Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

04
Abr24

Cura para a insónia

Sónia Quental

Lembro-me de quando aprendi a fazer aviões de papel (a versão simples e a elaborada), da bola que fiz pela primeira vez com a chiclete e do vizinho que me ensinou a assobiar com os dedos. Guardo a imagem fixa dos pirilampos que apanhava e agasalhava na mão, atinando já de pequena que precisava de secreta luz para me fazer notar. Fora essas estreias, todas antes dos 10 anos, as Peta Zetas na boca e o “f” minúsculo desenhado na perfeição, desde então tem sido sempre a descer. Não houve outra habilidade que me fizesse sentir igualmente capacitada nem primeira vez que voltasse a ser a primeira: a face da Terra era já conhecida e o poço do furor literário praticamente secou.

Foi por isso que atirei as febres lá para o alto e que passei a aspirar ao impossível: transformar chumbo em ouro, achar a galinha cor-de-rosa já aqui mencionada, encontrar o ponto certo do molho de mostarda e mel, curar a doença mental no mundo, conhecer a identidade do Batman. São esses os motivos da minha insónia. Com tanto que fazer, não esperem que me deixe deter por políticos a distribuir pevides na rua, quais testemunhas de Jeová convertidas à pressa.

Desde os tempos da Rua Sésamo que sei que é preciso alguém para martelar, visto não podermos ser todos astronautas nem mediadores imobiliários. Assimilei a mensagem e peguei no martelo, mas não escolhi madeira barata. Canso os braços nas noites brancas, porque é preciso torná-las mais brancas e as noites não são compassos de espera. É nelas que o trabalho se afunda, que a vigília se afia. Se caio no sono, há um cão que me morde as canelas para os olhos abrirem.

Os pirilampos viajaram comigo para alumiar a madeira enquanto cavo novos veios de luz. Tudo para que os olhos do Amor se voltem uma vez para mim: não me importo de ser invisível desde que brilhe no breu.

 

350764794_938856937344757_1101835654246154794_n.jp

 

Modelo da fotografia: Paulina

2016 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

13
Mar24

Domingo, manhãs

Sónia Quental

Saio nas manhãs de domingo à hora a que apenas os turistas japoneses cobrem de flashes a Capela das Almas. Nesse momento de transição, em que a luz e a sombra dão de ombros uma com a outra, a coexistência de fenómenos contrários está em evidência.

Ao lado da loja de manutenção de bicicletas, onde um grupo de ciclistas dispostos marca encontro todas as semanas, emerge de uma cave um bando de vampiros, sofrendo as dores do alvorecer com um montinho de erva na mão, que deduzo não será incenso nem mirra, contemplando-o como que esperando que a luz do dia também o ponha a fumegar. Não fico para ver, embora note que a indumentária daquelas que já não posso jurar serem do sexo feminino deixa pouco à imaginação.

O Facebook avisa-me que é dia de eleições. No Twitter (X), alguém brada que as mulheres não são nada sem a vocação da maternidade. Quase me engasgo com a torrada, mas consigo reunir forças para lhe enviar à distância a minha tísica compaixão maternal. Atravessa-me o pensamento a experiência do horrendo e do sublime no baile de domingo passado, sem saber o que esperar deste. Ao passo que o sublime é fugaz, o horrendo tem o hábito de se pegar, por mais que o sacuda.

Pelo caminho, a memória da semana traz-me ecos sumidos: encaixa a baciaaperta os glúteos. Pessoas com a chave na mão pedem duas vezes ajuda para lhes abrir a porta de casa, apontando-me a vocação a que sacrifiquei a maternidade: facilitar entradas.

Quisera seguir os passos de Sophia neste meu caminho da manhã, mas não é época de figos pretos no mercado, que tem hoje o seu dia de descanso. Aqui não há cigarras que cantem o silêncio de bronze – apenas homens que sacodem os tapetes do carro. Onde quer que a manhã pouse, o sublime chega-se com a sua lágrima de mel numa paisagem de azulejos, harmonias e contrastes. E o amor do Invisível pelas coisas visíveis afigura-se ralo só a quem precisa de altar para deitar os joelhos ao chão.

 

2019 © Francisco Amaral - todos os direitos reser

 

Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

05
Mar24

...e de outros demónios

Sónia Quental

 

The demons have not really disappeared but have merely taken on another form: they have become unconscious psychic forces.

Carl Jung

 

 

Começo esta nota no sítio onde me deixou uma das últimas: na paragem de autocarro de onde vejo descer uma mulher a fazer o sinal da cruz, numa manhã de domingo que podia ter saído de um quadro de Edward Hopper.

O gesto desusado no passeio onde caminhava só de corpo levou-me a interrogar que demónio teria visto lá dentro ou se algum se teria soltado da trela nem sempre curta a que os temos presos. Ouço muitas vezes as pessoas falarem dos seus demónios sem conseguirem conter a ternura entrincheirada entre a exasperação e a culpa, referindo-se com esse nome a obsessões, compulsões ou aspetos não resolvidos que as atormentam e com que passaram a identificar-se.

Quem ouve as queixas da tormenta percebe que os demónios não vão embora porque ganharam a afeição dos hospedeiros. Seja lutando contra eles ou em conversas imaginárias, dão-lhes alimento e nem assim encontram a doçura. Depois, é vê-los em passeio pelos parques, trocando impressões sobre ração e disciplina. Se alguém se assusta com os latidos, os donos acodem em sorrisos: “Não tenha medo, que ele não morde!”. E lá vêm os relatos das traquinices da criatura que se enrola sibilina na perna do passante.

Na busca do par ideal, testa-se primeiro se os demónios são compatíveis: não precisa de ser perfeito, desde que seja recíproco. Sacrificada a perfeição, entreter demónios dura uma vida de tempo perdido. São mil que não vemos em cada um, com medo de se acharem sós num quadro sem gente – do lado onde bate a luz.

 

DSCF2788A.jpg

Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

28
Fev24

O lado negro da espiritualidade

Sónia Quental

Não sei precisar quando o conceito de “ego” entrou na moda nos meios espirituais e todos passaram a contar como o “seu” ego tinha feito isto e aquilo com toda a autonomia, num estranho exercício dissociativo que o transformou numa espécie de animal de estimação, separado do indivíduo que assim se expressava. A pessoa que falava parecia desempenhar o papel de mónada iluminada que descia por instantes à Terra para censurar o mau comportamento da mente que tinha ficado a animar aquele corpo, presa a tendências retrógradas que não eram de sua responsabilidade.

Nos grupos que tratavam o trabalho espiritual com marcada austeridade, o desconforto era constante, porque a tendência a vigiar o ego tinha planos de expansão e não se ficava pelo próprio: precisava de vigiar também o dos outros. Assim, a pessoa dita “consciente” tinha de andar em contrição permanente, com a culpa do pecado original gravada na testa, o semblante grave e os ombros curvados, não fosse alguém acusá-la de caminhar demasiado direita e querer amestrar-lhe o ego, lembrando-lhe todas as suas projeções, compensações e programações herdadas.

Debbie Ford, uma das autoras que trouxeram à ribalta o trabalho com a sombra, publicou no final dos anos ’90 o livro The Dark Side of the Light Chasers, em que expunha as pretensões dos "trabalhadores da luz", chamando a atenção para a importância da integração de todos os aspetos do Eu. Não seria um livro que Ramana Maharshi tivesse escrito, mas abriu espaço a outras vozes, que preferem trabalhar mais perto da terra, convidando-nos a sujar as mãos, a voltar ao corpo e a deixar de castigar o ego por crimes presumidos. Duas delas são as de Amoda Maa e Miranda Macpherson, que reconfiguraram a espiritualidade pela rendição do feminino – e não há como passar ao lado de Mātā Amritanandamayī Devi, ou simplesmente Amma, a propósito de quem, no documentário Darshan: The Embrace, alguém que se sentou perto dela durante as horas intermináveis que passa a abraçar pessoas dizia ter sentido que o tempo deixara de existir.

There were times (...) when I was just like any other woman (...) at times feeling like a traumatized animal shivering on the floor. All of the models of spiritual realization I had worked with previously, which had been delivered through the masculine lens only, might have viewed my process as a failure to remain in the no self-state. However, the transmission of ego relaxation revealed a much more integrated, feminine approach to walking the path – to surrender in and through all that we encounter, including our animal humanity and all of our emotions.

Miranda Macpherson

 

De minha parte, recordo como, depois de vários dias de um curso de terapia alternativa que fiz em Madrid, o momento que mais me tocou foi quando o motorista do transfer que me levou do hotel para o aeroporto me contou o segredo da felicidade. Era um domingo de Páscoa e o atraso do avião fez-me lamentar a conversa abreviada pela pressa.

À semelhança dessa experiência, aprendi mais sobre espiritualidade a dançar do que a estudar teosofia. Conheci mais de perto o amor no olhar daquela monja do que em qualquer palestra que tenha ouvido. Ensina-me mais quem ocupa uma caixa de supermercado, as pessoas que vejo trabalhar com energia e alegria, sem contar os dias que faltam para chegar a sexta-feira, a professora que repara em quem não foi à aula e quer saber o que lhe aconteceu.

Foi talvez o mesmo que levou os reclusos, na última sessão de formação que dei no estabelecimento prisional masculino de Custoias, a entrarem na sala antes da hora, encurtarem o intervalo, com a formalidade voluntária da fila indiana, e fazerem em silêncio tudo o que lhes pedi, declarando finalmente o carinho que tinham por mim. Não que tivesse sido branda com eles (pelo contrário): era que me importava, e eles tinham-no testado vezes suficientes para se convencerem disso.

Nos dias que correm, mesmo que ainda não tenha largado a minha máquina de etiquetas e continue a fazer separações, nem todas essenciais, posso dizer que uma das que deitei fora foi a que dizia “espiritual/não espiritual”. Aprendi a deixar os intelectualismos de lado e a tomar posse de mim e da vida. Divisão por divisão, em vez de fustigar o ego, escolho dançar com a sombra que projeta. Acho graça quando me calca os pés: a sintonia é plena.

 

 

02
Fev24

Nostalgia

Sónia Quental

Este texto começa e acaba com a toada de uma música dos Smiths, nascidos no mesmo ano que eu: “There is a light that never goes out”, com uma letra que exprime a mesma ânsia do regresso a casa que começa por afastar. Os tons da melancolia e da nostalgia habitam caracteristicamente a música dos Smiths, que encaixa em ambientes e horas de penumbra, despertando dores adormecidas.

Apesar do travo agridoce deixado por ela, o filósofo espiritual Richard Rose dizia da nostalgia ser uma das nossas emoções primárias, uma janela para a alma ou o instinto de uma perda longínqua (a mesma nostalgia imortal que, para Roger Scruton, a arte digna desse nome tem o poder de evocar, satisfazendo uma fome de essência). Embora duvide que Roger Scruton fosse fã dos Smiths, é essa mensagem que, para mim, transmite a sua música, e este título em particular.

I maintain that nostalgia has something to tell us. We are programmed to indulge in life, but the haunting nostalgia is the subliminal message from another plane.

Richard Rose

 

A viagem faz-se de carro, evocando talvez as viagens eternas da idade em que ainda não se aprendeu a medir o tempo e se reside num devir difuso; é ele que permite a intimidade da deslocação a dois. Mais do que um meio de transporte, é o começo de casa – quem não tem para onde ir já chegou, sobretudo se é o amor que o leva. E, quando se chega a uma casa assim, o que vem a seguir já não importa.

A proverbial luz ao fundo do túnel, aqui literal numa primeira leitura, nem sempre faz tão grande contraste com o desespero que leva à fuga ou ao desamparo de não se ter casa no mundo. A luz continua à mesma distância quando se participa da música e do bulício, quando a vida nos inclui e os êxitos se confirmam. A luz diz: “Ainda não é isso”, continuando a atrair-nos com o acorde da nostalgia, criando uma sensação persistente de insatisfação, sinalizando que apenas uma luz que não se apaga pode ser real. Todas as outras vão e vêm com a passagem dos dias, o subir e descer das marés. A resposta não é necessariamente a inspiração niilista que a música dos Smiths parece sugerir, mas um movimento peregrino em busca do que permanece e nos revela desde sempre inteiros – o halo perdido que buscamos no olhar de Quem nos conheça.

 

29
Abr23

Luminárias

Sónia Quental

Escadaria do Mercado do Bolhão (4).jpg

It is so dificult to find a teacher these days. There are mostly preachers. A real teacher has no teaching.

H. W. L. Poonja

 

Most teachers are false teachers, and most seekers and false seekers.

H. W. L. Poonja

  

Percebo que Alexandre Mota quisesse perguntar a Jordan Peterson que compatibilidade haveria entre o Deus Cristão e aquele a que de modo incauto chama o “Deus Panteísta”, à guisa de matchmaker desavindo, em busca de uma luminária que lhe dê razão.

Andamos, muitos, em busca de luminárias, entre tantos falsos brilhos e a falta de referências que alumiem um ignoto deo. Percebo o que diz, apesar da falta de rigor, quando fala das “experiências esotéricas ao estilo panteísta” que vieram substituir o fascínio do existencialismo. Penso, sim, que é preferível “agir como se Ele existisse” do que sucumbir à convicção fácil do ateísmo (embora me pareça que a diferença não seja tanta assim).

Também a mim me indignam muitas das tendências que nomeia no seu artigo, que dão má fama ao que é da ordem do Invisível e a quem se empenha com seriedade em conhecê-lo. O sincretismo New Age é o red light district da Espiritualidade. Estou bem familiarizada com a confusão entre desenvolvimento pessoal e espiritual e com quem se considera espiritual porque queima incenso, faz visualizações criativas, aplica a lei da atração, lança o pêndulo e as cartas, comunica com os anjos e os mestres ascensos, pratica Reiki, Access Consciousness ou ThetaHealing, fala como entendido das crianças índigo e da era de Aquário, faz regressões a vidas passadas, leituras da aura, anda com cristais pendurados ao pescoço, recita afirmações positivas, participa em cerimónias ayahuasca e atira namastês à discrição. Enjoei das frases feitas de grupos que viram verdadeiras seitas, empenhados na eterna procura, mas não no Encontro. É disso que também se priva quem age “como se Ele existisse”: da oportunidade da descoberta.

É à boca cheia que se ouve falar de “luz”, “energia”, "cocriação" e do malfadado “ego”, nos locais mais desusados, por seres que trajam de branco, cobertos de medalhinhas de Nossa Senhora e de Cristo Jesus, que são “tu cá, tu lá” com o Arcanjo Miguel e têm contactos privilegiados na 9.ª dimensão. É o auge da pornografia. A espiritualidade tornou-se um acessório barato, que ora se põe ora se tira, consoante a ocasião e o dress code, deixando atrás de si um rasto carnavalesco de inquestionável mau gosto.

Por isso, caro Alexandre, entendo perfeitamente o que diz. No entanto, por muito respeito e admiração que sinta por Jordan Peterson, sei que não será ele a dar-lhe a resposta que procura – desde logo, porque ele próprio não a tem. Deus não se revela pela via do intelecto. Nas expressivas palavras de H. W. L. Poonja, “If you are looking for diamonds, do you go to a potato shop?”

Se quer começar por algum lado, sugiro-lhe, caro Alexandre, que comece por se livrar da suposição de que Ele existe, teve batismo cristão e é um “alvo exterior” (a abater ou não). Atreva-se a admitir que nada sabe e que só daí poderá partir: sem saber o que vai encontrar. Livre-se dos conceitos que formou antes de querer saber se o Deus cristão pode dar o nó com o “panteísta” e quem irá presidir ao casório. Remova os modificadores do nome. E, se quiser falar em esoterismo e budismo, estude-os primeiro. Não os confunda com as versões aciganadas que por aí circulam nem os irmane à erva daninha do relativismo. Desenvolva a faculdade da discriminação. Se precisar de ajuda, escolha luminárias que realmente saibam, não sem antes começar a acender a própria luz – porque só as luminárias se reconhecem entre si.

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D

Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0