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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

03
Out23

O metamorfismo

Sónia Quental

 

Ao despertar pela manhã de um sonho agitado, Gregório Sansão percebeu que talvez estivesse a exagerar na comida de insetos. O excesso de proteína arranhava-lhe o goto e provocava-lhe nevoeiro mental. Era isso ou as aulas de português neutro que estava a pagar a um explicador para ter positiva à disciplina de Cidadania.

Estremunhade, esqueceu-se de verificar nesse dia se era rapaz ou rapariga, mas tanto lhe fazia. O importante era saber se não tinha coisas a dizer, para não se engasgar e não ficar com a barriga esquisita. Na cabeceira da cama, estavam as vitaminas para a autoestima que faziam parte do plano de normalização. Ao lado, o termómetro da paciência, para que não desatasse a bater com o nariz na parede e deixasse a pancadaria para as aulas de judo.

Pegou no tablet onde estava a fazer o T.P.C.: escrever uma ode à diversidade, mas debatia-se com a gramática da neutralidade. Tinha dificuldade em encontrar rima perfeita para “todes”. Só se lembrava de “bodes”, “pagodes”, “bigodes” e uma outra palavra feia, que não vinha nada a calhar. Mas sabia que podia gritar e chorar à vontade, contra o conselho da avozinha, porque os homens eram bastante sentimentais – ou assim lho diziam, embora nas aulas de português só lhe tivessem explicado o predicativo do sujeito da frase, classificando o sujeito como indeterminado.

Elu também queria mudar estereótipos e contribuir para a riqueza da sociedade. Daí ter começado a comer larvas em pó. Talvez fossem elas que lhe pusessem a barriga esquisita. Era pergunta para fazer a um especialista.

Subitamente, começou a ouvir o som de sinos no telemóvel: eram chegados os 30 segundos de meditação, a que se seguia a compilação da Lista de Ofensas para a adoração dominical. Nesse preciso instante, alguém bateu ao de leve na porta.

- Gregório – chamou a progenitora número um. Falta um quarto para as dez. Já puseste a trotinete a carregar?

Logo se lembrou de que ainda não tinha mudado as faixas dos pés de lótus, tradição que tinha adotado para extinguir a pegada ecológica, embora não fosse muito à bola com tradições. Orgulhava-se do pensamento progressista e esclarecido que tinha brotado em si desde tenra idade.

Por falar nisso, não se podia esquecer de preencher a candidatura a Vigilante Social, cargo bastante concorrido. Esperava que a nota de Cidadania brilhasse no currículo. Se tudo o resto falhasse, restava-lhe sempre a arma do Amor (tinha licença de porte), com que lutava para tornar a sociedade mais segura e tolerante, dispondo-se a dar o corpo às balas contra a sombra que ameaçava os corações humanos. Apesar das pernas demasiadamente finas, mais aptas para o balé do que para o combate, sabia que só tinha de acreditar em si. Em si e em todes. Logo, logo ia ficar tudo bem.

 

18
Mai23

Não é pelo título que se começa

Sónia Quental

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En definitiva, sólo era y sólo soy un escritor. Un tipo – sempre lo seré – que necessita escribir para calmar su tormenta.

Isra Bravo

 

A criatividade – tal como a vida humana – começa no escuro. 

Julia Cameron

 

             

Não é pelo título que se começa. Às vezes, não é sequer pelo princípio. Começa-se por onde se pode. Acaba-se se for caso disso.

Pode ser uma ideia, palavra desgarrada, uma imagem que persiste. Há um ritmo que se insinua e se transforma em tumulto, a primeira visão que Jacob tem do anjo.

Não há mapas mentais, estruturas a arquitetar. Pouco importa escrever depois de pensar. Rédeas, adeus. Só chega ao fim quem se rende, mesmo que não haja fim, mas só o avesso do começo.

O texto tem fome própria, não dá tréguas nem descanso. Esgueira-se durante o sono, insone e difuso – pássaros que bicam, mordem os calcanhares.

Às tantas, são duas partituras, duas baladas ao desafio – talvez por isso tenha nascido com os olhos tortos. Para usar as duas mãos, duas almas de cada vez.

Não são as linhas que se sucedem, mas as palavras que se empurram, sem olhar a filas ou sincronias. Desobedientes, com ganas. Palavras sem eira nem beira, ameaçando esquizofrenia. Dou-lhes regaço e guarida, até que se acalmam.

Até que sobra uma palavra, sem cor, som, feita de silêncio. É a palavra do começo.

 

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

10
Mai23

Livros que fazem espécie

Sónia Quental

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Não utilizar determinadas palavras é aniquilá-las, expulsá-las da língua.

Manuel Monteiro

 

A transposição da oralidade – propositada, por exemplo, no jornalismo radiofónico e de TV – para uma linguagem escorreita é que, algumas vezes, deixa muito a desejar.

José Mário Costa

         

Foi depois de comprar e começar a ler o livro Dar a Volta ao Texto, de Martim Mariano, que percebi que certas pragas que tanto me enfastiavam na Internet existiam não por mera imitação ou por um qualquer contágio psíquico, mas porque andavam a ser ensinadas. Os vícios da língua e o mal escrever chegaram ao formato de manual, e a voz que o autor deste livro diz tantos anos ter demorado a apurar para tornar sua já a encontrei em muitos outros “profissionais” da escrita que contam como única qualificação a de serem falantes nativos que, em vez de corrigirem deslizes, buscam afirmá-los.

Percebe-se, por isso, que se encontre na obra em questão aberrações como o incentivo a escrever-se como se fala, a escrever para que as pessoas gostem de nós (“É preciso ser agradável e querido para as pessoas que o leem”, afiança o autor ante os meus olhos esbugalhados) e a escancarar as portas da própria existência para se ser lido. Não duvido de que o Big Brother continue a ter audiências, mas sabe-se bem quais são e qual o instinto que as move. A “autenticidade” e “naturalidade” recomendadas por Mariano, a par da tão apregoada “vulnerabilidade”, não implicam a falta de decoro que tantas vezes transpira em quem acha que, para exibir estas qualidades, precisa de expor rotineiramente a vida íntima. Ser-se pessoal ajuda a criar uma identificação com o público e a humanizar quem escreve, mas há um equilíbrio a alcançar. Já para não falar do difícil lugar em que se coloca quem quer ser autêntico e ao mesmo tempo agradar ao público.

A popularidade é um critério que parece ofuscar a qualidade. Não se ensina a escrever para transformar, mas para facilitar. Não para elevar quem lê, mas para lhe passar a mão no pelo. Não para que haja algum mérito em ser-se publicado, mas para mostrar que todos podemos ser escritores, desde que trabalhemos e sangremos muito e que os nossos textos falem ao coração. Sim, é preciso tudo isso para se aprender a escrever como se fala e a cativar os leitores, poupando-os a todos os esforços e aborrecimentos.

Além de o autor não fazer caso das regras do português, sujeita a língua a um jogo de cintura tal que ela vira contorcionista, confirmando o copywriting como a literatura de cordel da era digital. Dividir segmentos de frases com pontos finais, em vez de vírgulas, pode cair bem à primeira, mas a originalidade e a ênfase acabam por se perder à custa da repetição enjoativa: “Deixe que as pessoas percebam essa autenticidade. Essa verdade. Essa transparência”. E motivos para enjoo não faltam nesta obra, cuja leitura tive de interromper várias vezes para me refazer, como é o caso da também repetida expressão de realce “é que”, que deixa de realçar seja o que for. Mesmo. (Assim escreveria o autor.) O abuso de estrangeirismos, os parágrafos com uma frase e as frases monovocabulares, as marcas da oralidade que se tomam como expressivas e naturais, as “clarividências” que o autor não parece saber o que sejam, a menos que tenha alguma queda para o paranormal (o que é provável, tendo em conta o número de vezes que sugere “passar algo para o outro lado”), …

Aliás, por falar em paranormal, não resisto a desvendar o trecho em que este criativo descreve quem faz da escrita vida como alguém “especial”, dotado de missão divina (incluindo-se, por extensão, no grupo). Por momentos, vi-me transportada para o cabeleireiro, onde me distraio com a Maria e chego a ler o horóscopo enquanto me massajam o couro cabeludo. O próprio Mariano, a páginas tantas, confessa: “Sempre que vou a casa dos meus sogros leio todas as revistas cor-de-rosa que lá estão. E o Correio da Manhã.”

           Feitas as contas, acabei por perder com esta recente aquisição “literária” mais tempo do que gostaria e por lhe dar à cama um lugar que não merecia (maldita rima). É um livro que ensina a fazer dos vícios virtudes.

Passo a passo.

A capa e a contracapa são bonitas. Ao texto, não há volta a dar.

06
Mai23

A pedra no meio do caminho

Sónia Quental

Anfiteatro a dançar (4).jpg

(…)  já não se trata de mascarar com eufemismos, trata-se de inverter o próprio sentido das palavras.

 Jorge Soley

 

Jesus and Buddha (...) were just guys who got tired of all the bullshit.

Howdie Mickoski

 

 

A par das notícias sensacionalistas e do terrorismo puro em que os meios de comunicação social se empenham e que tendemos a imitar nos nossos círculos reduzidos, noto o cultivo generalizado e inverso de uma linguagem eufemística que, para mim, culmina na palavra “desafios”. A partir de um ponto que não sei precisar no tempo, deixou de haver problemas, dificuldades, obstáculos, preocupações, crises, desgostos, contrariedades para haver apenas “desafios” a ultrapassar.

Concordando com Manuel Monteiro, quando diz que “a elegância é quase sempre o melhor remédio” (em questões da língua e não só), sinto-me esvair de todos os vestígios de graça se, passando por um mau bocado, ouço referirem-se-lhe como um momento “desafiante” ou atribuírem a causa à mudança de estação. A ligeireza e as frases vazias que, mais do que pontuar, recheiam os discursos são sinais evidentes da superficialidade e do engano deliberado em que se vive, desse horror à negatividade numa cultura que, ironicamente, vive fomentando o medo, com as pessoas competindo entre si pelo título de mais desgraçada – perdão, daquela que se vê a braços com o maior número de desafios.

Ocorrendo-me o poema “No meio do caminho tinha uma pedra”, percebi que Drummond estaria em maus lençóis (ou em lençóis menos convidativos) se quisesse publicá-lo hoje. Fui pesquisá-lo para o relembrar e eis que me deparei com um artigo de psicanálise que, logo depois de explicar o significado da pedra, passa a advertir que os entraves que simboliza são uma oportunidade de aprendizagem (outra expressão da moda), num mundo relativo, em que “pedra” e “caminho” não podem ter significados absolutos. Não sou dada à profanidade, mas confesso que quase que me saía. Se devemos elogiar a pedra ou apegar-nos a ela é o que se discute a seguir, e nesta altura já tenho a cabeça a andar à roda. Não sei qual a resposta certa, mas vou arriscar o elogio, devidamente ensanduichado na conversa assertiva que o sujeito poético teria com a pedra, não sem começar por lhe perguntar o seu pronome. Disse “sujeito poético”, mas queria dizer “autor”, porque a escrevente do artigo diz que afinal a pedra é uma hipértese, representando o filho que Drummond “perdeu”.

Admito que este texto tomou um rumo totalmente imprevisto, em torno de uma pedra em que tropecei por acaso, mas que nem por isso me travou o caminho, pelo que posso confirmar que a pedra sempre é relativa e um desafio superável! Tive de segurar as palavras enquanto ia na rua, para também eu não as perder e ser obrigada à hipértese. Felizmente, tinha ido prevenida com uma folha de papel para me aliviar e este texto chegou ao fim quase sem eu perceber.

“E agora, José?”…

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

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