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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

22
Ago23

Vigilantes

Sónia Quental

 

Beauty needs a witness.

Zan Perrion

 

O animus é uma cor primária na paleta da psique feminina. 

Clarissa Pinkola Estés

 

 

Noto, em retrospetiva, as figuras vigilantes que atravessaram a minha vida adulta, velando discretamente por mim. Não falo de anjos, mas de homens. Conheço alguns, que são ou foram amigos; outros frequentam apenas os mesmos espaços que eu, vigiando à distância, desconhecendo talvez que a mulher é sensível ao seu radar.

Invade-me um misto de sentimentos: de um lado, a comoção, contrastando com o desgosto do desabrigo que conheci pela mão de outras presenças masculinas, começando pela que me ensinou a correr antes de me mostrar como caminhar.

Anjo a cores (3).jpg

Quando me fiz a esse caminho aos tropeços, com pernas maiores do que eu, houve sempre algum vigilante que ajudou a aplanar o piso ou pegou por momentos na minha bagagem, fosse dando-me boleias porque não tinha carro, cedendo o ombro escorreito da amizade, dividindo inquietações existenciais ou os passos da busca da transcendência. Com uma atitude protetora e uma lealdade inabalável, que, com o respeito pelos limites da vida íntima de cada um, me faziam preferir a sua companhia à das mulheres, eram geralmente mais calados e contidos, diziam a verdade e sabiam guardar segredos.

Descobri que eu era o segredo que precisava que guardassem, enquanto me ocupava de o conhecer. Precisava do seu desvelo à minha volta enquanto mergulhava no profundo – dos seus braços sólidos e capazes para me puxarem à superfície quando me esquecia de respirar. Precisei da sua estrutura para descobrir a sacralidade da beleza e dar-lhe a forma que lhe permitisse ser vista. Socorri-me dos seus olhos quando não me via, do seu valor para achar o meu.

No zelo pela minha integridade física, sei-os protetores da inocência que não quero perder, porque a perda seria também sua. Testemunhas e custódios do esplendor, são a retorta que a redenção procura, no seu estado líquido ou ígneo. Quem lhes conhece a força não vê a fragilidade estoica que ocultam. É em nós, mulheres, que a protegem, à custa dos corações tantas vezes dilacerados.

 

 

Recorte de fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

10
Jun23

Isso que existe

Sónia Quental

No labirinto.jpg

Assim como a subida da maré levanta todos os navios, o resplendor do amor incondicional num coração humano eleva toda a vida.

 Fran Grace

 

All the love and affection and kindness that came from Maharajji – you cannot get these from man.

 Ram Dass

 

 

O olhar de mais puro amor que alguma vez presenciei foi entre uma monja e uma criança. Parei a contemplar a cena com um pudor maldisfarçado, naquele princípio de noite em que as velas ainda não ardiam no Santuário de Fátima.

Ali estava, antes da procissão, como noutras ocasiões em que fui a Fátima, sem conseguir sentir qualquer beatitude ou atmosfera que sublimasse o lugar, além da miséria das pessoas em súplica ou do castigo de quem cumpre promessa. Chagava-me a exploração comercial dos peregrinos, sugados até ao tutano pela mais mísera refeição que tomassem, sem que a sua verdadeira fome fosse saciada. A missa a que numa dessas manhãs assisti pôs à prova o que me restava de candura: como é possível celebrar-se a fé com tamanho artificialismo e ostentação?...

A monja do olhar amoroso não era uma monja qualquer, mas essa é outra história. Naquele momento, trouxe-me à lembrança o documentário sobre Sri Prem Baba, Isso Existe, que traduz no título o arrebatamento de quando conheceu o seu mestre e sentiu o amor que dele irradiava. Outros, como Ram Dass, deram testemunhos semelhantes.

Naquela noite de maio, que à memória parece ter sido fresca, percebi que não era preciso viajar à Índia nem a lugares remotos para se achar raridades. Elas encontram-se no lusco-fusco do comum; dão-se a quem se dispõe a cruzar o umbral. Podíamos encontrá-las ao nosso lado, não nos achássemos pequenos em demasia.

Uns, ocupados com o corre-corre mundano, não aspiram a mais e, mesmo quando inclinados para a religiosidade, repetem litanias por tradição ou sentido de obrigação; os aflitos dividem-se entre as velhas e as novas igrejas, estas com rituais mais emancipados, mas continuando a falhar as promessas aos crentes. São poucos os que buscam – sabe-se que ainda menos os que encontram e realizam. Trancados na separação que trazemos no corpo, não queremos largar, embora, no fundo de nós, mesmo não lhe chamando Deus, algo se lembre e clame por aquele Amor que vi em Fátima, amor que salva e descansa.

É “isso” que procuramos sem saber, por vielas tortuosas e esconsas, crianças perdidas à espera que Ele nos reconheça e nos dê a graça do Seu olhar, contritas das nossas feições desfiguradas tanto tempo depois da Perfeição.

Fátima - Francisco Amaral (6).jpg

 

Fotografias: © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

01
Jun23

Quero um amor com fios

Sónia Quental

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I, too, had the natural impulse to want to be seen, to want to meet some other human being in this damn life, full of gains, and idiocy, and superficiality, and insanity - to meet another human being in the Deepest. What greater blessing is there than that? Not for self, but for Love.

Kavi Jezzie Hockaday

           

Quero um amor analógico, revelado com paciência na câmara escura do coração. Nada de imagens instantâneas, que aparecem no momento, e da gratificação fácil, enganosa que dão.

Quero um amor com fios onde o wireless reina supremo. Um amor como as cassetes, que é preciso virar para ouvir o lado B, cuja fita se embaraça e pede destrinça. Quero um amor denso, que se possa ver e tocar, com episódios semanais por que é preciso esperar – não dessas séries que se vê de uma assentada, em maratonas de madrugada e de fim de semana, e que se esquece logo que acabam.

Quero um amor apurado, que não seja mera fast food; um amor que leve o seu tempo a cozinhar, com ingredientes exóticos e simples, misturados a olho por uma mão que conhece. Um amor que venha com brinde e lance pega-monstros comigo.

         Quero um amor novo, não em segunda mão, comprado na Zara ou made in China. Quero um amor digno, roupa de cerimónia que se veste todos os dias, que não tenha de guardar para a missa de domingo. Quero um amor que persista. Um amor vintage, que não saia de moda e a que possa sempre voltar, a peça básica sem a qual nenhuma funciona.

Quero um amor que não precise de lançar cartas para adivinhar sortes nem desfolhar malmequeres. Um amor de criança, eterno e inocente, que me estale na boca, como as Peta Zetas das tardes em que o tempo não se movia.

Um cubo mágico, com a dose certa de desafio, mas que sempre se refaça depois do desalinho. Um amor que aperte uma pestana nos dedos e peça o mesmo desejo de olhos fechados.

Quero um amor peregrino, assombrado pelas mesmas perguntas que eu, que acerte o passo comigo e ouça o silêncio comigo. Que me lave os pés e eu a ele. Talvez seja inveja de quem teve um Tamagotchi, mas quero um amor de que possa cuidar.

Quero um amor que me leia em braille e conheça as linhas com que me coso. Só lhe vou pedir que me passe a ferro. 

 

Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0