"Quantum"
Verdadeiramente assustador era o Ministério do Amor. Não tinha nenhuma janela.
George Orwell
Sem saber onde estava e nauseada com os Jingle Bells que embalavam as ruas, escapuliu pela primeira porta que encontrou, num edifício alto e estreito, descaracterizado, com cheiro intenso a cloro. A chapa que coroava o busto bicudo da rececionista dizia “Maria das Dores”, a qual cantarolou em voz de soprano “Piscina de Saltos Quânticos”, novo nome dado à antiga igreja local, recuperada pelo Império. Estendendo à recém-chegada uma taça fit de pernas de gafanhoto caramelizadas em amêndoas e tâmaras, ofereceu-se para a acompanhar numa visita guiada, desculpando-se pela inexperiência de estreante: com a chegada da Simpatia Ecuménica, que exalava de todos os poros, tinha sido dispensada do posto habitual na Feira da Vandoma, uma vez declarada a obsolescência dos julgamentos. Era o seu segundo dia ali.
O serviço era mais parado e, como a menina Ludovina podia constatar, os visitantes eram bastante ecléticos, sendo de notar que uma boa parte ocultava os seus verdadeiros desígnios: havia desde fãs do Elvis, que tentavam provar que ele estava vivo, até extremistas que queriam voltar ao jardim do Paraíso e neutralizar a serpente, mudando o curso de toda a História. Na maioria dos casos, porém, os saltos quânticos não eram usados para qualquer reviravolta pessoal ou projeto de conquista planetária, mas para fins turísticos: viagens no tempo ou escapadinhas interdimensionais, com consequências inócuas, daí que a administração continuasse a encorajá-los.
Talvez ela já tivesse ouvido falar da nova aquisição, dedicada aos saudosistas da religiosidade, muito publicitada nos meios de comunicação social: Deus sed Machina, uma instalação de Jesus alimentada por IA, a quem os visitantes ventilavam as suas agruras e pediam conselhos, respeitando a advertência de anonimizarem os dados pessoais. O realismo da engenhoca holográfica fizera grande sucesso, mas infelizmente encontrava-se interdita para manutenção: os programadores tentavam corrigir o bug que levara Jesus a acusar as pessoas de serem um desperdício de recursos para o planeta, dando-lhes um comando de morte explícito que as fizera precipitar-se para os saltos quânticos, com objetivos menos construtivos. Mas não era caso para preocupação, acrescentou com confiança – o conceito ainda estava na sua fase beta, esse tipo de deslizes já era previsto e seria integrado na resolução de problemas do manual. Em geral, era tudo muito seguro, amigo do utilizador e tinham até nadadores-salvadores na prancha de saltos, prontos a acudir aos desconsolados.
Ao observar as figuras de Speedos que faziam aquecimento junto à piscina, Ludovina não pôde evitar pensar nas NPC: personagens não jogáveis, vazias de recheio e falhas de autonomia, que preenchiam o mundo para o tornar verosímil, limitadas à função que lhes era concedida. Tudo na brancura interior daquelas divisões, de uma verticalidade desviada, parecia um cenário de fazer de conta, ocupado por simulacros de criaturas que a qualquer momento podiam ficar congeladas nos saltos, bastando para isso que alguém premisse “Pause”.