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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

07
Jan25

Reler

Sónia Quental

- ou dos malefícios da leitura

 

When a person picks up a book to read, it is usually for some purpose: to while away an empty hour, for pleasure, for information, to find the answer to some problem, to fill an emptiness within, or to seek to understand the meaning of life. What is your purpose in reading this book?

 

         É com estas palavras que Lorraine Sinkler abre o prefácio da obra The Alchemy of Awareness, biografia de Joel S. Goldsmith, curador e místico do século passado – outro dos grandes autores largamente divulgados no Brasil, a que as nossas fronteiras editoriais ainda não deram passagem.

         As reflexões que tenho esboçado intimamente sobre o real valor da leitura, que encontraram um primeiro incentivo nas palavras de Sinkler e um eco de longa data nas de diferentes vultos do mundo espiritual, foram, uma vez mais, corroboradas por Theodore Dalrymple num dos últimos títulos dados à estampa: On the Ivory Stages. Neste compêndio de pensamentos inspirados pela leitura, o ensaísta britânico evoca três escritores que relevaram os prejuízos do excesso dela: Somerset Maugham, Aldous Huxley e Schopenhauer, o último dos quais achava que a leitura podia ser tanto um entrave quanto um estímulo ao ato de pensar. Do ensaio de Huxley, datado de 1936, transcrevo o trecho citado:

To a considerable extent, reading has become for almost all of us an addiction, like cigarette-smoking. We read, most of the time, not because we wish to instruct ourselves, but because reading is one of our bad habits… deprived of their newspaper or a novel, reading-addicts will fall back on… those instructions for keeping the contents crisp which are printed on boxes of breakfast cereal.

 

         A compulsão pela leitura, por inofensiva ou até vantajosa que possa parecer, como a compulsão por comer cenouras (mais saudáveis do que as bolachas, por exemplo), não deixa de ser uma compulsão: um impulso desregulado, uma fuga de si que é facilmente racionalizada e encorajada como vício benigno. Mesmo sabendo-se que nem todas as obras entram na gaveta das cenouras e que ficariam melhor no saco da farinha, a leitura adquiriu o estatuto de panaceia universal. A guerra no mundo é seguramente caso de subnutrição literária.

         Foi ao perceber que o intelecto não me bastava que a vontade de ler literatura definhou de um modo súbito e irrevogável – diria que dramático até, uma vez que, passados 15 anos, ainda me dói a bagagem que deitei fora. Descobri, porém, que o alimento intelectual é como o açúcar: não faz mais do que produzir picos no sangue, aportando pouco valor nutricional e logo se chorando da próxima dose. Não é dele que vem o conhecimento nem dele que a alma extrai os seus sucos. A minha começou a pedi-los com urgência, ainda que na busca intensiva a que me lancei poucos autores achasse que pudesse espremer ou que soubessem mais do que fazer malabarismos com palavras ou enredos. Mesmo que não os deixassem cair ao chão e que a tenda do circo fosse alta, estava longe de chegar. No máximo, dava para um recorde no Guiness.

         No início desta peregrinação desolada, que cedo recuou para a leitura não literária, tive a boa fortuna de encontrar o nome de Mirra Alfassa, artista plástica, musical e mística que sistematizou os princípios da Educação Integral, baseados nos ensinamentos do Ioga Integral de Sri Aurobindo. Na sua definição de arte, aquela que a posteridade ficaria a conhecer como “A Mãe” acentua distintamente: “A habilidade não é arte; o talento não é arte. A arte é uma harmonia e beleza vivas que devem ser expressas em todos os movimentos da existência”.

         Estabelecendo um paralelo entre os princípios fundamentais da arte e os do ioga, via em ambas as disciplinas a ligação a uma dimensão transcendente, ao serviço da autotransformação e da elevação da consciência. No nosso mundo evoluído, prostrado aos bezerros da ciência, da tecnologia e de um intelectualismo desvitalizado, esta noção são só se perdeu por completo, como não geraria mais do que um escárnio condescendente. Posso afiançar que não é o que se ensina nas universidades, que a única coisa que fazem é confundir e embotar as faculdades da alma.

         Respondendo à pergunta inicial de Lorraine Sinkler, leio acima de tudo para descobrir o significado da existência. Não há muitos que o tenham encontrado e que o saibam transmitir por palavras ou em forma literária, apesar de ser esta a linguagem que mais se presta ao que é da ordem do inefável. É por isso que, mais do ler em quantidade, me importa ler em qualidade e acima de tudo reler. Porque a leitura não é um fim em si, mas um caminho para mim mesma.

         Os mundos interiores não são presas dóceis, que se entreguem ao primeiro assalto. É preciso fazer muitas vezes a mesma viagem de ida sem regresso. No início, a maioria dos que se atiram à aventura vai de arrasto e, mesmo depois de ganhar lanço, avança com a lentidão de certos moluscos. Poucos são os saltos expressivos para a frente e para o alto, e apesar disso não há nada que se lhes compare. As obras de qualidade – as obras com profundidade – desdobram-se em camadas para nos acomodar em todos esses momentos, esperando com as suas janelas e quartos fechados para nos presentear com clarões inesperados, de paisagens que ninguém conhece.

         As obras dos verdadeiros escritores nunca acabam; os verdadeiros leitores nunca param de as reler. Não há tempo para mais.

 

 

 

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O erro dos artistas é acreditarem que a produção artística é um fim em si e para si mesma, independente do resto do mundo. A arte, tal como entendida por esses artistas, é como um cogumelo no vasto terreno da vida, como uma coisa fortuita e externa, não algo intimamente ligado à vida. Ela não alcança nem toca as realidades profundas e duradouras, não se torna parte intrínseca e inseparável da existência. A verdadeira arte tem a missão de expressar o belo em íntima proximidade com o movimento universal. As maiores nações e as raças mais cultas sempre consideraram a arte como uma parte da vida e a fizeram subserviente à vida. (…) Mas a maior parte dos artistas são como parasitas que crescem à margem da vida; não parecem saber que a arte deveria ser a expressão do Divino na vida e através da vida. Em tudo, em todo o lugar, em todos os relacionamentos, a verdade deve ser manifestada no seu ritmo omniabarcante, e cada movimento da vida deve ser uma expressão de beleza e harmonia. A habilidade não é arte, o talento não é arte. A arte é uma harmonia e beleza vivas que devem ser expressas em todos os movimentos da existência. Esta manifestação da beleza e harmonia é parte da realização Divina na terra, talvez mesmo a sua parte mais importante.

 

Mirra Alfassa

(Fotografia extraída daqui.)

05
Jan25

Postiço

Sónia Quental

 

Quase deixei de ler poesia. São mais os livros que pouso do que aqueles em que me fico – basta uma mirada para lhes cheirar o vazio. Obras de malabaristas, prestidigitadores verbais, ilusionistas que não conhecem a magia e tiram coelhos de cartolas curtas.

Alguns dizem coisas como “gomo”, “retina” e “meu amor” e ainda esses são artifícios que nascem sem vida, enganando apenas os leitores que gostam de cartolas com o fundo à vista.

 

10
Nov24

A Biblioteca de Cordel

Sónia Quental

We tend to anthropomorphize people.

John Kent

 

 

         A Biblioteca de Cordel nascera do desejo subterrâneo de laçar o céu com os cabos do conhecimento. Era frequentada por grupos que não se confundiam entre si, entre os quais várias estirpes de Emílios e Espertalhaços, Ideologias Com Pernas, Professores Diversitários, Cidadãos Preocupados e Leitores Ufanos. Não satisfeitos com o crachá de Leitor, estes últimos usavam um fraque com uma longa cauda feita de capas de livros, que abriam em leque, exibindo espontaneamente as suas plumas garridas – o destino dado ao papel dos guardanapos desviados dos estabelecimentos de restauração.

        A Biblioteca de Cordel dinamizava eventos e concursos mensais, para não perder a relevância e continuar a atiçar o interesse do público. Os Leitores Ufanos competiam pelo troféu de Quem Leu Mais Livros E Ficou Na Mesma, apenas superado em nível de dificuldade e prestígio pelo de Quem Leu Mais Livros E Regrediu, o que causava choques embaraçosos nos corredores da biblioteca, onde os Leitores se exercitavam todos os dias caminhando para trás e tropeçando nos apêndices uns dos outros.

         Ao contrário do que acontecia nas bibliotecas tradicionais, o silêncio tinha caído em desuso. Todos os fraques entravam com um par de óculos de lentes coloridas: amarelas, cor-de-rosa, verdes, dando uma tonalidade inebriante à leitura e gerando altercações entre quem se convencia de ter sido agraciado com a cor mais soberana do arco-íris. Apegados às lunetas e à visão monocromática das estantes, infligiam golpes deliberados nas próprias retinas, para que nenhum livro aberto ao acaso esfacelasse a miopia laboriosamente cultivada.

       Quando as portas se abriam pela manhã, o ritual era sempre o mesmo: cada qual pegava num bloco de Opiniões que a biblioteca generosamente distribuía para marcarem os livros quando interrompiam a leitura para ir ao WC, aproveitando para comer uma barrita de cereais pelo caminho. As Opiniões ganhavam então vida própria e não davam sossego aos poucos Indivíduos que estavam de passagem pelo local, deparando-se com as escaramuças dos Intelectuais envergando traje de cerimónia, aves de rapina de bico ensanguentado e insatisfeito.

     O Simpósio Anual dos Gurus da Escrita Levezinha já tinha data marcada para esse ano, concentrando a esperança de que a Biblioteca de Cordel subisse mais um palmo na conquista enciclopédica das Alturas, um fator de união imprevisto entre os clãs que disputavam entre si as sobras avaras das Leituras Proveitosas.

 

26
Out24

Dalrymple

Sónia Quental

            

    Considerado por alguns o melhor ensaísta de língua inglesa da contemporaneidade e convidado várias vezes para o Brasil, onde a sua obra se encontra extensamente publicada e é já objeto de estudo, Theodore Dalrymple parece ainda não ter dado à costa do panorama editorial português, apesar da proximidade geográfica. É essa negligência flagrante que me faz dedicar-lhe uma entrada no blogue, aproveitando a reedição próxima do título Nothing but Wickedness: The Decline of Our Culture.

      Pseudónimo literário do psiquiatra Anthony Daniels, que trabalhou como médico em continentes estrangeiros antes de se fixar no país natal, a Inglaterra, aí atendeu durante grande parte da sua carreira a população das prisões e da classe baixa, cuja pobreza cultural, moral e social diz superar a pobreza material de países classificados como de terceiro mundo, assolados pela miséria, por conflitos civis e pela opressão política.

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        Na esteira dos grandes autores e psicólogos da literatura mundial, de entre os quais se destaca o nome de Shakespeare, Dalrymple é dos poucos ensaístas em que encontro uma profundidade de análise psicológica que, aliada a uma rara isenção e honestidade intelectual, tem um efeito simultaneamente refrescante e persuasivo. Resistindo a deixar-se ofuscar por ideações pessoais, tingidas por um emocionalismo impostor, ou a tentar ajustar a realidade a teorias preliminares, Dalrymple faz da observação minuciosa dos sintomas do universo humano com que contacta instrumento de diagnóstico da cultura e da sociedade. A lucidez da sua exposição argumentativa abre-nos clareiras no pensamento; a fina ironia e o humor que marcam a sua escrita tornam a leitura destes ensaios uma delícia que não cansa.

      Como adiantei em referências anteriores, é o autor laico mais espiritual que conheço e dos poucos que continuo a ler: assumindo-se como não religioso, reconhece o valor que a transcendência tem para a busca do significado da existência, não hesitando em utilizar a palavra “alma” quando se pronuncia sobre a condição humana, como autor eternamente fascinado pelo problema do Mal – um dos nós górdios que nos unem.

        Maurício Righi escreveu sobre ele Theodore Dalrymple: A Ruína Mental dos Novos Bárbaros, uma introdução rigorosa à obra de um pensador virtualmente desconhecido por cá, que ainda precisa de atravessar o oceano se quisermos lê-la em papel.

 

It often seems to me that the main purpose of the intellectual elite is to find theoretical reasons for ignoring what is in front of their face.

Theodore Dalrymple

 

06
Abr24

À janela

Sónia Quental

 

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O lugar fora sempre à janela, uma forma de cruzar o movimento no tempo e no espaço com o desconhecido que desbravava ao de leve, com o olhar em laser sobre a paisagem. Não gostava que me enganassem sobre o tempo e a distância até ao destino, com o corpo mole a escorregar para a lamúria do ainda-falta-muito-para-chegar, abafada com uma mentira sempre igual. O enjoo só costumava vir quando a viagem de carro era longa, para uma sorte forçada, e me faziam engolir arroz-doce e pinhões à chegada.

A vida foi essa espera constante, numa viagem de coordenadas incertas. Espera pela noite de consoada, pelas férias de verão, pela carta que há de vir no correio, pelo toque do telefone, pelo episódio da próxima semana, por rapar a taça e espetar o palito no bolo, pela época dos morangos e das vindimas, pelo dia de aniversário, pela picada da seringa, pelos guinchos do porco quando a goela rasgava – a espera pela encomenda, que é sempre a mesma. Quando uma espera acaba, começa logo outra, desejada ou temida (às vezes ambas). A saciedade traz consigo a ameaça do vazio, por isso é preciso recriar a espera e a incerteza com uma tensão que não seja excessiva e possa respirar nos breves momentos de consumação.

Só o estado de fluxo que a descoberta dos talentos traz faz esquecer essa espera, projetando uma cápsula que leva em viagem, não no tempo, mas para fora dele, e apagando o rasto do enigma no trava-língua “quanto tempo o tempo tem”, o único que conseguia dizer sem tropeçar nas sílabas. Talvez seja o empenho em resolvê-lo que me faça andar sempre adiantada, condenando a paciência às agruras da espera.

A reflexão, porém, nasce de não me ter feito esperar para ler o ensaio que Andrea Köhler dedicou à espera, na obra O Tempo que Passa, que me cortejava às claras desde o primeiro olhar. A expetativa não foi defraudada, envolvendo-me agora em castelo no arco de metáforas culinárias que a leitura serve para o jantar.

 

 

28
Mar24

"Trivia"

Sónia Quental

        Sento-me, preparada para esperar, quando recebo um e-mail com um inquérito sobre o que é a beleza nos dias de hoje. Um estudo sobre a beleza “real”. Ocorrem-me fragmentos de um questionário que Luís Quintais promoveu a poema: “Em que medida o incomodam sentimentos de predestinação? Nada? Um pouco? Moderadamente? Muito? Muitíssimo?”

        Chega a minha vez. Perguntam-me se quero acelerador. O cronómetro grita em surdina: acelera, acelera. Digo: “Não”. Desacelera. 35 minutos com a tinta. Como se me ouvisse, na rádio uma música desatualizada fala de chamas eternas e destino. Ainda não sabe que o destino é um algoritmo. A beleza, estatística de cabelos brancos.

       Enquanto me torno mais carvão, a cabeça rascunha. Consigo fazer as duas coisas ao mesmo tempo e há que aproveitar quando o tempo desacelera, mesmo que as mãos crispadas nos joelhos ainda estejam a contar. Desassossego nos momentos de transição, principalmente se espremidos pela pressa. Queria ter comigo o Ensaio sobre a Espera, de Andreia Köhler, que vinha muito a calhar, mas ainda não o comprei.

        Faço antes uma leitura ligeira, mas esperançosa: como curar a dor de costas através da conexão mente-corpo, mas nem a desaceleração dá tempo para praticar. No telemóvel, uma fotografia de uma página do Tao Te Ching aberta ao acaso (faltou-me a paciência para a copiar à mão): “Quem se põe em bicos de pés não se mantém ereto./ Quem estica muito as pernas não pode andar”.

        Tudo o que precisava de saber sobre dores de costas e predestinação. Quanto à beleza, tendo a concordar – moderadamente, isto é.

 

11
Fev24

Pós-nupcial

Sónia Quental

Atrevo-me a dizer que sou a cliente ideal das livrarias. Não dou trabalho, arrumo os livros fora de sítio, sou de namoros longos e consumações súbitas. Quando avisto alienígenas de máscara, fico com vontade de lhes pegar na mão e fazer festas na cabeça, como nunca quis a animais ou crianças. Só os destituídos me inspiram o instinto maternal. Sou toda cuidados, sabendo que não posso aproximar-me demasiado nem fazer movimentos bruscos, porque os potros estão sempre a ponto de saltar. Não é domesticá-los que quero – já se vê que o são. É dar-lhes refúgio como a mim dão os livros por estarem ali.

Foram sempre eles a acalmar-me. Forravam-me as noites no primeiro ano de ensino. Só o seu peso na cama me serenava o sistema nervoso, que sabia que eu não devia estar ali. Talvez devesse ter percebido pelo cemitério ao lado da casa onde arrendava quarto, por onde passava todos os dias a pé. O mundo é um livro aberto para quem sabe ler, mas eu estava ainda a aprender.

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Era de longa data o meu caso amoroso com os livros, embora só naquele ano dividíssemos lençóis como manda o costume. Quando acordava, ainda lá estavam, sem as urgências dos amantes intermitentes. É a fidelidade que lhes devo que ainda me leva, cumpridora, às livrarias, mesmo que o amor já não tenha a sofreguidão da verdura. Depois de perceber que a Verdade estava numa prateleira mais alta, mas menos altaneira do que a mente, entrámos num relacionamento à distância, primos afastados em vez de consortes.

Endireito-os enquanto os funcionários se ocupam a fazer vénias a quem chega. Cavaqueamos mais em silêncio, lembrando tempos antigos. Se há algum que reluz com a promessa de raras vertigens, trago-o comigo. Mas procuro principalmente os volumes intangíveis, que não têm palavras que lhes deem forma, esses com o mesmo poder de despertar que os que me adormeciam outrora. Quando preciso de libertar a tensão, procuro as livrarias de papel, faço-me útil, deixo o corpo ir.

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

03
Jan24

Ser um livro aberto

Sónia Quental

Foram mais de duas semanas à espera de um livro de que restam poucos exemplares em circulação e que veio de fora, chocolate branco para a alma. Antes de começar a dança de aproximação que terá o seu culminar numa leitura tempestuosa, o primeiro pensamento foi adicioná-lo à lista do Goodreads, mais por uma questão de organização do que de visibilidade.

Mas a visibilidade tornou-se a questão, quando se peca pelo excesso dela. Ora são as selfies tiradas no restaurante, no ginásio, na rua, no elevador, no cabeleireiro; ora é a vida no direto contínuo das lives; ora as “partilhas” que alimentam os sites e fóruns de comunidades gerados em torno de interesses comuns… Sem lhes negar o valor (ou cá não estaria), o seu crescimento desenfreado, por entre a teia das redes sociais e a exposição virtual de cada palmo de vida neste mundo virtual, em que se opina vigorosamente sobre todos os assuntos e mais alguns, sobretudo aqueles que se desconhece, acaba por transformar toda esta caldeirada numa boa posta de pescada que, no meu vocabulário, é código para “a evitar o mais possível”.

É relativamente inocente partilhar e recomendar leituras, para continuar o exemplo que me trouxe a este texto. Mas há livros que são só para nós e que só se nos revelam no segredo de uma relação fechada para o mundo. São livros que não se lê uma vez só, e não necessariamente por ordem. Fazem coisas dentro de nós, mesmo quando parecem resistir à decifração ou, pelo contrário, quando parecem simples, mas há um travão que não nos deixa ir além da sua aparente obviedade, insistindo em que fiquemos.

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Talvez seja por isso que sinto algum pudor quando me perguntam qual o meu livro preferido. Foram volumes que viajaram comigo no tempo, ficaram desfeitos pelo uso e as leituras repetidas, que a vida ia revelando em novas camadas e ao mesmo tempo confirmando que me eram destinados. Há quem diga que cada um de nós tem um koan pessoal a descobrir, a que precisa de dar resposta. Acredito que os nossos livros preferidos façam parte desse koan e por vezes sinto que nomeá-los é expor-nos além da abertura necessária para expressar preferências, formular resenhas ou até escrever, como aqui ou nos próprios livros se faz, com tudo o que já exige de entrega.

No embalo desta divagação, acrescento que não me incomoda, por sua vez, identificar o livro mais intragável que alguma vez me passou pelas mãos: Ulisses, de James Joyce. Punha fé no nome, mas nem ele o salvou do naufrágio, com o cúmulo de o ter lido na praia: a) nos tempos em que tinha férias; b) quando me obrigavam a ir à praia. Nem lhe podia dar a conhecer a minha frustração física nem usá-lo para pousar a cabeça quando estava a apanhar sol deitada de barriga para cima, porque era um livro da biblioteca, que teve como única finalidade fazer-me questionar vocação, carreira e existência, tudo ao mesmo tempo (e consta que nem sequer é o “pior” do autor). Considerando os estragos, não foi nada mau que tenha levado apenas alguns grãos de areia para a prateleira.

Parece-me que não nos importamos de escrutinar e esquartejar ódios, dividir as carnes pela tribo até ficar só a carcaça. Os amores, embora nos deliciem na comunhão com os amadores que para eles gravitam, guardam uma margem de secretismo que não deve ser violada e que fulgura apenas no silêncio, como as pinturas de Georges de la Tour. São livros que não podem ser abertos a outros olhares, que pulsam e nos convidam                entreabertos.

 

10
Mai23

Livros que fazem espécie

Sónia Quental

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Não utilizar determinadas palavras é aniquilá-las, expulsá-las da língua.

Manuel Monteiro

 

A transposição da oralidade – propositada, por exemplo, no jornalismo radiofónico e de TV – para uma linguagem escorreita é que, algumas vezes, deixa muito a desejar.

José Mário Costa

         

Foi depois de comprar e começar a ler o livro Dar a Volta ao Texto, de Martim Mariano, que percebi que certas pragas que tanto me enfastiavam na Internet existiam não por mera imitação ou por um qualquer contágio psíquico, mas porque andavam a ser ensinadas. Os vícios da língua e o mal escrever chegaram ao formato de manual, e a voz que o autor deste livro diz tantos anos ter demorado a apurar para tornar sua já a encontrei em muitos outros “profissionais” da escrita que contam como única qualificação a de serem falantes nativos que, em vez de corrigirem deslizes, buscam afirmá-los.

Percebe-se, por isso, que se encontre na obra em questão aberrações como o incentivo a escrever-se como se fala, a escrever para que as pessoas gostem de nós (“É preciso ser agradável e querido para as pessoas que o leem”, afiança o autor ante os meus olhos esbugalhados) e a escancarar as portas da própria existência para se ser lido. Não duvido de que o Big Brother continue a ter audiências, mas sabe-se bem quais são e qual o instinto que as move. A “autenticidade” e “naturalidade” recomendadas por Mariano, a par da tão apregoada “vulnerabilidade”, não implicam a falta de decoro que tantas vezes transpira em quem acha que, para exibir estas qualidades, precisa de expor rotineiramente a vida íntima. Ser-se pessoal ajuda a criar uma identificação com o público e a humanizar quem escreve, mas há um equilíbrio a alcançar. Já para não falar do difícil lugar em que se coloca quem quer ser autêntico e ao mesmo tempo agradar ao público.

A popularidade é um critério que parece ofuscar a qualidade. Não se ensina a escrever para transformar, mas para facilitar. Não para elevar quem lê, mas para lhe passar a mão no pelo. Não para que haja algum mérito em ser-se publicado, mas para mostrar que todos podemos ser escritores, desde que trabalhemos e sangremos muito e que os nossos textos falem ao coração. Sim, é preciso tudo isso para se aprender a escrever como se fala e a cativar os leitores, poupando-os a todos os esforços e aborrecimentos.

Além de o autor não fazer caso das regras do português, sujeita a língua a um jogo de cintura tal que ela vira contorcionista, confirmando o copywriting como a literatura de cordel da era digital. Dividir segmentos de frases com pontos finais, em vez de vírgulas, pode cair bem à primeira, mas a originalidade e a ênfase acabam por se perder à custa da repetição enjoativa: “Deixe que as pessoas percebam essa autenticidade. Essa verdade. Essa transparência”. E motivos para enjoo não faltam nesta obra, cuja leitura tive de interromper várias vezes para me refazer, como é o caso da também repetida expressão de realce “é que”, que deixa de realçar seja o que for. Mesmo. (Assim escreveria o autor.) O abuso de estrangeirismos, os parágrafos com uma frase e as frases monovocabulares, as marcas da oralidade que se tomam como expressivas e naturais, as “clarividências” que o autor não parece saber o que sejam, a menos que tenha alguma queda para o paranormal (o que é provável, tendo em conta o número de vezes que sugere “passar algo para o outro lado”), …

Aliás, por falar em paranormal, não resisto a desvendar o trecho em que este criativo descreve quem faz da escrita vida como alguém “especial”, dotado de missão divina (incluindo-se, por extensão, no grupo). Por momentos, vi-me transportada para o cabeleireiro, onde me distraio com a Maria e chego a ler o horóscopo enquanto me massajam o couro cabeludo. O próprio Mariano, a páginas tantas, confessa: “Sempre que vou a casa dos meus sogros leio todas as revistas cor-de-rosa que lá estão. E o Correio da Manhã.”

           Feitas as contas, acabei por perder com esta recente aquisição “literária” mais tempo do que gostaria e por lhe dar à cama um lugar que não merecia (maldita rima). É um livro que ensina a fazer dos vícios virtudes.

Passo a passo.

A capa e a contracapa são bonitas. Ao texto, não há volta a dar.

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0