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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

10
Abr23

"Guilty pleasures"

Sónia Quental

Abertura com véu.jpg

Elevation always brings isolation.

R. C. Blakes, Jr.

 

A happy man needs no entertainment and no socializing. He is content.

Lester Levenson

 

 

            Tendemos a esconder os nossos vícios, a entretê-los às ocultas para que não nos apanhem no ato e não tenhamos de nos justificar, sobrevinda a vergonha, o que pode aplicar-se tanto aos doces como a comer demais, fazer compras compulsivas, roer as unhas e - como muito se escreve por aí e tudo resume, sem nada dizer - etc. Mas há vícios aparentemente inócuos que incomodam mais a quem os surpreende do que a quem deles sofre: falo, por exemplo, da perversidade de estar em casa. Quando adolescente (e adulta já), censuravam-me por estar sempre “fechada em casa”; alguns anos depois, o conselho inopinado com que uma professora de faculdade me deixou, citando Celan, aqui em rude paráfrase, foi que fosse viver a vida; recentemente, recebi a reação de estupefação de alguém por estar dentro de casa num dia de sol. Todos têm em comum acharem que é lá fora que a vida existe, o que ainda não deixou de me incomodar e vai fazendo com que me exponha cada vez menos, agravando ainda mais este aparente agravo.

            Daí o alívio que senti ao encontrar o excerto que a seguir traduzo, num livro de Peter Block (The Answer to How Is Yes), dando continuidade ao tema da crónica anterior: “Vivemos numa cultura que esbanja todas as suas recompensas naquilo que funciona, uma cultura que parece valorizar mais o que funciona do que aquilo que importa. Uso a expressão ‘o que funciona’ para traduzir o nosso amor pelo que é prático e a nossa atração pelo que é concreto e mensurável. A expressão ‘aquilo que importa’ engloba a nossa capacidade de sonhar, de reclamar a nossa liberdade, de sermos idealistas e dedicarmos as nossas vidas ao que é vago, difícil de medir e invisível.” Foi a primeira vez que encontrei por palavras uma descrição daquilo que faço: dedicar-me ao que é vago, difícil de medir e invisível. Agora, que sei que isso existe, o meu descanso é outro. Já não preciso de corar quando me perguntam o que estou a fazer, de inventar obrigações domésticas como pretexto para o meu eremitismo nem de sentir peso na consciência por não ser “sociável”, qualidade suprema da pessoa integrada e normal. Já há nome para o que (não) faço (e não é “introversão”).

            Estranhamente, era eu que ia para a rua quando, em anos recentes, todos se fechavam em casa. Tenho uma bússola que me faz viver às avessas e, se algum dia ela avariar ou a demência ameaçar, basta-me ver para onde vão as massas para saber que o caminho é o oposto e voltar a encontrar o norte. A verdade mora no avesso do mundo.

            Ainda assim, é difícil evitar o contágio ou a força do condicionamento. Deixar de pensar em termos de produção quando, ao fim de um dia, nada de “útil” se fez e a mente gira freneticamente sobre si mesma, a procurar desculpas para o que nos dizem ser o mal da procrastinação ou do tempo perdido. Os dias contam em função do que se faz, do que se conseguiu “adiantar”, das tarefas riscadas da lista, e o nosso valor é inferido de quão cheios os temos, da medida do nosso contributo para a sociedade.

            Confesso que o veneno deste espírito utilitário também me ataca por vezes. Penso: qual a utilidade de escrever se nada de novo tenho a acrescentar ao que já foi dito por outros? Porquê perder tempo quando não sou um génio literário e não escrevo o que ao público interessa ler? Perguntas cuja resposta escapa à razão. Há coisas que se faz porque se tem de fazer, porque a elas se é impelido e porque fomos postos aqui para isso, não nos cabendo pedir satisfações, medir resultados ou esgrimir comparações. Há perguntas cuja resposta é o tautológico “porque sim” ou “porque não” ou mesmo “porque não sei”.

            Muitos porquês interrogados me foram dirigindo ao longo do tempo, que fundamentalmente se reduziam a um “Porque é que és assim?” que assumia desde logo alguma disfunção. Não eram perguntas de curiosidade, de interesse, de querer saber ou mesmo de bem-querer, mas de acusação, perguntas nascidas do medo do que não é familiar e vem pôr em causa todo um constructo do mundo. Há uma fissura no cenário e é preciso saber porque é que está ali para que possa ser reparada ou disfarçada, sem perturbar a ordem que se tem como natural e pôr em risco quem nela vive. Sempre em nome do bem comum.

            Acontece que estou a aprender a não me ralar com as minhas alegadas ruindades. Prefiro ocupar-me a desmanchar ideias, desligar automatismos e expandir limites percebidos. Prefiro escolher a liberdade de ser e descobrir constelações que só vislumbra quem mora no vago, no invisível e difícil de medir - sozinho ou acompanhado.

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0