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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

14
Nov23

Silêncio que é chumbo

Sónia Quental

Foi a saudosa coleção da Formiguinha que em criança me introduziu ao património da literatura tradicional. Os contos terminavam com uma lição de moral, e uma das que se me cristalizaram na memória dizia que “A palavra é de prata, o silêncio é de ouro”, oferecendo-se como um mistério a desvendar, coberta do pó luzidio desses metais preciosos.

No meu mundo habitual, nem a palavra era de prata nem o silêncio de ouro. A palavra era uma excreção que servia para agredir ou confundir, enquanto o silêncio funcionava ora como castigo ora como solvente, que a mão do Esquecimento manejava para diluir a verdade. Quando não cooperava com ele, era lembrada dos meus fundamentais egoísmo e ingratidão, e da fórmula 70x7 do perdão. À época, não me deixavam usar máquina de calcular na escola, mas eu era boa aluna, tinha copiado muitas vezes a tabuada e sabia fazer a conta de cabeça. Tinha noção de que o resultado era um número de grandeza desproporcionada, cuja exatidão me intrigava, mas nem as homilias de domingo me desfaziam a relutância.

Quando se nasce das entranhas de um dos mamíferos do demónio, tem-se a oportunidade de examiná-las de perto. Leva-se para a vida, misturado com o enxoval, um estojo completo de alquimia, com pedaços de chumbo como matéria-prima. O pedregulho do silêncio também ia lá dentro, suplicando-me amizade regeneradora.

Só que os meus olhos já eram míopes e estrábicos – o preço que tinha tido a pagar por não dar tréguas ao silêncio, não deixar o rei desfilar em paz na sua nudez impostora. Também conhecia essa história, não dos livros da Formiguinha, mas de leituras outras, que me tinham familiarizado com os sacrifícios que a virtude pedia. Cabia-me conquistar as suas recompensas incertas, polir o metal baço da palavra e do silêncio, que me tinham ficado presos na garganta, para encontrar os seus quiméricos tesouros.

E polir é o que tenho feito, mesmo quando as mãos não querem. É o meu fardo, a parte do mistério que me coube, a faina de desfazer o Mal milímetro a milímetro num silêncio que pulsa e se desdobra num luminescente infinito.

 

Galeria Geraldes - 17.09 (32).jpg

 

Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

23
Jun23

Mente que mente

Sónia Quental

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All these disturbances and thoughts are like rats in the home of peace, so you have to be like a cat.

H. W. L. Poonja

 

You can have ten thousand thoughts a minute, and if you don’t believe them, your heart remains at peace.

Byron Katie

   

           

A mente acorda queixosa. A vida vai torta, o mundo não gira como ela queria. A órbita da Terra é incerta e o controlo que exerce sobre ela é pouco. Os queixumes são a forma que aprendeu de regatear favores.

A mente acredita em si mesma, põe fé nos pensamentos. Ao menos esses são seus. Ou seriam, porque a mente ouviu um dia que não se deve acreditar neles. Fica perplexa. Pensa que, se os pensamentos acabam, ela acaba. E a mente não quer acabar.

Quer cobrar todas as promessas não cumpridas que alguma vez lhe fizeram, atirá-las à cara dos faltosos, banquetear-se de rancores. Quer continuar a compilar a lista de males sofridos, que já vai mais comprida do que a lista de livros que leu. Mas gosta de ambas, porque tem queda para listas e gosta de cultivar pequenas vaidades. Gosta de pontualidade e de clamar por justiça.

A mente é inflexível na sua recusa de perdão. Também não gosta de jejuar, mas pelo menos levanta-se cedo. Há vezes em que nem chega a passar pelo sono, porque tem muito que fazer, problemas a resolver, o apuramento de todos os comos e porquês desde o início dos tempos. Para ela, o mundo está sempre à beira do apocalipse. Um pequeno deslize, uma distração involuntária e tudo se acaba.

Quer acordar outro dia queixosa, discutir com a vida do nascer ao pôr do sol, ter a última palavra. A sua fome de mais nunca se aplaca, tal como a busca de responsáveis: os outros, a própria, Deus, o conformismo das massas. Deve haver alguém implicado em tudo o que vai mal, a quem possa pedir contas e obrigar a desfazer o que está feito.

A mente quer encontrar o vilão da história. Quer estar em todo o lado menos aqui, ser tudo menos contente. Acha que aceitar é conformar-se – calar-se, desaparecer. E a mente não quer capitular, ficar sem ocupação. Tem-se como imprescindível, narradora sem a qual a história não avança. E ela gosta de histórias e de protagonismo. Tem sempre desculpas para interromper o silêncio e fazer-se escutar. Caso contrário, faz birra.

Mesmo assim, o Amor vem para a abraçar. A mente emudece de pasmo.

 

Recorte de fotografia de: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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