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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

20
Mar25

Ser ou não ser

Sónia Quental

            O teste do desapego é quando se leva outra bordoada e o que nos vem à cabeça é este meme, que o sentido de humor saca automaticamente dos arquivos digitais, onde a memória temporária é ocupada por coisas mais permanentes do que deviam.

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         Disseram-me uma vez que eu era mais forte, que aguentava mais do que os outros. Era por isso que ficava com o meu fardo e o deles e que recebia mais pancada também: porque dava luta, morria, ressuscitava e passava de nível. Mas isso só dava gozo na Master System II, contra o meu irmão e o meu primo, quando eu era o Alex Kidd e aprendi a jogar o pedra, papel, tesoura. Na vida real, às vezes morro e nem sempre ressuscito, e ainda não encontrei ninguém com quem pudesse jogar o pedra, papel, tesoura e ser recompensada por isso. É cansativo recomeçar os mesmos níveis, mesmo quando sei fazê-los mais rápido e acabo com os adversários ao primeiro golpe, só para chegar um pouco mais longe antes de perder a próxima vida.

         Deve ser castigo por ter levado o Boss AC para a sala de formação, quando tentava dar lições de moral pedantes às crianças. É com ironia mordaz que o mesmo sentido de humor que me fulminou com o meme canta agora sem afinação: “És forte, abanas mais não cais” ou “O que não mata engorda”. Não sei se o preço da fortaleza compensa nem se o presente estado de impassibilidade e desapego é uma conquista ou se é só perda da capacidade de reação. Tenho a impressão de que agora morro na mesma, mas morro feliz. Se é isso que é ser forte, se calhar passei de nível e não sei.

 

12
Mar25

Para desajeitados

Sónia Quental

         Depois de quase três anos no ioga, são estas as únicas posturas que sei fazer. Por coincidência, também são as únicas de que gosto e que qualquer um pode imitar com segurança em casa. Aconselho, antes dos momentos chatos da vida.

 

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02
Mar25

O dogma

Sónia Quental

What business have you with saving the world, when all the world needs is to be saved from you?

Nisargadatta Maharaj

 

 

 

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O Toni foi o convidado de honra para moderar o colóquio Porque É que Deus Permite o Sofrimento no Mundo: Contributos para uma Teima Ecuménica, que ia realizar-se clandestinamente nas catacumbas da Biblioteca de Cordel.

Esperava-se a comparência de personalidades eminentes do clube dos Aferrados a Deus, desde curandeiros locais a humanitários benévolos e aos mais altos dignitários da Igreja. E eles não desiludiram, num desfile ostentoso, munidos das suas samarras, charutos e bengalas. Havia os que em vez de apostarem nos acessórios e nos crucifixos de ouro seguiam a humildade minimalista, sendo a tanga uma das peças em voga, secundada por variantes mais literais, como o abnegado que tinha dado um braço para acabar com a miséria no mundo e o acamado que estava em greve de fome. Sem forças para se fazer ouvir, chamou-se uma especialista na leitura de lábios para que nenhum fio se perdesse da sua sabedoria silenciosa.

         Talvez fosse a inexperiência do moderador, a sua falta de pulso ou quem sabe as garrafas de Porto que rapidamente se escoavam, mas o debate logo se desviou do tema proposto, gerador de evasivas hesitantes, para o contributo que cada um tinha dado para a salvação do mundo. Para um desempate rigoroso, queriam legislar uma tabela que contabilizasse méritos como donativos monetários, voluntariado em hospitais ou prisões, orações diárias, jejum, velas acesas, registo de conversões, membros e órgãos doados, peregrinações a Fátima, bênçãos do papa, bandeiras da Ucrânia nos perfis sociais e a glorificação imorredoura da esperança.

         A discussão incendiou os ânimos já desavindos, fazendo com que todos perdessem a noção do decoro naquela que era quiçá a mesa de trabalho mais efervescente e ébria do submundo da Simpatia. Toni, que já tinha trocado de t-shirt duas vezes e continuava a transpirar profusamente, convidou-os esbracejando a coroarem o encontro com um passeio restaurador pela grande Montanha onde desembocavam as catacumbas. O efeito sobre a comitiva foi imediato, alguns diriam que bizarro até, levando a acessos de tosse e a uma dispersão súbita: um, explicava, tinha de ir rezar a missa, outro queixava-se da artrose, outro ia atirar moedas aos pobres, outro compor versos sobre a guerra, outro tinha o chicote à espera, outro ainda estava atrasado para o jantar (arroz de pato, por sinal).

         Foi assim que a Montanha, na sua paciência infinita, continuou à espera de um peregrino, um que não fosse com o mapa na mão – um que fosse para chegar.

 

Imagem: baralho Rider-Waite

 

23
Fev25

Roda do tempo

Sónia Quental

 

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Não foram apenas as distâncias que as tecnologias vieram encurtar, mas o tempo na visão mais lata da existência humana, dando a sensação de hoje se poder viver várias vidas na mesma encarnação, em que se reencontram as mesmas personagens incansáveis, cavalgando as portas giratórias do mundo virtual como se tudo fosse um “até já” sem consequências. Inventada a internet, temos ao nosso alcance uma versão moderna e democratizada dos registos akáshicos, que qualquer um pode manusear.

        Tenho muito a sina de me descobrirem os encantos postumamente, às vezes passados anos de uma relação que não vingou, como foi o exemplo do pobre diabo que me assaltou o pensamento uma destas madrugadas, dando razão à sabedoria popular que diz que o primeiro nunca se esquece.

          Ele queria jogar à bola; eu, como todas as meninas de 12 anos, achava que o primeiro era para casar. Ele demorou até aos 22 para considerar as opções e decidir que afinal também queria. E não era um querer pequeno, visto ter vasculhado a internet e percorrido centenas de quilómetros para me achar no buraco enregelado onde me exilei no ano de estágio, ao lado do cemitério, na borrasca do inverno. Ia para me levar ao cinema e para casar, com a bênção dos pais, confidentes de todas as horas. Numa casa partilhada por quatro almas penadas, o quarto era o único recanto onde havia privacidade e foi com horror que desviei o olhar quando a criatura teve o à-vontade de se deitar na minha cama, agarrada à almofada onde eu dormia. Entre os três – ele, eu e a fantasia que tinha de mim –, era eu que estava a mais. Estive quase para sair de fininho e deixá-lo entregue à consumação de núpcias, não fosse o medo de encontrar uma lembrança debaixo dos lençóis.

         Já lhes chamaram Highlanders, os imortais. E que nome bem escolhido, porque o corte tem de ser de espada e pelo pescoço, e mesmo depois de defuntos demoram a perceber que passaram para o lado de lá. Estranhamente, são sempre eles que tentam ensinar-me o valor do perdão, da tolerância e do amor incondicional que parecem viver, a acreditar na pregação que ouço quando tentam voltar a girar a porta e a entrar no quentinho de onde acham que nunca saíram. Por correio, por telefone ou em perseguição cerrada pelas vielas cibernéticas, a atividade tornou-se profissão e eu, que não sou de opiniões, venho aqui dar a opinião de que merece sindicato e troféu de tenacidade – desde que não lhes deem subsídio de transporte e lhes tirem o material de escritório.

         A quem faz gosto em aprender, os imortais ensinam muitas coisas, entre elas como passar pelo tempo incólume ou caminhar por ele às arrecuas, num palco giratório com figuras de cera, congeladas num momento fugaz, ali reencenado, num purgatório que não tem como acabar. Por mim, aprendi que quem não aproveita a dádiva do tempo para se entregar a um devir consciente e mudar de lugar a cada instante nunca sairá da roda, e nem é preciso dar-lhe corda, porque ela gira por si.

         Quando o cowboy desata a galope na direção do horizonte, eu, que também não sou de dar conselhos, aconselho quem fica para trás a certificar-se de que o vê desaparecer no além. O mais certo é perceber que se enganou e resolver dar meia-volta, não porque tenha sido fulminado pelo arrebatamento da paixão ou tomado por um arrependimento sincero, mas porque não gosta de deixar coisas inacabadas. A casa ainda não ardeu até ao fim.

 

Imagem: baralho Rider-Waite

 

04
Fev25

Uma Aventura... no Supermercado

Sónia Quental

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Ir ao supermercado é daquelas coisas que se faz porque tem de ser. Quem, como eu, abomina as multidões, procura as horas de pouco movimento, o que o trabalho ainda me permite fazer. Como em qualquer viagem que não seja sem destino e sem pressões, também estas são planeadas: tendo em mente aquilo de que preciso, programo ir do ponto A ao ponto B, num tempo que consigo calcular aproximadamente, evadindo-me pelas caixas de autoatendimento.

         Tratando-se de uma tarefa necessária e não de uma visita turística, gosto que seja rotineira, de poder contar que um certo produto esteja numa certa prateleira, para poder despachar o assunto e vir embora. Ou que não seja despachado: também posso fazê-lo nas calmas. É um dos motivos por que gosto de ir a sítios habituais: sei onde as coisas estão. Ou sabia. Ignoro se é um estratagema arquitetado pelos hipermercados para desorientar os clientes ou se sou mesmo eu que sou dada às teorias da conspiração, mas todas as semanas mudam os produtos de lugar, e nem sequer é para um lugar próximo e nem sempre para um local óbvio. É assim que aquilo que poderia ser uma visita de médico facilmente se transforma numa peregrinação lacrimosa por corredores que não têm fim, em que a calma já lá vai.

         Pode parecer um aborrecimento insignificante, e realmente é, em face das calamidades que assolam o planeta ou de questões pessoais de maior gravidade. No entanto, são as pequenas coisas num mundo em mudança acelerada e incerteza crescente que nos dão ou tiram a estabilidade e um certo conforto psicológico. Quando, entre as questões prementes da sobrevivência, a cabeça e o espírito aproveitam estes momentos triviais para se ocuparem do sentido da existência, a última coisa que quero é ter de andar à caça das bananas, atropelada por carrinhos de compras, bebés e paletes.

         Isto vindo de alguém que também não vai ao supermercado para conhecer potenciais parceiros, como vi noticiado há alguns meses. Se já é difícil encontrar a fruta, já para não dizer escolhê-la, imagino o que seria ter de decorar todo o código de sinais dos esquemas de acasalamento modernos e ir sondar corredores dúbios, sem posição fixa, com um ananás virado ao contrário. E isto antes de chegar aos preliminares.

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

31
Jan25

Made in China

Sónia Quental

Feita a encomenda numa das maiores lojas de comércio eletrónico, chegou a surpresa: o produto vinha da China. Pode ter sido a contrariedade a toldar-me a visão, mas comecei a ver chinesices por todo o lado.

Aquela obra premiada e muito recomendada de uma jovem escritora catalã, que acabei por ceder a comprar: ginástica chinesa. Bonita de se ver, mas mais nada.

A autobiografia do papa Francisco, com o título a dizer Esperança: chinesada de mau gosto.

Os canais de streaming, onde não há série nem filme que não meta cena de homossexualidade: chinesice pegada.

A chinesice da esquerda e da direita, da política e dos políticos que ainda há quem acredite que vão salvar o mundo. As opiniões, as redes sociais, os podcasts, o entretenimento barato e o analfabetismo que se vê em tantos blogues. A IA a querer entrar por todas as frestas, com um exército de assistentes, acólitos e vendedores sem escrúpulos: chinesada da grande.

Os elogios mútuos, os falsos humildes, os penitentes vaidosos, as máscaras ambulantes, a mentira que galga de trotinete estradas, passeios, pessoas, mãos, olhos, bons dias, os beijinhos que um dia a terra cuspiu e que são tempero para tudo, as regateiras do mercado a chamarem-me “querida”… tudo made in China.

Lançada que estava neste inventário furioso, a memória prega-me uma partida, abrindo a janela para a cena remota em que uma colega da faculdade diz que falou de mim ao namorado:

- É que pareces uma chinesinha.

 

25
Jan25

O Pinga-Amor

Sónia Quental

 

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O Pinga-Amor gostava delas tenrinhas, inocentinhas, praticamente sem trinca. Era para elas que guardava teias de aranha no bolso, material extensível, que lançava, aracnídeo macho, sobre as florzinhas viçosas que se passeavam sem saber que o eram. Pigarreando para expurgar a voz de intenções segundas, o Pinga-Amor chegava-se e colava-se-lhes todo, calculando de cabeça que alminhas pediam uma abordagem mais vagarosa. E era todo vagares. Mas o seu repertório, que cabia num caderninho de bolso, repetia-o sem variação, prometendo-lhes a capa da Vogue entre a meada de elogios, despistando-as com lições solenes sobre a importância do relaxamento ou discursando sobre o correr da vida, qual Epicuro com a auréola mais cândida do desapego. Sobre ânimos exaltados, vertia com o mesmo vagar cerimonial a fleuma adquirida após uma existência dedicada aos prazeres do estômago e da camaradagem.

         De bigode aperaltado, despido de preconceitos e pudores, insinuava ideia semelhante nos cerebrozinhos encantados com os seus galanteios, que se iam fechando na teia, não por falta de entendimento, mas por se acharem no dever de retribuir mesuras. A valentia com que o Pinga-Amor se atirava para a frente de batalha na caça de talentos era confirmada pelas substâncias estranhas que injetava no organismo, que não o impediam de contrair as moléstias contra as quais se inoculava, cujo sintoma persistente eram as evacuações intestinais. Às jovenzinhas deslumbradas, gostava de exibir as marcas das agulhas nos bíceps descaídos, enquanto lhes espremia os pecados mais íntimos, prometendo-lhes o sigilo do túmulo com a mesma convicção com que outros vendiam a continuidade no Além.

         No labirinto do Império, era figura de certa dignidade, chefiando o Gabinete das Manobras de Diversão, onde, além das teias que fazia para uso pessoal, tecia cortinas de fumo com a mesma habilidade de dedos com que as moiras enrolavam os destinos universais. Fosse pela presença constante de cortinas e cantigas, fosse por qualquer predisposição impossível de contrariar, gostava de adormecer a ouvir a história da Carochinha, sem saber que ele era a mosca na teia, o ratão apanhado nas tramas que urdia para pescar anjinhos doces nas suas redes pinceladas de mel.

 

Imagem: Tarot Cigano

 

19
Jan25

Vícios

Sónia Quental

         Por motivos que pouca importa esmiuçar, tenho-me dedicado à leitura de manuais de instruções de frigoríficos, que fizeram mais por mim do que dizer-me que devia descongelar o meu antes que sejamos ambos tragados pelo gelo.

            O pasmo não foi pequeno ao ler as advertências para não se utilizar um secador de cabelo para secar o interior do frigorífico nem pôr lá dentro velas acesas para remover maus odores – o que sugere que ambas as proezas já foram tentadas. A ênfase que a repetição dá ao pedido de não deixar crianças entrar para o frigorífico ou para dentro das gavetas semeou o seu tanto de desassossego: sabendo embora que muitos pais gostariam de fazer freeze à prole destravada, não supus que recorressem a meios tão extremos e literais para o conseguir.

        Empolgada que estava com todas estas aprendizagens e com o português escorreito do texto, eis que tropeço numa daquelas pedras que são a razão de ser de poemas como “No meio do caminho”, de Drummond de Andrade: o emprego infatigável do pronome demonstrativo “o mesmo”:

 

“Não limpe o aparelho pulverizando água diretamente sobre o mesmo”.

“Mantenha todos os materiais da embalagem fora do alcance das crianças, porque os mesmos podem ser perigosos para elas”.

 

         Contrariamente ao que defendem alguns, a formulação não é erro, mas uma deselegância exacerbada pela falta de comedimento no uso, a que aderem até os que mais insistem na simplificação do discurso. Mais universal do que o verniz das unhas que une mulheres de todos os estratos sociais, “o mesmo” ouve-se e lê-se em toda a parte, em substituição de formas mais simples e naturais como “ele/ela”, “este/esta”, “dele/dela”, “seu/sua” ou da simples omissão, como se aconselharia no segundo exemplo acima e era prática comum até um passado recente.

        Senha não reconhecida de igualdade social e nivelamento cultural, infelizmente para baixo, este verdadeiro trambolho tanto se ouve em conversas de café como se lê em traduções literárias, de profissionais que mostram não ser imunes aos modismos da língua. É um dos exemplos infelizes do contágio psíquico que ocorre não só no campo das ideias, mas da linguagem, mostrando como pouco filtramos e refletimos sobre o que recebemos e propagamos. Pior do que isso, só mesmo rematar com “LOL”.

 

11
Jan25

"Nox, noctis"

Sónia Quental

‘Do you consider people to be basically sophisticated animals?’

With a straight face, Rose answered: ‘No, they’re not that sophisticated’. 

John Kent

 

 

 

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       As noites não eram de veludo para todos. Para alguns, tinham a rugosidade da serapilheira; para outros, eram quebradiças e ruidosas como o celofane dos rebuçados, sem o rebuçado dentro. Certo era que poucos dormiam durante o período noturno e que a insónia era a regra que o Império calava quando acendia a iluminação de rua.

       Duas da manhã. Do lado minguante da meia-lua do prédio de apartamentos onde morava, o Emílio experimentava um par de collants cor de beringela, com efeito escama, enquanto tentava enfiar os dois pés no mesmo sapato de salto alto. Havia duas coisas que sempre sonhara ser: sereia e super-herói e, num rasgo de génio, percebeu que podia ser ambas. O único equipamento que lhe faltava para trazer à tona a sereia que havia em si era o fato de super-herói. Já tinha um aquário de tamanho humano, hermético e espelhado, que construíra com as próprias mãos com materiais que recolhera dos contentores de lixo. Às duas da manhã de segunda-feira, o Emílio praticava o equilíbrio e a delicadeza diante da superfície espelhada. Declamava de improviso um poema a que dera o nome de “Crateras da lua”, expressando o romantismo atormentado que precisava de espremer todas as noites do coração flagelado pelo Cupido, com a mesma sofreguidão com que as mães de recém-nascidos bombeavam o leite orgânico para não encaroçar.

          Do lado crescente da meia-lua, o Toni era dos poucos que dormiam um sono inquieto. Fazia o seu treino de cárdio num pesadelo onde fugia de um instrutor de ioga. Satisfeito com o volume de transpiração e o número de passadas, só não contava com a casca de banana que o fez estatelar-se no chão quando já levava uma boa margem de vantagem. Ao levantar-se para matar a sede e apagar qualquer vestígio traumatizante da respiração de fogo, pensou na Ramona, a única mulher que o amava com amor de mãe. Com grande pena sua, as mãos trepadeiras com que fora abençoado tinham sido prontamente repelidas pela Ludovina durante a massagem da tarde. Não se podia esquecer de ligar à Ramona para marcar a sessão de sadomasoquismo e reparar os danos à autoestima, antes que se tornassem irreversíveis.

          No T0 da ponte invisível que unia as duas metades desavindas da lua, o Leitor Ufano aproveitava as horas da madrugada para tricotar uma camisola vintage com os seus novelos de cordel. A rotina continuava com os remates à baliza na varanda, um ensaio intensivo para o próximo confronto com os Aferradinhos. Nas três horas de sono que dormia, sonhava com notas de rodapé e letras miudinhas.

         À mesma hora funesta, a Miss Magnética fazia um lançamento de tarô para a Ramona, que tinha marcado uma consulta urgente depois de ter sido atingida com um novelo de cordel caído do céu, que lhe ficara preso ao cabelo. A combinação da Lua, do Diabo e da Torre fez a intuitiva arregalar os olhos para além da conta. Talvez tivesse sido o movimento súbito das pestanas em caracol a apagar a chama das velas, uma explicação perfeitamente natural para um fenómeno que a superstição poderia atribuir ao paranormal. A sua tenda inteligente, porém, não perdeu tempo a interpretar os sinais de fumo e a ativar o alarme sonoro: um grito de loba agudíssimo que a Maria das Dores tinha gravado num biscate para a empresa de alarmes Tique e Toque, que provocou um pequeno abalo sísmico na rua, onde uma Ramona espavorida corria com o empeno mal-azado do fato de cabedal.

         No pequeno anexo ao lado da Piscina dos Saltos Quânticos e ainda com os tampões nos ouvidos, a Maria das Dores tinha terminado a lição de canto lírico e enfiava a touca para saltear os grilos do rolinho primavera que ia levar para o trabalho no dia seguinte. Pelo sim, pelo não, achou melhor juntar-lhe uma farofa de formigas pretas, para aproveitar a matéria-prima do quintal – gostava de carregar na proteína.

        Ludovina era a única que dormia indiferente ao alarme que fazia balançar a rua, o corpo flutuando com uma leveza que não se importava de sustento nem dos três centímetros que a cama se moveu durante o sono. O toque da noite era de algodão.

 

Imagem: baralho Morgan-Greer

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0