Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

30
Mar23

Rumo à tecnocracia

Sónia Quental

Grafíti a cores (5).jpg

 

 

Our intelligence doesn't serve us until it is in service to our souls.

Brian Ridgway

 

 

A pergunta óbvia colocada por Jorge Soley nas páginas de abertura do seu Manual do Bom Cidadão, indagando se enlouquecemos todos, veio-me à mente muitas vezes, antes ainda da propagação generalizada do politicamente correto e da cultura do cancelamento que é objeto do escrutínio do autor.

Uma das ocasiões foi quando ainda dava formação e o então dirigente da instituição onde trabalhava procurava convencer-me de que a minha única função era preparar os formandos para os inserir no mercado de trabalho. Competia-me, assim, escolher os conteúdos de caráter prático que tivessem utilidade para o papel que teriam a desempenhar em contexto profissional. Achava-me na posição formidável e vã de tentar rebater que estava ali para formar pessoas e que, sem se formar pessoas, não se formavam técnicos. Tentava explicar que saber pensar era uma coisa prática e útil, dentro e fora da oficina.

Aspiravam, no seu pragmatismo progressista, a reduzir pessoas a máquinas, tal como hoje se quer que as máquinas façam as vezes das pessoas. A sua exatidão e automação superam as nossas falhas e tornam-nos cada vez mais redundantes, versões obsoletas que se impõe erradicar da força de trabalho e substituir por modelos melhores. Tal como nesses tempos não muito distantes assistia – até que me despedi – à pretensão de se transformar gente numa engrenagem bem oleada da cadeia de produção, deparo-me hoje com a realidade da desvalorização do trabalho humano face a uma inteligência artificial que o torna aparentemente desnecessário. Só num mundo que perdeu o contacto com a própria alma se tem “inteligência” como sinónimo de “consciência” e como o mais alto valor de mercado - a par da “utilidade”. As tendências são uma e a mesma: tornar-nos semelhantes às máquinas, unir-nos a elas numa simbiose feliz e adotá-las como blocos de construção da sociedade superior do futuro: mais eficiente e menos dissidente.

Pergunto-me se a palavra “alma” se tornará também um dos termos cancelados pela cultura dominante, um conceito filosófico e intangível que a Ciência ainda não validou e de que os gladiadores sociais desconfiam, pertencente talvez aos círculos diabólicos das “teorias da conspiração”. Mas, como salienta Jorge Soley, entrámos já numa era em que se tornou proibido fazer perguntas. Assim se impedem os verdadeiros debates e o que quer que destoe de uma narrativa fechada que tem a linguagem como instrumento ideológico e que tanto se empenha em reformá-la e em produzir rótulos que põem imediatamente fora de combate quem se atreva a contar outra história.

Por esta altura, se fosse esperta, já teria enveredado por uma carreira de fact-checker ou de coadjuvante da censura, polidora da linguagem ortodoxa ou ceifadora de termos moralmente ofensivos, uma vez que escolhi um curso “sem saída” que, se à época já pouco tinha de “prático”, hoje parece cada vez mais supérfluo, diante do primado da IA e do futuro tecnocrático que se deixa adivinhar, em que a “nuvem” será o nosso novo habitat comum. Não a nuvem da inspiração artística, da imaginação ou da transcendência, bem entendido, mas a nuvem cibernética. Em breve chegará o tempo em que, depois de abdicarmos da inteligência a favor das máquinas, lhes cederemos também o corpo, num novo tipo de possessão futurista, encorajado pela reeducação global, que pretende remover todos os vestígios de consciência humana, todas as possibilidades epifânicas e reduzir enfim o homem a um ser sintético, socialmente adaptado, ao serviço da coletividade – um homem que será uma sombra sem aura.

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D

Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0