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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

18
Nov24

Desconfiança cega

Sónia Quental

       

         Nunca esquecerei o dia em que fui chamada ao gabinete de Deus. Trabalhava há anos naquele centro de formação e só lhe tinha visto a sombra em ocasiões raras, muito à distância, o que alimentava a minha natural descrença na sua existência. Quando os meus colegas, educados a andar em bicos de pés graças a um temor sedimentado ao longo de eras, me diziam que Deus, também conhecido como “o doutor fulano de tal”, tinha mandado fazer isto ou aquilo, inclinava-me a achar que era mito, uma desculpa conveniente para mandos absolutistas, de origem incerta. Mas um dia, como contei, fui convocada a um gabinete, nada menos que instalado no cimo de uma torre, por esse ser que julguei que estivesse ainda menos ciente da minha existência do que eu da sua. Foi o dia em que aprendi que Deus sabe mesmo tudo, até sobre quem tenta cobrir-se com um manto de invisibilidade, e que os meus cabelos estavam lá, naquele gabinete cinzento, contados e medidos ao milímetro.

         Mesmo sentada, a figura de Deus era imponente e percebi que estava habituada a incutir um medo paralisante nos súbditos, medo indutor de respostas aleatórias e de uma boa dose daquela untura que dá brilho aos sapatos. Lá medo tinha eu, perscrutada de lés a lés por aquele olhar cortante, que parecia acusar-me de crimes que não me lembrava de ter cometido. Fiz logo ali uma recapitulação de vida, que podia muito bem estar nos seus momentos finais: terá sido aquela vez em que comi um bolinho de bacalhau antes do almoço e neguei o crime para escapar ao castigo? Ou quando cometi um erro num ditado, que estragava os 20 valores da prova global, e tentei disfarçá-lo com a borracha de apagar tinta, apenas para a professora soltar a régua raivosa no meu rabo virgem de aluna bem-comportada?... Tinha sido castigada por todos eles, por isso tentava freneticamente lembrar-me dos crimes sem castigo, que tivesse sido chamada a expiar. Sem saber, cometi ali mesmo mais um: a candura de responder com honestidade às perguntas de Deus, que, depois dos primeiros momentos de desorientação, ficou desarmado e acredito que tenha aderido à minha curta lista de fãs. Isto apesar de a recomendação que tinha para me dar ser a de usar de menos honestidade nos formulários de avaliação dos módulos.

Fundo branco.jpg         No entanto, não foi para falar da ética duvidosa de Deus nem para invocar o seu nome em vão que fui buscar este episódio ao meu baú de tesourinhos pavorosos, mas porque aquele demiurgo omnisciente e omnipotente foi a primeira criatura em quem percebi uma desconfiança esquizofrénica, apontada como laser a tudo e todos, sem a mediação do discernimento e com o poder formidável de fazer despontar nos inocentes a culpa daninha do pecado original. O desconforto de quem ocupava o outro lado da secretária não vinha de sabermos que estávamos em desvantagem numa cadeia alimentar bem armada nem de termos aprendido na catequese que era preciso regar a semente do temor a Deus: vinha da vara glacial da desconfiança, capaz de uma ação tão devastadora quanto a mais ardente confiança.

         Depois de Deus, conheci outras entidades semelhantes, e o ambiente de tensão que produziam não sofria alterações climáticas. A causa para esta doença da desconfiança não estava na falta de contacto humano ou de à-vontade social, na falta de espiões que montassem uma rede pragmática de omnipresença e nem sequer na falta de experiência: estava na escassez de uma inteligência que o atributo “emocional” só de forma imperfeita traduz. Era a falta de saber aprender com a experiência, a falta de cultivo desse discernimento que conquistou a má fama de “julgamento”: em suma, a falta de conhecimento da natureza humana. E, ironicamente, era a estratégia de compensação suprema para uma credulidade ou confiança cega inicial que, recusando encarar as trevas que envolvem o coração e as motivações humanas, escolhe o amparo inabalável da desconfiança – sem abdicar da cegueira. A segunda ironia é que a desconfiança cega tende a ser daquelas profecias autoconcretizáveis que têm a fortuna perversa de desencadear nas presas que escolhe os comportamentos mesmos de que busca defender-se, por pias que sejam as suas intenções.

         Como moeda, a desconfiança vem sendo inflacionada pelo assédio dos perigos que aumentam à nossa volta, de que circulam histórias do mais puro terror. É fácil sermos empurrados para o cérebro reptiliano, ficarmos obcecados com a segurança e absortos na velha luta pela sobrevivência, que nos acena com ferramentas tecnológicas e de vigilância e com as mais mirabolantes “literacias”, que não passam de parentes pobres de uma sabedoria ancestral que se perdeu. Os anciãos de outrora, que envergavam cajados literais e simbólicos, foram substituídos pelos especialistas, que com a sua aura de legitimação nos pedem o resto de cérebro que ainda não foi colonizado ou vendido a um life coach de 25 anos.

         Não querendo dar uma de Poliana, também não estou a fim de viver trancada numa torre de desconfiança que me obrigue a dar trinta voltas à chave de cada vez que queira pôr o pé de fora, a instalar câmaras de segurança, receber visitas de caçadeira na mão e sujeitá-las a um interrogatório com laivos de tortura, confissões assinadas através da coação. Nem quero ser Deus nem quero que ele seja meu fã. O filho dele dizia para sermos serpentes e pombas ao mesmo tempo. Pode ser perrice minha, mas nunca gostei de nenhuma, e esta história do hibridismo… cruzes, canhoto!

 

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

23
Jun24

São baratas, senhor!

Sónia Quental

           

Não é preciso ser-se entendido em culinária para se saber que nem todas as batatas casam com todos os nabos. Tendo padecido do afã que muitos sentem em reunir a maior diversidade de vegetais para tornar a sopa mais nutritiva, a dado passo fizeram-me notar que ficava descaracterizada. Falava-se literalmente de sopa, mas, sabendo agora como a culinária se presta às mais ricas metáforas, não deixo que se percam por desatenção.

E quem diz “sopa” podia dizer “salada”. Há alimentos que não convém misturar, porque fermentam e são nocivos para o organismo. Não obstante, não só tentam acenar-nos com a ideia de que, quanto mais variados os ingredientes adicionados à salada, melhor, como insistem em que não há fruta podre – se houver, a culpa é do caixote em que não foi devidamente aclimatada. Com jeitinho, a culpa se calhar até é minha. Sou assim animada a contrariar as evidências dos sentidos, incluindo o mau cheiro do pomo, o bolor que o devora, a minhoquinha embutida, dedicada às lides da mineração. Apontar semelhantes indícios é agir de má-fé, motivada por preconceito xenófobo ou racista, e incorrer em discurso de ódio contra a manga que vem de avião.

É assim que, ensinados a ignorar o óbvio e a atribuí-lo aos delírios da imaginação, quando não à perfídia dos instintos, acolhemos de braços abertos o exotismo vegetal, num caos que não é estranho ao nosso mosaico humano crescentemente eclético, zeloso do mito do bom selvagem. Catequizados que somos a não fazer julgamentos, temos como pobres vítimas os assaltantes e agressores que montam operações aqui na zona, mais sujeitos, nós, a receber uma qualquer acusação de crime de ódio – ofensa capital –, que logo nos encosta à extrema-direita, remédio santo para calar as mentes teimosamente fechadas à diversidade.

A quem não gosta de julgar pelas aparências, aconselho a que se guie pelo cheiro: esse, como o algodão, não engana. Foi pelo cheiro que um grupo de indivíduos de determinada nacionalidade montou arraial aqui no prédio: primeiro, era o odor corporal dos próprios, que tornava a partilha do elevador experiência penosa. Depois, o cheiro intenso da comida que cozinham às 4h e 5h da tarde e que se foi alastrando do último andar para baixo, invadindo o interior dos outros apartamentos. As visitantes mais recentes foram as baratas, que, quando fui pesquisar à internet, descobri serem um inseto cosmopolita, o que me causou uma certa inveja.

São dez pessoas ao monte, ou quase, num T1 transformado em chiqueiro, no meio das baratas que devem ter domesticado e que agora marcham sem cerimónia pelos restantes andares, no seu garbo conquistador, mais velozes ainda do que o cheiro. Não há rainha, santa ou não, que venha e se atreva a dizer: “São rosas, senhor, são rosas!”. Não, nem rosas nem flor que se cheire: são mesmo baratas. Eu cá já sonho com elas, enquanto me fustigo pelo anseio retrógrado de habitar em ambientes salubres, à cata da semente de ódio que há em mim, real fonte de infestação.

Um consolo me resta quando for sitiada: a sofisticação de viver num prédio multicultural.

One professor of race relations, Bikhu Parekh, has even suggested that Britain should change its name, which has so many negative historical connotations for millions around the world. Now that Britain has become so ineradicably multicultural, he says, there is no justification for it to be ‘British’ any more.

Theodore Dalrymple

 

24
Set23

O Olho que tudo vê

Sónia Quental

 

No entanto, a cultura atual funciona em bases diametralmente opostas, nas quais o exibicionismo vulgar, a perda da intimidade e a consequente destruição da profundidade estão na ordem do dia.

Maurício Righi

 

A consciência cósmica é substituída pela vigilância social, a percepção do absoluto, pela acrobacia cerebral. Daí resulta uma desidratação progressiva da alma, uma penúria espiritual mais apavorante que a fome.

Arthur Koestler

 

 

 

A pornografia da arte a propósito da remoção de estátuas e a evocação da exposição pretérita Noites Brancas, de Julião Sarmento, coroando a notícia recente do Happiness Camp aqui próximo. A reedição providencial da Beleza de Roger Scruton. Estudos que me permitem continuar a debruçar sobre o masculino e o feminino, interrompidos pela notícia de que quase um terço dos norte-americanos com menos de 30 anos seria a favor da instalação de câmaras dentro de casa.

Se em tempos não acreditava no acaso, hoje já não sei, mas isso não impede que me proponha o desafio de unir as notas aparentemente soltas das últimas semanas e de tentar dar-lhes coerência ou descortinar as relações possíveis entre elas.

Incumbiram-me, em 2012, de levar turmas em visita a uma exposição patente em Serralves: Noites Brancas, de Julião Sarmento, um artista de quem nada sabia e de quem preferiria nada ter ficado a saber. Expor adolescentes à crueldade mórbida e à obscenidade daquela “arte”, por mando de quem vê em toda a cultura instrução vantajosa, foi tarefa aflitiva, que não tentei explicar aos alunos, porque não havia como. Apesar de pouco conhecedora das artes plásticas, diviso nelas a mesma tendência da literatura deste início de século, sobretudo a poesia, que se cose de vísceras e do lado mais pútrido da matéria, no rebaixamento do humano à sua dimensão animal, acometida do desejo gratuito de chocar. No entanto, é esta que merece consagração e que não se pensa em remover da vista pública. Como acusa Zan Perrion, “The symptom of the modern times is that we've turned our face away (...) from beauty. And we celebrate ugliness”.

Não foi apenas o sentido estético que se inverteu, mas a importância que se lhe dá, aventuro que pela relação que a Beleza tem com o transcendente, que, se ainda se inscreve na cultura, é como tradição morta ou fantasia New Age. O questionamento existencial foi substituído pela exploração macabra do excremencial e pelo livre curso dado às ambições demiúrgicas do indivíduo, que não se coíbe de patentear urinóis artísticos e Frankensteins humanos.

 

É possível caracterizar a recaída geral de nossa cultura, rumo à contemplação de formas e conteúdos crescentemente dionisíacos, como uma consagração filosófico-estética de ‘princípios desumanos’. Nesse sentido, o movimento das artes plásticas, em sua depravada hostilidade contra o belo, surge como paradigma dessa degradação.

Maurício Righi

 

       Depois do ataque ao sexo masculino, é a vez de a mulher, representante da Beleza e do Mistério, ser anulada enquanto tal e na nudez que a revela mulher – a menos que seja o tipo de nudez que lhe expõe os fluidos e a decadência da carne.

 

Percebe-se (…) uma rendição incondicional ao biológico em sua faceta decadente e fragmentária, uma vez que o biológico tende, em seu processo orgânico, e de forma inexorável, ao desgaste e à decomposição, junto à correspondente perda de unidade orgânica e harmonia estética.

Maurício Righi

 

 

As forças de decomposição da cultura e da arte, a erosão do género e o materialismo tonificam a apoteose pueril do sucesso, do consumo e da felicidade, concorrendo todos para a exteriorização e a superficialidade do pensamento. Aqui se insere também a influência do New Thought, da psicologia positiva, do coaching e dos movimentos sociais da berra, com as suas fórmulas light, visando substituir moral e religiosidade pelo conforto de lemas progressistas, forçando um falso sentido de harmonia e contentamento que tenta iludir a razão, levando-nos finalmente a repetir que 2+2 = 5.

No entanto, “Na falta de eficientes modelos de transcendência, dos quais dependem as felicidades duradouras, a cultura e as pessoas tendem naturalmente ao vazio e, consequentemente, à infelicidade” (Maurício Righi). O mesmo horror ao vazio, a insegurança, a incapacidade de estar só e de cultivar a solidão que faz com que muitos acendam a televisão desde o raiar do dia farão também com que esses, complacentes com as câmaras que crescem como cogumelos fora de casa, também as queiram instalar dentro. As câmaras e a vigilância tornaram-se o Olho desfigurado da transcendência, a relação que subsiste com o Invisível, despido de Mistério e ao serviço da ordem social, que apenas o sacrifício humano pode aplacar.

 

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Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

17
Ago23

Valha-me a meia de leite

Sónia Quental

 

Gnosis is a moving target. Walking its path is a nomadic life. When night falls, you pitch your tent. In the morning, you pack it up, put in on your back and start walking again. Don't pitch it anywhere permanently. Be the infinite explorer.

Neil Kramer

 

 

Ouvi mais de uma vez pessoas que trabalhavam em cafés ou padarias fazerem comentários de desabafo sobre os hábitos dos clientes regulares. Exasperava-as que a mesma pessoa tomasse todos os dias o mesmo pequeno-almoço, a mesma meia de leite com o que quer que fosse a acompanhar, apesar da variedade de opções em oferta. Os motivos não são tão elementares quanto possa pensar-se, embora nem sempre sejam conscientes.

Os hábitos, por mais pequenos que sejam, são âncoras num mundo de incerteza e insegurança. Falando por mim, que convivo há muito com um grau de incógnita robusto: quase sempre, como trabalhadora independente, não me é possível saber se daqui a um mês vou ter trabalho ou ordenado, o que dificulta fazer planos. A ansiedade e o desgaste que esta situação vai naturalmente gerando ao longo dos anos são amplificados pela falta de uma estrutura familiar e afetiva de apoio. Somam-se as mudanças que vêm de fora, da sociedade, e as que irrompem de dentro, ditando-me viragens de rumo que me cabe apenas pôr em marcha. Uma consciência que não vive petrificada exige um sacudir de pele constante, um nunca pousar a cabeça duas vezes no mesmo leito.

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No meio disto, o que me vale é a meia de leite ao pequeno-almoço. Pode não ajudar a tornar mais interessante o dia de quem a serve, mas é das poucas coisas a que ainda me posso agarrar, tirando quando fecharam cafés e postigos. Aí, nem meia de leite havia.        

Acresce que a quantidade não simplifica a escolha. Quando há muito por onde escolher, a confusão é tanta que quase sempre se escolhe errado, a que se segue o arrependimento pela oportunidade perdida de tomar aquilo de que se gosta garantidamente. Alivia ter-se pelo menos uma preferência em que não é preciso pensar, que é imediata e não atraiçoa. Um pequeno prazer certo entre os tantos que falham.

Há ainda o conforto de ir a um estabelecimento onde se é conhecido. Ter alguém que sabe o que queremos e como gostamos de o tomar, sem ter de perguntar. A comunicação silenciosa e conivente que se estabelece num sítio que não é casa, mas que se torna um pouco mais como casa e que às vezes nos mima com rabanadas fora de época.

Mau grado os argumentos, sei que chegará um dia em que até este apego terei de deixar. Até lá, valha-me a meia de leite.

 

 

Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0