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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

04
Dez23

É o carinho, caros "cowboys"

Sónia Quental

Podia ser nómada digital, mas preferi ser sedentária, o que não significa que o caminho não esteja cheio de escolhos e não sinta a adrenalina das montanhas-russas. Ultimamente, têm sido vários os momentos de perplexidade, ao cruzar-me com os novos cowboys do comércio, que já dispensam os recursos humanos para empregarem a automação, num esforço de reduzir “custos operacionais” – muitas vezes, sem qualquer palavra de aviso. Num dia estão lá, no outro deixam de estar, e o freelancer que lance as cartas para tentar adivinhar o que se terá passado ou fique a coçar a cabeça e se desenrasque no fim. Até as empresas que assumem valores “humanos” desaparecem no mesmo vácuo misterioso, descartando as pessoas com igual facilidade que quem dá precedência ao lucro.

No entanto, e a par dos poucos clientes que se mantêm fiéis à qualidade do trabalho e às pessoas com quem trabalham, tenho notado um crescimento da tendência inversa à descrita no parágrafo anterior, em anúncios que frisam não aceitar trabalho feito com o auxílio de qualquer ferramenta automática. Querem o 100% humano.

É um dos motivos que me fazem achar que no futuro o humano será o novo vinil. A nova corrida ao ouro. Também pelas minhas reações quando me deparo com páginas web geridas por bots, sem oferecer qualquer forma de contacto com gente de carne e osso. Em vez de encontrar soluções, embato contra uma parede após a outra. O desespero de lidar com robôs que me mandam ler artigos de ajuda e me atiram para um labirinto que me leva repetidamente ao mesmo ponto de partida, continuando sem resolver o meu problema, faz que, como consumidora, rejeite semelhantes marcas com a mesma rapidez com que elas dispensam as pessoas.

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Não faria compras num site de comércio eletrónico que empregasse tradução automática, tal como não visito os que são escritos em português “marroquino” (uma variante cada vez mais generalizada, com forte pendor oralizante e anglo-saxónico), acreditando que os falantes nativos são exímios utilizadores da língua, abonando à marca o selo de autenticidade e permitindo-lhe poupar em mão de obra efetivamente qualificada.

Aquilo em que pensa quem se apressa a suprimir o valor humano, crendo-o ultrapassado, é no lucro a curto prazo. Quer-se eficiência, produtividade, esperando-se que o público fique satisfeito com um serviço aparentemente melhor e mais rápido. Neste capítulo da história, ainda está longe de o ser, havendo que ponderar o fator desprezado de em muitas situações as pessoas simplesmente não gostarem de ser atendidas por máquinas.

Falando do atendimento humano, posso dizer que é muitas vezes o motivo pelo qual frequento determinados espaços comerciais. Posso ter de pagar mais ou de percorrer uma distância maior; a qualidade da oferta pode não ser superior, mas a alegria e o cuidado que encontro no atendimento são os elementos diferenciais – nem sempre é a conveniência que dita as escolhas. Num dos supermercados a que mais vou, faço-o porque gosto de sentir o calor das funcionárias nas caixas, que não trabalham contrariadas. Recebo um agasalho emocional quando a pessoa tem o cuidado acrescido de pôr as minhas compras no saco, acomodando-as com um esmero que não está no contrato.

É o carinho, caros cowboys. Foi no carinho que se esqueceram de pensar.

Podem dar às máquinas aparência e voz semelhantes às humanas, uma precisão sem precedentes. Num futuro próximo, posso vir a ser atendida por um aparelho que fale comigo, conheça todo o meu histórico de compras e as minhas preferências, saiba medir a minha temperatura e indicar-me o índice de massa corporal. Não é o mesmo que alguém que sabe pequenas coisas, porque prestou atenção. A atenção e o contacto humano são a mina, caros cowboys – não o contactless. Se pensassem antes no lucro a longo prazo e soubessem que gente não é besta, apesar de todos os sinais em contrário, poriam o humano no âmago da evolução, não como palavra-chave sonante de congressos políticos ou de um discurso de marketing com metas de SEO a atingir.

 

Fotografia: 2013 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

10
Set23

Insuflável

Sónia Quental

A maioria das pessoas parece adulta, mas na realidade não o é. Emocionalmente, a maioria continua a ser criança. (….) Na maioria das pessoas, vive uma criança que está simplesmente a imitar um adulto. A ‘criança interior’ de que tanto ouvimos falar não tem nada de interior; na realidade, é bastante ‘exterior’.

 David R. Hawkins 

 

A real piece of art is a window into the transcendent. (...) And, unless you can make a connection to the transcendent, you don't have the strength to prevail. 

Jordan Peterson

 

 

A caminho de casa, passava há dias pelas festas do Bonfim quando me chamou a atenção o insuflável ao lado da igreja. Achei-o talvez acanhado face às dimensões do edifício, que deve atrair menos fiéis do que o divertimento infantil.

A relíquia religiosa e o destom do kitsch ocupando, em contraste, a mesma paisagem afiguraram-se-me como mais um sintoma do zeitgeist, em que a Humanidade aparenta ter regredido ao estádio locomotor-genital do desenvolvimento psicossocial – ou isso ou perdeu simplesmente o bom gosto. Parece-me provável que aquele seja o real destino das romarias, que já não louvam a Deus, mas procuram as profecias do ChatGPT, pitoniso moderno de altares de plástico, onde é permitido andar de meias e as costas não sofrem como nos bancos de igreja.

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Assim é o sopro da fé: insuflável, ou wearable, como se diz agora. Aparece com o papa e desaparece com ele. Incha, desincha e passa. Quando o festival acaba, arrumam-se as tendas e regressa-se à normalidade, com os uivos erráticos das novas Gretas a disputar os holofotes ao papa.

Estou a pensar em enviar um requerimento à junta para no próximo ano fazerem uma rampa para trotinetas, para facilitar ainda mais o acesso e o insuflável poder exibir o rótulo A+++ da inclusão. Desconfio de que a popularidade tornará redundante a igreja, que, verdade seja dita, não tem os azulejos da Capela das Almas, que a tornem instagramável ou lhe deem relevância turística, nem pode ser convertida em alojamento local, correndo o risco de passar a imóvel devoluto, sujeita a arrendamento compulsivo.

Pelo menos, há um insuflável ali ao lado, onde Deus pode procurar refúgio, se não se importar de partilhar dormida com o oráculo da IA, com quem poderá ter as conversas filosóficas a que as beatas estariam menos aclimatadas. Pode ser que aceitem competir numa corrida de drones e que, desqualificados os humanos, seja Deus o favorito, quanto mais não seja porque o papa, ainda que amigo de todos, joga na mesma equipa. Aceitam-se apostas. O arraial está montado, faltando apenas confirmar a presença de Lio, o robô dançante do Bolhão, que fontes não oficiais garantem estar a preparar uma performance interativa e um workshop de coreografia. O pão de ló já se vende à porta, presume-se que feito de ovos sem crueldade animal.

 

 

What is beauty? What is missing? What causes the profanity and the ugliness to pervade our culture? I would say that it is the loss of the ability to see the invisible within the visible. (...) we don't see that light shining within one another that is our invisible beauty.

Shunyamurti

 

 

30
Mar23

Rumo à tecnocracia

Sónia Quental

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Our intelligence doesn't serve us until it is in service to our souls.

Brian Ridgway

 

 

A pergunta óbvia colocada por Jorge Soley nas páginas de abertura do seu Manual do Bom Cidadão, indagando se enlouquecemos todos, veio-me à mente muitas vezes, antes ainda da propagação generalizada do politicamente correto e da cultura do cancelamento que é objeto do escrutínio do autor.

Uma das ocasiões foi quando ainda dava formação e o então dirigente da instituição onde trabalhava procurava convencer-me de que a minha única função era preparar os formandos para os inserir no mercado de trabalho. Competia-me, assim, escolher os conteúdos de caráter prático que tivessem utilidade para o papel que teriam a desempenhar em contexto profissional. Achava-me na posição formidável e vã de tentar rebater que estava ali para formar pessoas e que, sem se formar pessoas, não se formavam técnicos. Tentava explicar que saber pensar era uma coisa prática e útil, dentro e fora da oficina.

Aspiravam, no seu pragmatismo progressista, a reduzir pessoas a máquinas, tal como hoje se quer que as máquinas façam as vezes das pessoas. A sua exatidão e automação superam as nossas falhas e tornam-nos cada vez mais redundantes, versões obsoletas que se impõe erradicar da força de trabalho e substituir por modelos melhores. Tal como nesses tempos não muito distantes assistia – até que me despedi – à pretensão de se transformar gente numa engrenagem bem oleada da cadeia de produção, deparo-me hoje com a realidade da desvalorização do trabalho humano face a uma inteligência artificial que o torna aparentemente desnecessário. Só num mundo que perdeu o contacto com a própria alma se tem “inteligência” como sinónimo de “consciência” e como o mais alto valor de mercado - a par da “utilidade”. As tendências são uma e a mesma: tornar-nos semelhantes às máquinas, unir-nos a elas numa simbiose feliz e adotá-las como blocos de construção da sociedade superior do futuro: mais eficiente e menos dissidente.

Pergunto-me se a palavra “alma” se tornará também um dos termos cancelados pela cultura dominante, um conceito filosófico e intangível que a Ciência ainda não validou e de que os gladiadores sociais desconfiam, pertencente talvez aos círculos diabólicos das “teorias da conspiração”. Mas, como salienta Jorge Soley, entrámos já numa era em que se tornou proibido fazer perguntas. Assim se impedem os verdadeiros debates e o que quer que destoe de uma narrativa fechada que tem a linguagem como instrumento ideológico e que tanto se empenha em reformá-la e em produzir rótulos que põem imediatamente fora de combate quem se atreva a contar outra história.

Por esta altura, se fosse esperta, já teria enveredado por uma carreira de fact-checker ou de coadjuvante da censura, polidora da linguagem ortodoxa ou ceifadora de termos moralmente ofensivos, uma vez que escolhi um curso “sem saída” que, se à época já pouco tinha de “prático”, hoje parece cada vez mais supérfluo, diante do primado da IA e do futuro tecnocrático que se deixa adivinhar, em que a “nuvem” será o nosso novo habitat comum. Não a nuvem da inspiração artística, da imaginação ou da transcendência, bem entendido, mas a nuvem cibernética. Em breve chegará o tempo em que, depois de abdicarmos da inteligência a favor das máquinas, lhes cederemos também o corpo, num novo tipo de possessão futurista, encorajado pela reeducação global, que pretende remover todos os vestígios de consciência humana, todas as possibilidades epifânicas e reduzir enfim o homem a um ser sintético, socialmente adaptado, ao serviço da coletividade – um homem que será uma sombra sem aura.

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0