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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

10
Nov24

A Biblioteca de Cordel

Sónia Quental

We tend to anthropomorphize people.

John Kent

 

 

         A Biblioteca de Cordel nascera do desejo subterrâneo de laçar o céu com os cabos do conhecimento. Era frequentada por grupos que não se confundiam entre si, entre os quais várias estirpes de Emílios e Espertalhaços, Ideologias Com Pernas, Professores Diversitários, Cidadãos Preocupados e Leitores Ufanos. Não satisfeitos com o crachá de Leitor, estes últimos usavam um fraque com uma longa cauda feita de capas de livros, que abriam em leque, exibindo espontaneamente as suas plumas garridas – o destino dado ao papel dos guardanapos desviados dos estabelecimentos de restauração.

        A Biblioteca de Cordel dinamizava eventos e concursos mensais, para não perder a relevância e continuar a atiçar o interesse do público. Os Leitores Ufanos competiam pelo troféu de Quem Leu Mais Livros E Ficou Na Mesma, apenas superado em nível de dificuldade e prestígio pelo de Quem Leu Mais Livros E Regrediu, o que causava choques embaraçosos nos corredores da biblioteca, onde os Leitores se exercitavam todos os dias caminhando para trás e tropeçando nos apêndices uns dos outros.

         Ao contrário do que acontecia nas bibliotecas tradicionais, o silêncio tinha caído em desuso. Todos os fraques entravam com um par de óculos de lentes coloridas: amarelas, cor-de-rosa, verdes, dando uma tonalidade inebriante à leitura e gerando altercações entre quem se convencia de ter sido agraciado com a cor mais soberana do arco-íris. Apegados às lunetas e à visão monocromática das estantes, infligiam golpes deliberados nas próprias retinas, para que nenhum livro aberto ao acaso esfacelasse a miopia laboriosamente cultivada.

       Quando as portas se abriam pela manhã, o ritual era sempre o mesmo: cada qual pegava num bloco de Opiniões que a biblioteca generosamente distribuía para marcarem os livros quando interrompiam a leitura para ir ao WC, aproveitando para comer uma barrita de cereais pelo caminho. As Opiniões ganhavam então vida própria e não davam sossego aos poucos Indivíduos que estavam de passagem pelo local, deparando-se com as escaramuças dos Intelectuais envergando traje de cerimónia, aves de rapina de bico ensanguentado e insatisfeito.

     O Simpósio Anual dos Gurus da Escrita Levezinha já tinha data marcada para esse ano, concentrando a esperança de que a Biblioteca de Cordel subisse mais um palmo na conquista enciclopédica das Alturas, um fator de união imprevisto entre os clãs que disputavam entre si as sobras avaras das Leituras Proveitosas.

 

11
Fev24

Pós-nupcial

Sónia Quental

Atrevo-me a dizer que sou a cliente ideal das livrarias. Não dou trabalho, arrumo os livros fora de sítio, sou de namoros longos e consumações súbitas. Quando avisto alienígenas de máscara, fico com vontade de lhes pegar na mão e fazer festas na cabeça, como nunca quis a animais ou crianças. Só os destituídos me inspiram o instinto maternal. Sou toda cuidados, sabendo que não posso aproximar-me demasiado nem fazer movimentos bruscos, porque os potros estão sempre a ponto de saltar. Não é domesticá-los que quero – já se vê que o são. É dar-lhes refúgio como a mim dão os livros por estarem ali.

Foram sempre eles a acalmar-me. Forravam-me as noites no primeiro ano de ensino. Só o seu peso na cama me serenava o sistema nervoso, que sabia que eu não devia estar ali. Talvez devesse ter percebido pelo cemitério ao lado da casa onde arrendava quarto, por onde passava todos os dias a pé. O mundo é um livro aberto para quem sabe ler, mas eu estava ainda a aprender.

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Era de longa data o meu caso amoroso com os livros, embora só naquele ano dividíssemos lençóis como manda o costume. Quando acordava, ainda lá estavam, sem as urgências dos amantes intermitentes. É a fidelidade que lhes devo que ainda me leva, cumpridora, às livrarias, mesmo que o amor já não tenha a sofreguidão da verdura. Depois de perceber que a Verdade estava numa prateleira mais alta, mas menos altaneira do que a mente, entrámos num relacionamento à distância, primos afastados em vez de consortes.

Endireito-os enquanto os funcionários se ocupam a fazer vénias a quem chega. Cavaqueamos mais em silêncio, lembrando tempos antigos. Se há algum que reluz com a promessa de raras vertigens, trago-o comigo. Mas procuro principalmente os volumes intangíveis, que não têm palavras que lhes deem forma, esses com o mesmo poder de despertar que os que me adormeciam outrora. Quando preciso de libertar a tensão, procuro as livrarias de papel, faço-me útil, deixo o corpo ir.

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

03
Jan24

Ser um livro aberto

Sónia Quental

Foram mais de duas semanas à espera de um livro de que restam poucos exemplares em circulação e que veio de fora, chocolate branco para a alma. Antes de começar a dança de aproximação que terá o seu culminar numa leitura tempestuosa, o primeiro pensamento foi adicioná-lo à lista do Goodreads, mais por uma questão de organização do que de visibilidade.

Mas a visibilidade tornou-se a questão, quando se peca pelo excesso dela. Ora são as selfies tiradas no restaurante, no ginásio, na rua, no elevador, no cabeleireiro; ora é a vida no direto contínuo das lives; ora as “partilhas” que alimentam os sites e fóruns de comunidades gerados em torno de interesses comuns… Sem lhes negar o valor (ou cá não estaria), o seu crescimento desenfreado, por entre a teia das redes sociais e a exposição virtual de cada palmo de vida neste mundo virtual, em que se opina vigorosamente sobre todos os assuntos e mais alguns, sobretudo aqueles que se desconhece, acaba por transformar toda esta caldeirada numa boa posta de pescada que, no meu vocabulário, é código para “a evitar o mais possível”.

É relativamente inocente partilhar e recomendar leituras, para continuar o exemplo que me trouxe a este texto. Mas há livros que são só para nós e que só se nos revelam no segredo de uma relação fechada para o mundo. São livros que não se lê uma vez só, e não necessariamente por ordem. Fazem coisas dentro de nós, mesmo quando parecem resistir à decifração ou, pelo contrário, quando parecem simples, mas há um travão que não nos deixa ir além da sua aparente obviedade, insistindo em que fiquemos.

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Talvez seja por isso que sinto algum pudor quando me perguntam qual o meu livro preferido. Foram volumes que viajaram comigo no tempo, ficaram desfeitos pelo uso e as leituras repetidas, que a vida ia revelando em novas camadas e ao mesmo tempo confirmando que me eram destinados. Há quem diga que cada um de nós tem um koan pessoal a descobrir, a que precisa de dar resposta. Acredito que os nossos livros preferidos façam parte desse koan e por vezes sinto que nomeá-los é expor-nos além da abertura necessária para expressar preferências, formular resenhas ou até escrever, como aqui ou nos próprios livros se faz, com tudo o que já exige de entrega.

No embalo desta divagação, acrescento que não me incomoda, por sua vez, identificar o livro mais intragável que alguma vez me passou pelas mãos: Ulisses, de James Joyce. Punha fé no nome, mas nem ele o salvou do naufrágio, com o cúmulo de o ter lido na praia: a) nos tempos em que tinha férias; b) quando me obrigavam a ir à praia. Nem lhe podia dar a conhecer a minha frustração física nem usá-lo para pousar a cabeça quando estava a apanhar sol deitada de barriga para cima, porque era um livro da biblioteca, que teve como única finalidade fazer-me questionar vocação, carreira e existência, tudo ao mesmo tempo (e consta que nem sequer é o “pior” do autor). Considerando os estragos, não foi nada mau que tenha levado apenas alguns grãos de areia para a prateleira.

Parece-me que não nos importamos de escrutinar e esquartejar ódios, dividir as carnes pela tribo até ficar só a carcaça. Os amores, embora nos deliciem na comunhão com os amadores que para eles gravitam, guardam uma margem de secretismo que não deve ser violada e que fulgura apenas no silêncio, como as pinturas de Georges de la Tour. São livros que não podem ser abertos a outros olhares, que pulsam e nos convidam                entreabertos.

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0