinha que em criança me introduziu ao património da literatura tradicional. Os contos terminavam com uma lição de moral, e uma das que se me cristalizaram na memória dizia que “A palavra é de prata, o silêncio é de ouro”, oferecendo-se como um mistério a desvendar, coberta do pó luzidio desses metais preciosos.

No meu mundo habitual, nem a palavra era de prata nem o silêncio de ouro. A palavra era uma excreção que servia para agredir ou confundir, enquanto o silêncio funcionava ora como castigo ora como solvente, que a mão do Esquecimento manejava para diluir a verdade. Quando não cooperava com ele, era lembrada dos meus fundamentais egoísmo e ingratidão, e da fórmula 70x7 do perdão. À época, não me deixavam usar máquina de calcular na escola, mas eu era boa aluna, tinha copiado muitas vezes a tabuada e sabia fazer a conta de cabeça. Tinha noção de que o resultado era um número de grandeza desproporcionada, cuja exatidão me intrigava, mas nem as homilias de domingo me desfaziam a relutância.

Quando se nasce das entranhas de um dos mamíferos do demónio, tem-se a oportunidade de examiná-las de perto. Leva-se para a vida, misturado com o enxoval, um estojo completo de alquimia, com pedaços de chumbo como matéria-prima. O pedregulho do silêncio também ia lá dentro, suplicando-me amizade regeneradora.

Só que os meus olhos já eram míopes e estrábicos – o preço que tinha tido a pagar por não dar tréguas ao silêncio, não deixar o rei desfilar em paz na sua nudez impostora. Também conhecia essa história, não dos livros da Formiguinha, mas de leituras outras, que me tinham familiarizado com os sacrifícios que a virtude pedia. Cabia-me conquistar as suas recompensas incertas, polir o metal baço da palavra e do silêncio, que me tinham ficado presos na garganta, para encontrar os seus quiméricos tesouros.

E polir é o que tenho feito, mesmo quando as mãos não querem. É o meu fardo, a parte do mistério que me coube, a faina de desfazer o Mal milímetro a milímetro num silêncio que pulsa e se desdobra num luminescente infinito.

 

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Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

23
Jun23

Mente que mente

Sónia Quental

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All these disturbances and thoughts are like rats in the home of peace, so you have to be like a cat.

H. W. L. Poonja

 

You can have ten thousand thoughts a minute, and if you don’t believe them, your heart remains at peace.

Byron Katie

   

           

A mente acorda queixosa. A vida vai torta, o mundo não gira como ela queria. A órbita da Terra é incerta e o controlo que exerce sobre ela é pouco. Os queixumes são a forma que aprendeu de regatear favores.

A mente acredita em si mesma, põe fé nos pensamentos. Ao menos esses são seus. Ou seriam, porque a mente ouviu um dia que não se deve acreditar neles. Fica perplexa. Pensa que, se os pensamentos acabam, ela acaba. E a mente não quer acabar.

Quer cobrar todas as promessas não cumpridas que alguma vez lhe fizeram, atirá-las à cara dos faltosos, banquetear-se de rancores. Quer continuar a compilar a lista de males sofridos, que já vai mais comprida do que a lista de livros que leu. Mas gosta de ambas, porque tem queda para listas e gosta de cultivar pequenas vaidades. Gosta de pontualidade e de clamar por justiça.

A mente é inflexível na sua recusa de perdão. Também não gosta de jejuar, mas pelo menos levanta-se cedo. Há vezes em que nem chega a passar pelo sono, porque tem muito que fazer, problemas a resolver, o apuramento de todos os comos e porquês desde o início dos tempos. Para ela, o mundo está sempre à beira do apocalipse. Um pequeno deslize, uma distração involuntária e tudo se acaba.

Quer acordar outro dia queixosa, discutir com a vida do nascer ao pôr do sol, ter a última palavra. A sua fome de mais nunca se aplaca, tal como a busca de responsáveis: os outros, a própria, Deus, o conformismo das massas. Deve haver alguém implicado em tudo o que vai mal, a quem possa pedir contas e obrigar a desfazer o que está feito.

A mente quer encontrar o vilão da história. Quer estar em todo o lado menos aqui, ser tudo menos contente. Acha que aceitar é conformar-se – calar-se, desaparecer. E a mente não quer capitular, ficar sem ocupação. Tem-se como imprescindível, narradora sem a qual a história não avança. E ela gosta de histórias e de protagonismo. Tem sempre desculpas para interromper o silêncio e fazer-se escutar. Caso contrário, faz birra.

Mesmo assim, o Amor vem para a abraçar. A mente emudece de pasmo.

 

Recorte de fotografia de: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0