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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

24
Nov23

Maçã cozida

Sónia Quental

Não sentia o amor à minha volta. Não o cheirava. Não lhe conhecia os passos no escuro. O mais perto disso era a maçã cozida que me levavam à cama quando estava doente, por isso gostava de estar doente, exceto pelo arroz branco. Não me importava de ter febre. Também podia fazer palavras cruzadas e descansar de ser adulta.

Pensei que talvez fosse a luz de presença no corredor. Acreditei que o amor podia muito bem ser o Pai Natal, que aparecia uma vez por ano, até decidir apanhá-lo no ato (e não era). O mais próximo que cheguei de tirar a sorte ao amor foi com os brindes do bolo-rei. Até que o bolo-rei deixou de ter brinde e só trazia a fava.

Momentos houve em que achei que o amor era aquele que ficava com o pescoço e as asas do frango e nos deixava a carne tenra. Mas, quando o procurava, tinha a cabeça enfiada no jornal ou o comando da TV na mão. Mandava-me calar. Era um amor que não me olhava nem ouvia, exceto quando eu chorava, o que não podia, especialmente à mesa, onde o amor era uma côdea em que ninguém pegava. A digestão em família não podia ser perturbada nem a solenidade de quem tinha a garganta fechada. A minha também ficou, mas foi com as lágrimas entaladas.

Animei-me quando julguei que o amor era chá de menta, porque só lhe conhecia os picos e a expetoração. Pensei ter encontrado a fórmula, mas não. Era mais como um bolo de arroz seco, que se esfarelava e só deixava migalhas.

Eu cá gostava de chantilly e morangos. Eram assim os meus bolos de aniversário, vermelhos e brancos, de um requinte que só eu via. Talvez tenha sido a associação que me fez mais tarde pensar que, se eu fosse uma sobremesa, seria um cheesecake. É óbvio que pelo amor. E porque a base de bolacha era sólida. Não se desfazia!

O primeiro bolo que fiz para o amor era de iogurte, mas ele preferia o de natas. Nunca achei a receita certa, não por falta de tentativa. Estou cansada de cozinhar. Prefiro a maçã cozida.

 

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Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

14
Nov23

Silêncio que é chumbo

Sónia Quental

Foi a saudosa coleção da Formiguinha que em criança me introduziu ao património da literatura tradicional. Os contos terminavam com uma lição de moral, e uma das que se me cristalizaram na memória dizia que “A palavra é de prata, o silêncio é de ouro”, oferecendo-se como um mistério a desvendar, coberta do pó luzidio desses metais preciosos.

No meu mundo habitual, nem a palavra era de prata nem o silêncio de ouro. A palavra era uma excreção que servia para agredir ou confundir, enquanto o silêncio funcionava ora como castigo ora como solvente, que a mão do Esquecimento manejava para diluir a verdade. Quando não cooperava com ele, era lembrada dos meus fundamentais egoísmo e ingratidão, e da fórmula 70x7 do perdão. À época, não me deixavam usar máquina de calcular na escola, mas eu era boa aluna, tinha copiado muitas vezes a tabuada e sabia fazer a conta de cabeça. Tinha noção de que o resultado era um número de grandeza desproporcionada, cuja exatidão me intrigava, mas nem as homilias de domingo me desfaziam a relutância.

Quando se nasce das entranhas de um dos mamíferos do demónio, tem-se a oportunidade de examiná-las de perto. Leva-se para a vida, misturado com o enxoval, um estojo completo de alquimia, com pedaços de chumbo como matéria-prima. O pedregulho do silêncio também ia lá dentro, suplicando-me amizade regeneradora.

Só que os meus olhos já eram míopes e estrábicos – o preço que tinha tido a pagar por não dar tréguas ao silêncio, não deixar o rei desfilar em paz na sua nudez impostora. Também conhecia essa história, não dos livros da Formiguinha, mas de leituras outras, que me tinham familiarizado com os sacrifícios que a virtude pedia. Cabia-me conquistar as suas recompensas incertas, polir o metal baço da palavra e do silêncio, que me tinham ficado presos na garganta, para encontrar os seus quiméricos tesouros.

E polir é o que tenho feito, mesmo quando as mãos não querem. É o meu fardo, a parte do mistério que me coube, a faina de desfazer o Mal milímetro a milímetro num silêncio que pulsa e se desdobra num luminescente infinito.

 

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Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

01
Jun23

Quero um amor com fios

Sónia Quental

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I, too, had the natural impulse to want to be seen, to want to meet some other human being in this damn life, full of gains, and idiocy, and superficiality, and insanity - to meet another human being in the Deepest. What greater blessing is there than that? Not for self, but for Love.

Kavi Jezzie Hockaday

           

Quero um amor analógico, revelado com paciência na câmara escura do coração. Nada de imagens instantâneas, que aparecem no momento, e da gratificação fácil, enganosa que dão.

Quero um amor com fios onde o wireless reina supremo. Um amor como as cassetes, que é preciso virar para ouvir o lado B, cuja fita se embaraça e pede destrinça. Quero um amor denso, que se possa ver e tocar, com episódios semanais por que é preciso esperar – não dessas séries que se vê de uma assentada, em maratonas de madrugada e de fim de semana, e que se esquece logo que acabam.

Quero um amor apurado, que não seja mera fast food; um amor que leve o seu tempo a cozinhar, com ingredientes exóticos e simples, misturados a olho por uma mão que conhece. Um amor que venha com brinde e lance pega-monstros comigo.

         Quero um amor novo, não em segunda mão, comprado na Zara ou made in China. Quero um amor digno, roupa de cerimónia que se veste todos os dias, que não tenha de guardar para a missa de domingo. Quero um amor que persista. Um amor vintage, que não saia de moda e a que possa sempre voltar, a peça básica sem a qual nenhuma funciona.

Quero um amor que não precise de lançar cartas para adivinhar sortes nem desfolhar malmequeres. Um amor de criança, eterno e inocente, que me estale na boca, como as Peta Zetas das tardes em que o tempo não se movia.

Um cubo mágico, com a dose certa de desafio, mas que sempre se refaça depois do desalinho. Um amor que aperte uma pestana nos dedos e peça o mesmo desejo de olhos fechados.

Quero um amor peregrino, assombrado pelas mesmas perguntas que eu, que acerte o passo comigo e ouça o silêncio comigo. Que me lave os pés e eu a ele. Talvez seja inveja de quem teve um Tamagotchi, mas quero um amor de que possa cuidar.

Quero um amor que me leia em braille e conheça as linhas com que me coso. Só lhe vou pedir que me passe a ferro. 

 

Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

23
Mai23

40 anos no deserto

Sónia Quental

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Fotografia de © Richard Barman (@richardbarman), publicada com autorização do autor.

 

The poem or painting were exorcisms, spells against the desert.

Octavio Paz

 

Diz-se que, da cabeça até ao umbigo, o corpo de Lilith é o de uma bela mulher; porém, do umbigo para baixo, ela é um fogo abrasador.

Barbara Black Koltuv

 

    

Não era a mulher quem arrastava o desconforto pelo aeroporto, mas a criança no pânico de se perder e não encontrar o caminho de volta. A mesma que teve de aprender a ir para a escola sozinha e ficou congelada no trauma.

Os dedos sujos de chocolate, bate a culpa por beber mais uma Coca-cola. Penso nos gurus da alimentação saudável que estarei a ofender, no que comi de mais, se gastei em excesso, se o entusiasmo me faltou, na busca incessante da medida certa, tal o hábito de me achar de um lado ou do outro da balança.

Devo ter estado lá, no momento do pecado original, porque é essa a culpa que me persegue, até nos aeroportos. Tento despistá-la no labirinto de corredores, deixá-la para trás no controlo de segurança. Mas a culpa não é líquida, antes sólida, cheia de grelo, como as cebolas, e com o mesmo cheiro a enxofre.

Hoje estou no meio; não o meio do equilíbrio, mas de um lugar de passagem, 40 anos volvidos do começo. Aceito com relutância os 41 e a contrariedade de me achar mortal. Há quem chame “não lugares” aos aeroportos – não conhece outra coisa quem habita um não lugar persistente e atravessa os dias no rasto de quimeras. Aqui, o deserto é apenas mais óbvio, mas nem só antro de demónios. Quando vejo, são as bênçãos que assaltam. É por isso que evito o jejum: para não ceder à tentação.

Ouvir a língua nativa é o primeiro sinal de casa. Gostava de ter a simpatia imaculada dos hospedeiros e de encontrar no deserto a fonte do amor, mesmo que as águas do destino sejam turvas.

Tenho sede, dispo-me sem que percebam. Pode ser que a chuva venha.

 

 

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