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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

06
Fev25

Confiar ou não confiar

Sónia Quental

Captura de ecrã 2025-02-06 121224.png

Este é daqueles textos que começo a escrever sem título e sem saber como vai acabar. Daqueles que não se aconselham, escritos sob o efeito da emoção e que pertencem à categoria do “desabafo”, que nem sempre me é simpática. Embora quem escreve se submeta a um certo grau de exposição, não tenho os blogues como diários pessoais, em que o autor possa e deva abrir o peito para o mundo e despejar neles toda a espécie de confissões, sob o pretexto do ultraje ou de uma alegada vulnerabilidade, que na maior parte das vezes não passa de emocionalismo fácil. Se há coisa que a internet nos trouxe, foi exposição a mais. Este será, pois, um caso sem exemplo, a que cedo não só para me aliviar de pesos, mas esperando que a reflexão possa servir a alguém mais.

          O advento da internet trouxe, como é sabido, muitas oportunidades de fraude, que, à medida que a tecnologia evolui, se vão tornando também mais sofisticadas. Quem utiliza a rede numa base diária, não só para fins pessoais, mas para trabalhar, expõe-se crescentemente a elas. Por mais informado que esteja em matéria de cibersegurança, ainda há uma possibilidade considerável de ser apanhado numa, devido aos riscos inerentes à comunicação com desconhecidos à distância.

        No trabalho remoto e pontual, em que não conhecemos pessoalmente o empregador ou cliente e não falta oferta de mão de obra, é fácil ser-se descartado: afinal, não passamos de um nome no ecrã, quando muito associado a uma fotografia, que ninguém pode garantir que seja verdadeira, e não há nada que obrigue o cliente além de um contrato precário. Temos nome, mas somos anónimos. É por isso que sinto a maior consideração e estima por aqueles clientes que, ao longo dos anos e mesmo enfrentando adversidades, continuam a voltar, expressando uma lealdade a que nada os obrigava. Num mundo digital onde não há laços duradouros, é extremamente comovedor receber uma mensagem cuidada de Ano Novo, com um bónus, de alguém que escolhe trabalhar comigo há 7 anos e que sei que muitas vezes tem de dispensar pessoas, por falta de qualidade no desempenho – alguém de quem não conheço mais do que a voz. Outros há de quem não conheço a voz nem a fotografia, mas que também voltam, personificando uma humanidade e integridade que se torna tentador pôr em causa com as armadilhas que vão aparecendo por todo o lado, como aquela em que caí esta semana, com prejuízo financeiro para mim.

         Podia fazer como o meu vizinho e passar a dar 20 voltas à chave de cada vez que entro ou saio de casa – a casa física e as outras. Mas, mesmo sabendo que o risco existe, também sei que não posso eliminá-lo por completo, sobretudo se quero receber as suas recompensas. No mundo do trabalho, não é só o trabalhador remoto que corre riscos, mas também os clientes, já que as fraudes existem de ambos os lados e nem sempre alguém que não fala a mesma língua que nós tem condições para avaliar a qualidade do nosso trabalho. É por isso que fico contente quando recebo e me mostro à altura de um voto de confiança. Sinto-me comovida e emocionada quando encontro pessoas que confiam e que não erguem entre nós muros de suspeitas, fazendo-me sentir culpada por crimes que não cometi.

         Hoje, escrevo e choro ao mesmo tempo. Mas amanhã levanto-me outra vez às 6. É o que faz uma mulher.

 

Imagem: baralho Rider-Waite

10
Mai23

Livros que fazem espécie

Sónia Quental

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Não utilizar determinadas palavras é aniquilá-las, expulsá-las da língua.

Manuel Monteiro

 

A transposição da oralidade – propositada, por exemplo, no jornalismo radiofónico e de TV – para uma linguagem escorreita é que, algumas vezes, deixa muito a desejar.

José Mário Costa

         

Foi depois de comprar e começar a ler o livro Dar a Volta ao Texto, de Martim Mariano, que percebi que certas pragas que tanto me enfastiavam na Internet existiam não por mera imitação ou por um qualquer contágio psíquico, mas porque andavam a ser ensinadas. Os vícios da língua e o mal escrever chegaram ao formato de manual, e a voz que o autor deste livro diz tantos anos ter demorado a apurar para tornar sua já a encontrei em muitos outros “profissionais” da escrita que contam como única qualificação a de serem falantes nativos que, em vez de corrigirem deslizes, buscam afirmá-los.

Percebe-se, por isso, que se encontre na obra em questão aberrações como o incentivo a escrever-se como se fala, a escrever para que as pessoas gostem de nós (“É preciso ser agradável e querido para as pessoas que o leem”, afiança o autor ante os meus olhos esbugalhados) e a escancarar as portas da própria existência para se ser lido. Não duvido de que o Big Brother continue a ter audiências, mas sabe-se bem quais são e qual o instinto que as move. A “autenticidade” e “naturalidade” recomendadas por Mariano, a par da tão apregoada “vulnerabilidade”, não implicam a falta de decoro que tantas vezes transpira em quem acha que, para exibir estas qualidades, precisa de expor rotineiramente a vida íntima. Ser-se pessoal ajuda a criar uma identificação com o público e a humanizar quem escreve, mas há um equilíbrio a alcançar. Já para não falar do difícil lugar em que se coloca quem quer ser autêntico e ao mesmo tempo agradar ao público.

A popularidade é um critério que parece ofuscar a qualidade. Não se ensina a escrever para transformar, mas para facilitar. Não para elevar quem lê, mas para lhe passar a mão no pelo. Não para que haja algum mérito em ser-se publicado, mas para mostrar que todos podemos ser escritores, desde que trabalhemos e sangremos muito e que os nossos textos falem ao coração. Sim, é preciso tudo isso para se aprender a escrever como se fala e a cativar os leitores, poupando-os a todos os esforços e aborrecimentos.

Além de o autor não fazer caso das regras do português, sujeita a língua a um jogo de cintura tal que ela vira contorcionista, confirmando o copywriting como a literatura de cordel da era digital. Dividir segmentos de frases com pontos finais, em vez de vírgulas, pode cair bem à primeira, mas a originalidade e a ênfase acabam por se perder à custa da repetição enjoativa: “Deixe que as pessoas percebam essa autenticidade. Essa verdade. Essa transparência”. E motivos para enjoo não faltam nesta obra, cuja leitura tive de interromper várias vezes para me refazer, como é o caso da também repetida expressão de realce “é que”, que deixa de realçar seja o que for. Mesmo. (Assim escreveria o autor.) O abuso de estrangeirismos, os parágrafos com uma frase e as frases monovocabulares, as marcas da oralidade que se tomam como expressivas e naturais, as “clarividências” que o autor não parece saber o que sejam, a menos que tenha alguma queda para o paranormal (o que é provável, tendo em conta o número de vezes que sugere “passar algo para o outro lado”), …

Aliás, por falar em paranormal, não resisto a desvendar o trecho em que este criativo descreve quem faz da escrita vida como alguém “especial”, dotado de missão divina (incluindo-se, por extensão, no grupo). Por momentos, vi-me transportada para o cabeleireiro, onde me distraio com a Maria e chego a ler o horóscopo enquanto me massajam o couro cabeludo. O próprio Mariano, a páginas tantas, confessa: “Sempre que vou a casa dos meus sogros leio todas as revistas cor-de-rosa que lá estão. E o Correio da Manhã.”

           Feitas as contas, acabei por perder com esta recente aquisição “literária” mais tempo do que gostaria e por lhe dar à cama um lugar que não merecia (maldita rima). É um livro que ensina a fazer dos vícios virtudes.

Passo a passo.

A capa e a contracapa são bonitas. Ao texto, não há volta a dar.

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