Mudança de estado
A repetição é um dos mecanismos da memória e da aprendizagem. Precisamos de ler, de refletir, de fazer e experimentar para saber. Mas muitas vezes o conhecimento fica-se pelo toldo do pensamento: é um saber que o escape do intelectualismo impede que desça ao corpo. É por isso que podíamos dar palestras e escrever livros sobre assuntos em que investimos a fundo ao longo dos anos sem termos mais do que um conhecimento puramente teórico a respeito deles. É por isso também que nos deparamos tantas vezes com situações já nossas conhecidas, esquinas que dobramos muitas vezes e que achamos saber contornar e desenhar de olhos fechados. Achamos que aprendemos a lição – e até podemos ter aprendido. Mas as imagens do mundo nem sempre acompanham o nosso ritmo, aparecendo às vezes com desfasamento, e ali estamos nós outra vez, a perguntar-nos o que falta aprender, qual é a alínea da sublição que nos escapou das outras mil vezes.
Só que o que falta não é saber: é integrar. Não basta saber com a cabeça: é preciso uma mudança de estado, passar do saber ao ser, que representa o último estágio do conhecimento – aquele que dispensa a ação para criar. É um estado que não obedece de forma linear ao nosso esforço e vontade, encontrando-se fora do alcance de qualquer estratégia. Quando vem, nem sempre é de uma vez só: a instalação é faseada, com avanços e recuos sacudidos por momentos de exaltação e dúvida. Lemos ou ouvimos uma frase conhecida e há um clique que transmite um lampejo de compreensão transformador. Ou cruzamos aquela esquina manhosa e sentimos que ela continua lá, mas nós não. Estamos ali, mas não estamos ali – não da mesma maneira. Agora, o corpo também sabe. Não precisamos de continuar a repetir fórmulas para saber o que fazer. Sabemos responder, momento a momento, a cada esquina que encontramos. Deixamos de analisar se a esquina é a mesma ou se é diferente. A dada altura, elas desaparecem, porque o eixo do mundo mudou. Sempre que mudamos de estado, o mundo começa outra vez.
Balance and strength come from being grounded in reality whilst reaching for the stars.
Amoda Maa
Imagem: baralho Rider-Waite