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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

11
Jul24

Olhar para o teto

Sónia Quental

 

Antes de existirem os ecrãs, olhávamos para o teto. Isto é, já tínhamos um protótipo de ecrã para estabelecer contacto à distância e dizer “Estou a olhar para o teto”. Nesses tempos, ainda não se falava de mindfulness, não sabíamos nada de meditação. O mais que podíamos fazer nas noites de insónia, além de olhar para o teto, era olhar para a lua ou tentar adivinhar que música ia passar na rádio, numa altura em que ainda não tínhamos sido expropriados dos poderes telepáticos, que funcionavam com uma eficácia acima da média – um indício de que talvez pudéssemos vergar o futuro, embora o presente fosse mais difícil de deslocar.

A ideia de uma tão grande tela em branco, como o teto ou o futuro, assustava o nosso despreparo, mas merecia ser contemplada, não fosse apanhar-nos de surpresa enquanto fazíamos de conta que a vida era sempre em frente e que bastava acertar num curso com saída para se apanhar a via rápida. Literatura, filosofia, teologia, artes não faziam parte da lista.

A nossa era uma terra pequena – nós habituados a caminhar carregando orbes debaixo do sol. Conhecíamos os caminhos difíceis, embora não tão difíceis quanto os das gerações anteriores, que faziam questão de nos lembrar os seus pés descalços na neve e o leite que vinha da ordenha quando eram magras as vacas. Ainda havia férias grandes, momentos parados em que a vida nos obrigava a pensar nela, a procurar palavras que captassem as nuances de uma angústia existencial em que alguns ficaram a morar para sempre: presos no teto, onde ainda flutuam.

Iniciados na poesia, era incompreensível a pressão e a expetativa de quem nos queria ver simplesmente funcionais na sociedade, sem destoar demasiado, a não ser pelo lustro ou um lugar de influência. O sustento assegurado. Tanto martelaram que houve quem encaixasse por fora, mas ficasse perdido por dentro, eterno Peter Pan que não encontra saída da Terra do Nunca.

Olhando hoje ao redor, com a escalada da violência e a fragilidade quebradiça da saúde mental, oferecem-se-me duas explicações: é de quem nunca olhou para o teto ou nunca saiu de lá, rodopiando à toa na Terra do Nunca, os olhos fechados em caixão de vidro. Um beijo que nunca chega de fora.

 

07
Mai24

A casa do silêncio

Sónia Quental

In school they taught you to be extroverted, to have an outgoing personality. Well what has it done for you? It made us all into a bunch of idiots.

 

Robert Adams, in Silence of the Heart

 

 

           Não sei como a notícia atravessou as paredes, mas a insipidez da aula foi sacudida pelo rumor de que Mia Couto estava no anfiteatro a fazer a apresentação de um livro. Não querendo perder a oportunidade, pedimos licença para sair. Apesar de o evento se aproximar do final, seguia-se a sessão de autógrafos com o autor e a ilustradora da obra infantil que motivara o encontro. Daí resultou nova corrida à livraria da faculdade para a comprar a tempo de conseguirmos a assinatura daquela vedeta literária, mesmo que o livro fosse para crianças.

Mia Couto, percebi-o de forma tangível nos breves instantes em que o vi ao vivo, além daqueles em que o ouvi através de um ecrã e das páginas em que o li, é daqueles escritores em que o homem está presente na obra. Consegue-se palpar a sua falta de à-vontade com o público e o silêncio que se desprende dele, marca de uma profundidade habitada. Porque as pessoas silenciosas não são apenas silenciosas quando não falam: são-no também quando falam, puxando-nos irresistivelmente para a dimensão em que residem. É por isso que quem ouço mais alto num grupo são os silenciosos, os que passam quase sempre despercebidos aos demais.

Voltando ao escritor, as marcas do caráter nem o silêncio as apaga. Reparando, constrangido, que as pessoas na fila lhe pediam o autógrafo apenas a ele, virando costas à ilustradora (Danuta Wojciechowska), ouvi-o dizer a quem estava à minha frente, em voz baixa, mas firme, que não se esquecesse dela. Mais do que o livro e o autógrafo, foi esse o tesouro que trouxe comigo nesse dia.

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Admiro pouco os homens que não tomam conta da obra que deixam, tendo a impressão de serem cada vez mais raros aqueles que estão à altura dela, mesmo quando lhe é atribuído um justo valor. Refiro-me concretamente às obras literárias, em que a destreza verbal dos autores se vai afastando de uma sabedoria construída com labor ao longo da vida e que chapinha na piscina para os mais pequenos: a água é quente, mas chega só até aos joelhos. É por isso que jamais serei capaz de olhar para Fernando Pessoa como mais do que um ébrio enfezado, que não se alçou à altura do que produziu através da sua despersonalização e cujo silêncio estava cheio de barulho.

É para esse barulho que insistem em chamar-me, supondo que o seu é canto de sereia a que vou fazer render o silêncio. Uma e outra vez constato: a solidão e o silêncio incomodam. Por algum motivo insondável, quem leva uma vida de bulício acha que todos teríamos a ganhar por nos juntarmos à farra. E agridem com as boas intenções com que tentam demover-nos da quietude e seduzir-nos à frivolidade.

Quanto a mim, o silêncio é uma casa que prefiro imaculada. Ausento-me pouco. Recebo visitas.

 

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