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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

27
Mai23

Nem sempre vive o que merece viver*

Sónia Quental

*Resposta ao anúncio “A penalidade da liderança”, publicado em 1915 por Theodore F. MacManus, copywriter da Cadillac, e considerado por muitos um dos melhores de sempre.

 

Fundo branco (2).jpg

 

Hate is so crucial, so important in life. (...) The Empire doesn't want you to hate because it doesn't want you to feel.

Neil Kramer

 

No one can be a good person without integrating their capacity for aggression. 

Jordan Peterson

 

 If you express that which is true, you will also become true. 

Murdo MacDonald-Bayne

 

 

O líder não precisa de defender a sua obra e certamente não replica as ideias do vulgo. O líder não dá lições de liderança.

Erro apressado achar que, quando a crítica é destrutiva, o mal está no crítico e não na obra visada. Se ela não se presta à remodelação nem os atavios lhe lavam a cara, há que deitar abaixo para construir de novo, já que a fachada não se sustenta por si.

Vaidade é achar que apenas a inveja move o ódio ou a crítica e que ela confirma o “génio” do alvo. Que só o que é grande indigna e que os indignados são ressabiados ociosos.

Omissão é consentimento. Deixar de dizer que o rei vai nu é patrocinar o desfile. A Verdade não precisa de arautos para ser verdadeira, mas para ganhar terreno à mentira.

Cego é o que entende o amor a ela como despeito pelos feitos de grandes homens. Desonesto, entender a Verdade como julgamento ou ofensa e castigá-la socialmente, legando-a a uma subjetividade sempre discutível. Quando um líder entra na demagogia, rebaixa-se à posição de político.

Não, nem sempre vive o que merece viver nem é a capacidade que os séquitos emulam. O mérito foi engolido pelo partido da igualdade e a glorificação da mediocridade. Quando deixa de ser critério de reconhecimento e a qualidade se confunde pela aparência, há que expor o miolo da mentira.

Qualificar os críticos de haters é querer calá-los sem os ouvir. Suprimir o ódio dos sentimentos aceitáveis é viver amordaçado e narcotizado. Não conhece a paz quem não abraça o asco, último suspiro do sonhador, romantismo desolado do amador que não trocou a sensibilidade pelo entorpecimento das turbas. Quem odeia ainda não se tornou indiferente.

Talvez um dia haja uma massa crítica de haters que seja o adubo para o amor medrar. Até lá, é preciso lembrar que liderança não é estar em primeiro lugar nem à luz dos holofotes. Tão velha como o mundo é a adoração de falsos ídolos e a contrafação do valor. É por isso que este* anúncio de líder é pura cantiga de vendedor.

 

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

27
Abr23

A fasquia mais alta

Sónia Quental

Escadaria do Mercado do Bolhão (6).jpg

A igualdade degenera em mediocridade.

Fabiano Goes

 

A resistência à perfeição é muito grande.

Trigueirinho

 

         

     A sensação foi de refrescante estranheza ao ler sucessivamente a biografia de dois líderes espirituais distintos, pelo traço comum de grande exigência que lhes era atribuído. Não terá sido coincidência: a pressão molesta que venho há muito sentindo, em todas as esferas da vida, é a pressão antiexigência. Na educação, na formação e nas academias, a fasquia baixa-se cada vez mais: seja para engordar números, seja sob o pretexto de inclusão e pelos casulos de fragilidade que é preciso resguardar. Nas relações interpessoais e sociais, o preceito soberano do “não julgamento” e o relativismo que nos vai afastando da noção de Verdade amolecem o critério e apagam a capacidade de discriminar. Tudo é permitido, o talento de manter relações amistosas com todos é considerado um alto predicado (ouvi repetidas vezes adolescentes e adultos descreverem a sua maior qualidade como a de serem “amigos do amigo”), a ideia de igualdade vai engolfando a noção de mérito, omitindo os níveis e as diferenças qualitativas entre as pessoas. Tornámo-nos diplomatas eméritos, com um vocabulário cada vez mais reduzido, em virtude das ofensas que as palavras carregam, e sumamente hábeis na troca de favores.

Não sei qual terá sido a primeira palavra que disse, quando comecei a falar, mas sei que fui desde cedo obstinada nos “nãos”. Com tantos a defenderem laxismos, a condenarem o que quer que entendam como manifestação de negativismo, intolerância, preconceito ou discurso de ódio, comecei a convencer-me de que devia juntar-me às turbas no afago infantilizante da autoestima geral. Devia ser uma pessoa melhor, trabalhar o sorriso postiço, a minha limitada capacidade de perdão e acreditar nas boas intenções de todos, abafando os sinais da inteligência e os clamores da sensibilidade. As palavras querem-se de simpatia e mal de mim ferir suscetibilidades ou sugerir a alguém que esteja abaixo da fasquia.

É fácil ceder a baixá-la, quando é isso que nos traz recompensas e um sentimento de pertença. É fácil ceder à ilusão de que tudo se resolve com a comunicação e uma tolerância maior – de que as diferenças se resumem a diferenças de pontos de vista, como se as divergências de opinião estivessem desligadas do desenvolvimento de consciência. É fácil acreditar quando nos ensinam que o mundo não é a preto e branco, mas uma grande área cinzenta. Quanto a mim, é o cinzento que nos oprime.

Por entre estas cogitações, ocorreu uma pequena revelação, contraintuitiva, enquanto esgarafunchava em busca de uma qualquer vocação que se tivesse revelado em criança, quando dizem que nascem as vocações: estou aqui para dizer “não”. Sem que se ilumine de imediato uma profissão em que me paguem para tal, tenho pelo menos o consolo de estar de acordo comigo mesma e de conciliar as divisões internas, feitas de vozes que teimam em ditar-me o ponto da consciência, que ainda resiste à sedução de facilitar e baixar a fasquia.

Se, como muitos gostam de argumentar em momentos de aperto, ninguém é perfeito, não é por isso que o compromisso com a perfeição deva deixar de existir – entre a exigência e a complacência, mil vezes a primeira.

 

Wind extinguishes a candle and energizes fire. (...)

You want to be the fire and wish for the wind.

Nassim Nicholas Taleb

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

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