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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

13
Mar24

Domingo, manhãs

Sónia Quental

Saio nas manhãs de domingo à hora a que apenas os turistas japoneses cobrem de flashes a Capela das Almas. Nesse momento de transição, em que a luz e a sombra dão de ombros uma com a outra, a coexistência de fenómenos contrários está em evidência.

Ao lado da loja de manutenção de bicicletas, onde um grupo de ciclistas dispostos marca encontro todas as semanas, emerge de uma cave um bando de vampiros, sofrendo as dores do alvorecer com um montinho de erva na mão, que deduzo não será incenso nem mirra, contemplando-o como que esperando que a luz do dia também o ponha a fumegar. Não fico para ver, embora note que a indumentária daquelas que já não posso jurar serem do sexo feminino deixa pouco à imaginação.

O Facebook avisa-me que é dia de eleições. No Twitter (X), alguém brada que as mulheres não são nada sem a vocação da maternidade. Quase me engasgo com a torrada, mas consigo reunir forças para lhe enviar à distância a minha tísica compaixão maternal. Atravessa-me o pensamento a experiência do horrendo e do sublime no baile de domingo passado, sem saber o que esperar deste. Ao passo que o sublime é fugaz, o horrendo tem o hábito de se pegar, por mais que o sacuda.

Pelo caminho, a memória da semana traz-me ecos sumidos: encaixa a baciaaperta os glúteos. Pessoas com a chave na mão pedem duas vezes ajuda para lhes abrir a porta de casa, apontando-me a vocação a que sacrifiquei a maternidade: facilitar entradas.

Quisera seguir os passos de Sophia neste meu caminho da manhã, mas não é época de figos pretos no mercado, que tem hoje o seu dia de descanso. Aqui não há cigarras que cantem o silêncio de bronze – apenas homens que sacodem os tapetes do carro. Onde quer que a manhã pouse, o sublime chega-se com a sua lágrima de mel numa paisagem de azulejos, harmonias e contrastes. E o amor do Invisível pelas coisas visíveis afigura-se ralo só a quem precisa de altar para deitar os joelhos ao chão.

 

2019 © Francisco Amaral - todos os direitos reser

 

Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

24
Set23

O Olho que tudo vê

Sónia Quental

 

No entanto, a cultura atual funciona em bases diametralmente opostas, nas quais o exibicionismo vulgar, a perda da intimidade e a consequente destruição da profundidade estão na ordem do dia.

Maurício Righi

 

A consciência cósmica é substituída pela vigilância social, a percepção do absoluto, pela acrobacia cerebral. Daí resulta uma desidratação progressiva da alma, uma penúria espiritual mais apavorante que a fome.

Arthur Koestler

 

 

 

A pornografia da arte a propósito da remoção de estátuas e a evocação da exposição pretérita Noites Brancas, de Julião Sarmento, coroando a notícia recente do Happiness Camp aqui próximo. A reedição providencial da Beleza de Roger Scruton. Estudos que me permitem continuar a debruçar sobre o masculino e o feminino, interrompidos pela notícia de que quase um terço dos norte-americanos com menos de 30 anos seria a favor da instalação de câmaras dentro de casa.

Se em tempos não acreditava no acaso, hoje já não sei, mas isso não impede que me proponha o desafio de unir as notas aparentemente soltas das últimas semanas e de tentar dar-lhes coerência ou descortinar as relações possíveis entre elas.

Incumbiram-me, em 2012, de levar turmas em visita a uma exposição patente em Serralves: Noites Brancas, de Julião Sarmento, um artista de quem nada sabia e de quem preferiria nada ter ficado a saber. Expor adolescentes à crueldade mórbida e à obscenidade daquela “arte”, por mando de quem vê em toda a cultura instrução vantajosa, foi tarefa aflitiva, que não tentei explicar aos alunos, porque não havia como. Apesar de pouco conhecedora das artes plásticas, diviso nelas a mesma tendência da literatura deste início de século, sobretudo a poesia, que se cose de vísceras e do lado mais pútrido da matéria, no rebaixamento do humano à sua dimensão animal, acometida do desejo gratuito de chocar. No entanto, é esta que merece consagração e que não se pensa em remover da vista pública. Como acusa Zan Perrion, “The symptom of the modern times is that we've turned our face away (...) from beauty. And we celebrate ugliness”.

Não foi apenas o sentido estético que se inverteu, mas a importância que se lhe dá, aventuro que pela relação que a Beleza tem com o transcendente, que, se ainda se inscreve na cultura, é como tradição morta ou fantasia New Age. O questionamento existencial foi substituído pela exploração macabra do excremencial e pelo livre curso dado às ambições demiúrgicas do indivíduo, que não se coíbe de patentear urinóis artísticos e Frankensteins humanos.

 

É possível caracterizar a recaída geral de nossa cultura, rumo à contemplação de formas e conteúdos crescentemente dionisíacos, como uma consagração filosófico-estética de ‘princípios desumanos’. Nesse sentido, o movimento das artes plásticas, em sua depravada hostilidade contra o belo, surge como paradigma dessa degradação.

Maurício Righi

 

       Depois do ataque ao sexo masculino, é a vez de a mulher, representante da Beleza e do Mistério, ser anulada enquanto tal e na nudez que a revela mulher – a menos que seja o tipo de nudez que lhe expõe os fluidos e a decadência da carne.

 

Percebe-se (…) uma rendição incondicional ao biológico em sua faceta decadente e fragmentária, uma vez que o biológico tende, em seu processo orgânico, e de forma inexorável, ao desgaste e à decomposição, junto à correspondente perda de unidade orgânica e harmonia estética.

Maurício Righi

 

 

As forças de decomposição da cultura e da arte, a erosão do género e o materialismo tonificam a apoteose pueril do sucesso, do consumo e da felicidade, concorrendo todos para a exteriorização e a superficialidade do pensamento. Aqui se insere também a influência do New Thought, da psicologia positiva, do coaching e dos movimentos sociais da berra, com as suas fórmulas light, visando substituir moral e religiosidade pelo conforto de lemas progressistas, forçando um falso sentido de harmonia e contentamento que tenta iludir a razão, levando-nos finalmente a repetir que 2+2 = 5.

No entanto, “Na falta de eficientes modelos de transcendência, dos quais dependem as felicidades duradouras, a cultura e as pessoas tendem naturalmente ao vazio e, consequentemente, à infelicidade” (Maurício Righi). O mesmo horror ao vazio, a insegurança, a incapacidade de estar só e de cultivar a solidão que faz com que muitos acendam a televisão desde o raiar do dia farão também com que esses, complacentes com as câmaras que crescem como cogumelos fora de casa, também as queiram instalar dentro. As câmaras e a vigilância tornaram-se o Olho desfigurado da transcendência, a relação que subsiste com o Invisível, despido de Mistério e ao serviço da ordem social, que apenas o sacrifício humano pode aplacar.

 

Barco (2).jpg

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

29
Abr23

Luminárias

Sónia Quental

Escadaria do Mercado do Bolhão (4).jpg

It is so dificult to find a teacher these days. There are mostly preachers. A real teacher has no teaching.

H. W. L. Poonja

 

Most teachers are false teachers, and most seekers and false seekers.

H. W. L. Poonja

  

Percebo que Alexandre Mota quisesse perguntar a Jordan Peterson que compatibilidade haveria entre o Deus Cristão e aquele a que de modo incauto chama o “Deus Panteísta”, à guisa de matchmaker desavindo, em busca de uma luminária que lhe dê razão.

Andamos, muitos, em busca de luminárias, entre tantos falsos brilhos e a falta de referências que alumiem um ignoto deo. Percebo o que diz, apesar da falta de rigor, quando fala das “experiências esotéricas ao estilo panteísta” que vieram substituir o fascínio do existencialismo. Penso, sim, que é preferível “agir como se Ele existisse” do que sucumbir à convicção fácil do ateísmo (embora me pareça que a diferença não seja tanta assim).

Também a mim me indignam muitas das tendências que nomeia no seu artigo, que dão má fama ao que é da ordem do Invisível e a quem se empenha com seriedade em conhecê-lo. O sincretismo New Age é o red light district da Espiritualidade. Estou bem familiarizada com a confusão entre desenvolvimento pessoal e espiritual e com quem se considera espiritual porque queima incenso, faz visualizações criativas, aplica a lei da atração, lança o pêndulo e as cartas, comunica com os anjos e os mestres ascensos, pratica Reiki, Access Consciousness ou ThetaHealing, fala como entendido das crianças índigo e da era de Aquário, faz regressões a vidas passadas, leituras da aura, anda com cristais pendurados ao pescoço, recita afirmações positivas, participa em cerimónias ayahuasca e atira namastês à discrição. Enjoei das frases feitas de grupos que viram verdadeiras seitas, empenhados na eterna procura, mas não no Encontro. É disso que também se priva quem age “como se Ele existisse”: da oportunidade da descoberta.

É à boca cheia que se ouve falar de “luz”, “energia”, "cocriação" e do malfadado “ego”, nos locais mais desusados, por seres que trajam de branco, cobertos de medalhinhas de Nossa Senhora e de Cristo Jesus, que são “tu cá, tu lá” com o Arcanjo Miguel e têm contactos privilegiados na 9.ª dimensão. É o auge da pornografia. A espiritualidade tornou-se um acessório barato, que ora se põe ora se tira, consoante a ocasião e o dress code, deixando atrás de si um rasto carnavalesco de inquestionável mau gosto.

Por isso, caro Alexandre, entendo perfeitamente o que diz. No entanto, por muito respeito e admiração que sinta por Jordan Peterson, sei que não será ele a dar-lhe a resposta que procura – desde logo, porque ele próprio não a tem. Deus não se revela pela via do intelecto. Nas expressivas palavras de H. W. L. Poonja, “If you are looking for diamonds, do you go to a potato shop?”

Se quer começar por algum lado, sugiro-lhe, caro Alexandre, que comece por se livrar da suposição de que Ele existe, teve batismo cristão e é um “alvo exterior” (a abater ou não). Atreva-se a admitir que nada sabe e que só daí poderá partir: sem saber o que vai encontrar. Livre-se dos conceitos que formou antes de querer saber se o Deus cristão pode dar o nó com o “panteísta” e quem irá presidir ao casório. Remova os modificadores do nome. E, se quiser falar em esoterismo e budismo, estude-os primeiro. Não os confunda com as versões aciganadas que por aí circulam nem os irmane à erva daninha do relativismo. Desenvolva a faculdade da discriminação. Se precisar de ajuda, escolha luminárias que realmente saibam, não sem antes começar a acender a própria luz – porque só as luminárias se reconhecem entre si.

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

10
Abr23

"Guilty pleasures"

Sónia Quental

Abertura com véu.jpg

Elevation always brings isolation.

R. C. Blakes, Jr.

 

A happy man needs no entertainment and no socializing. He is content.

Lester Levenson

 

 

            Tendemos a esconder os nossos vícios, a entretê-los às ocultas para que não nos apanhem no ato e não tenhamos de nos justificar, sobrevinda a vergonha, o que pode aplicar-se tanto aos doces como a comer demais, fazer compras compulsivas, roer as unhas e - como muito se escreve por aí e tudo resume, sem nada dizer - etc. Mas há vícios aparentemente inócuos que incomodam mais a quem os surpreende do que a quem deles sofre: falo, por exemplo, da perversidade de estar em casa. Quando adolescente (e adulta já), censuravam-me por estar sempre “fechada em casa”; alguns anos depois, o conselho inopinado com que uma professora de faculdade me deixou, citando Celan, aqui em rude paráfrase, foi que fosse viver a vida; recentemente, recebi a reação de estupefação de alguém por estar dentro de casa num dia de sol. Todos têm em comum acharem que é lá fora que a vida existe, o que ainda não deixou de me incomodar e vai fazendo com que me exponha cada vez menos, agravando ainda mais este aparente agravo.

            Daí o alívio que senti ao encontrar o excerto que a seguir traduzo, num livro de Peter Block (The Answer to How Is Yes), dando continuidade ao tema da crónica anterior: “Vivemos numa cultura que esbanja todas as suas recompensas naquilo que funciona, uma cultura que parece valorizar mais o que funciona do que aquilo que importa. Uso a expressão ‘o que funciona’ para traduzir o nosso amor pelo que é prático e a nossa atração pelo que é concreto e mensurável. A expressão ‘aquilo que importa’ engloba a nossa capacidade de sonhar, de reclamar a nossa liberdade, de sermos idealistas e dedicarmos as nossas vidas ao que é vago, difícil de medir e invisível.” Foi a primeira vez que encontrei por palavras uma descrição daquilo que faço: dedicar-me ao que é vago, difícil de medir e invisível. Agora, que sei que isso existe, o meu descanso é outro. Já não preciso de corar quando me perguntam o que estou a fazer, de inventar obrigações domésticas como pretexto para o meu eremitismo nem de sentir peso na consciência por não ser “sociável”, qualidade suprema da pessoa integrada e normal. Já há nome para o que (não) faço (e não é “introversão”).

            Estranhamente, era eu que ia para a rua quando, em anos recentes, todos se fechavam em casa. Tenho uma bússola que me faz viver às avessas e, se algum dia ela avariar ou a demência ameaçar, basta-me ver para onde vão as massas para saber que o caminho é o oposto e voltar a encontrar o norte. A verdade mora no avesso do mundo.

            Ainda assim, é difícil evitar o contágio ou a força do condicionamento. Deixar de pensar em termos de produção quando, ao fim de um dia, nada de “útil” se fez e a mente gira freneticamente sobre si mesma, a procurar desculpas para o que nos dizem ser o mal da procrastinação ou do tempo perdido. Os dias contam em função do que se faz, do que se conseguiu “adiantar”, das tarefas riscadas da lista, e o nosso valor é inferido de quão cheios os temos, da medida do nosso contributo para a sociedade.

            Confesso que o veneno deste espírito utilitário também me ataca por vezes. Penso: qual a utilidade de escrever se nada de novo tenho a acrescentar ao que já foi dito por outros? Porquê perder tempo quando não sou um génio literário e não escrevo o que ao público interessa ler? Perguntas cuja resposta escapa à razão. Há coisas que se faz porque se tem de fazer, porque a elas se é impelido e porque fomos postos aqui para isso, não nos cabendo pedir satisfações, medir resultados ou esgrimir comparações. Há perguntas cuja resposta é o tautológico “porque sim” ou “porque não” ou mesmo “porque não sei”.

            Muitos porquês interrogados me foram dirigindo ao longo do tempo, que fundamentalmente se reduziam a um “Porque é que és assim?” que assumia desde logo alguma disfunção. Não eram perguntas de curiosidade, de interesse, de querer saber ou mesmo de bem-querer, mas de acusação, perguntas nascidas do medo do que não é familiar e vem pôr em causa todo um constructo do mundo. Há uma fissura no cenário e é preciso saber porque é que está ali para que possa ser reparada ou disfarçada, sem perturbar a ordem que se tem como natural e pôr em risco quem nela vive. Sempre em nome do bem comum.

            Acontece que estou a aprender a não me ralar com as minhas alegadas ruindades. Prefiro ocupar-me a desmanchar ideias, desligar automatismos e expandir limites percebidos. Prefiro escolher a liberdade de ser e descobrir constelações que só vislumbra quem mora no vago, no invisível e difícil de medir - sozinho ou acompanhado.

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0