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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

14
Out23

Música não é certamente

Sónia Quental

 

Tenho encontrado várias críticas feitas de passagem ao uso generalizado de fones. Também me molestam, mas sou utilizadora. O que ouço não é música e não é escapatória – é conteúdo formativo a que só posso dar atenção quando vou na rua, porque em casa o tempo não chega para ficar parada a ouvir o que me interessa, mesmo durante as tarefas de lida doméstica, que deixam um ouvido livre enquanto interrompo o trabalho mental e é a vez de as mãos se ocuparem.

Ao deslocar-me, a pé ou de transportes públicos, posso deixar-me absorver pelo que de facto me faz mover e revigora, porque o tempo para o que importa é escasso. Em vez de meio de alheamento ou desculpa para escapar a interações embaraçosas, os fones são uma forma de estudo ativo, concentração e interiorização.

Há, porém, outros motivos que me fazem recorrer a eles cada vez mais. Além do assédio constante a que sou sujeita nas ruas e esquinas mais inusitadas, de pessoas e organizações a pedir esmolas e donativos, essas investidas acontecem agora em qualquer espaço comercial onde se entre. Tendia a frequentar as livrarias maiores, por exemplo, porque, além da maior quantidade de livros em oferta, podia deambular à vontade no interior, quer fosse com intenção de comprar ou apenas de ver as novidades. Podia pegar nos livros, folheá-los, passar algum tempo a lê-los e passear ao sabor do acaso sem ter de prestar contas a ninguém. Agora, nem nos grandes espaços comerciais estou a salvo de ser assaltada por funcionários que mostram pouca sensibilidade, oferecendo reiteradamente ajuda não solicitada, empurrando revistas e panfletos que não quero e recitando todas as campanhas em vigor, já expostas nos cartazes espalhados pela loja – litania essa que por vezes tenho de ouvir de TODOS os funcionários ao serviço. Nem os fones, que ali uso como sinal de “Não incomodar”, conseguem demovê-los do intento e forjar uma sensação de abrigo.

O mesmo acontece com o ruído e outras formas de invasão de um espaço pessoal que parece ter deixado de existir, apesar da histeria fanática dos que ainda há pouco tempo defendiam “distanciamentos sociais” (uma contradição nos próprios termos). Pegando novamente no exemplo da leitura, é difícil fazê-la em espaços públicos, fechados ou abertos, porque os restantes frequentadores falam ao telemóvel, quais varinas em pleno arraial, tendo criado ainda o hábito de ouvir música e assistir a conteúdo multimédia nos seus dispositivos pessoais SEM fones – certas camadas da população fazem questão de andar com as colunas atrás, para se certificarem de que o som que ouvem é devidamente propagado, inclusive dentro do metro. Mas não se pense que o fenómeno é apanágio delas, porque ainda há poucas semanas, entrando num café, tive de me sujeitar a ouvir o conteúdo de stand-up comedy sobre sexo que dois casais de idosos bem-apessoados, talvez com problemas de audição, partilhavam entre si à mesa.

Por isso, mesmo que os fones sejam um fenómeno cada vez mais generalizado, quiçá marginal à etiqueta, não são sempre expressão de solipsismo ou falta de confiança daqueles que encontro poeticamente descritos como “os gajos dos fones”, mas medida de sanidade mental e proteção contra as agressões externas cada vez mais numerosas, de um mundo que deixou de saber diferenciar o público do privado e não sabe que nem tudo o que é meu é nosso. Numa sociedade que não para de falar, ainda há quem escolha o silêncio como modo de vida. Essa a mais bela das músicas.

Nas escadas (7).jpg

 

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

13
Jul23

"A menina dança?"

Sónia Quental

 

O body swayed to music, O brightening glance,

How can we know the dancer from the dance?

William Buttler Yeats

 

 

Alexandra Guinapo Photography.jpg

Nos dois últimos domingos, dancei com um menino no baile. Isto é, parecia um menino, mas tinha barba. Era baixinho, roliço, dançava bem, mas, mais do que a desenvoltura na pista, o que o distinguia era a atitude. O garbo e o modo sensual como dava corpo à dança, a relação aberta a que convidava o par, sem o acanhamento dos complexos que atrapalham, seja qual for a constituição física de cada um, deixavam uma impressão tremenda.

Qualquer que seja o estilo e o grau de proximidade física, a dança é um convite para um encontro, que muitas vezes só nos atrevemos a expressar quando antecipamos resposta positiva. É difícil encarar uma recusa para dançar como não sendo uma rejeição pessoal, manter a autoestima intacta e a iniciativa. Pelo mesmo motivo, não é fácil recusar a dança a alguém que tenha a temeridade de fazer o pedido, mas com quem não se gosta de dançar. Não faltam ainda equívocos, deslizes e oportunidades perdidas num baile, o que contribui para o melindre de se convidar uma pessoa que não se conhece e torna tentador procurar estratégias para disfarçar constrangimentos e atos falhados. Todas as ciladas do mundo social estão em maior evidência num salão de baile.

Por outro lado, nem todos estão de corpo inteiro no encontro que é a dança, mesmo quando ambas as partes consentem. Às tantas, está cada qual a dançar sozinho, em vez de com o par, e ao som de uma música que não é a que se ouve. Há quem dance sem olhar para a pessoa com quem dança e, quando os desacertos são muitos ou a sintonia falha, a vontade é de ficar ali só de corpo, rezando para escapar a acidentes, não ser demasiado transparente e resguardar a alma enquanto a música não acaba.

O cavalheiro com ar de menino diferenciou-se desde esse primeiro momento do código da dança: tinha pé ligeiro e inequívoco quando andava em busca de par. Não dava margem para dúvidas quanto ao convite que fazia nem a quem se destinava (a ambiguidade é outra escapatória útil quando há a possibilidade de uma abordagem correr mal). E aparecia ao encontro da dança.

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Sempre me fez espécie o valor – quanto a mim exagerado – que costuma atribuir-se à autoconfiança, em parte pelas dúvidas existenciais que sempre me assaltaram. Por saber também que um ignorante autoconfiante não deixa de ser ignorante, e a autoconfiança só lhe agrava o defeito, o mesmo se podendo dizer de alguém que não dança bem, mas está convencido de que sim. Esse será talvez tema para outro texto. O que quero neste dizer é que o “menino” com quem dancei me mostrou o efeito que a autoconfiança pode ter quando bem administrada e acompanhada de qualidades que a autenticam, em vez de um vácuo inflado. Sabia o que fazia, gostava de dançar e deixava-se transportar com admirável deleite. Não hesitava em liderar, no papel que lhe cabia, nem descurava a atenção e a delicadeza para com o par.

Pudera eu ser assim, que não sei brincar da mesma forma espontânea com o corpo e abri-lo à dança no gozo desse brinde a dois. A introversão não é um adereço que ajude ao ato e muitas vezes gostava de poder deixá-la à entrada, com a carteira e os sapatos de usar na rua. Não dá para se dançar encolhido nem com o cabelo à frente da cara, e a mera reprodução de passos aprendidos dificilmente conduz ao arrebatamento da dança, às dádivas que reserva a quem se entrega inteiro de corpo, sem medo de se expor. De alguma forma, a dança sexy e desinibida do menino-cavalheiro transmitiu-se-me, colando-me uma das muitas notas de comoção e maravilha que o forró me tem deixado desde que aprendi a dançar.

Uma delas, que sabe especialmente bem ouvir nos dias que correm, é a cortesia de outro século com que perguntam: “A menina dança?”. E o enlace do abraço que se segue.

Forró (3).jpg

 

Fotografias: © Alexandra Guinapo e © Francisco Amaral (2017)

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