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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

27
Abr24

O aceno do elefante

Sónia Quental

O máximo a que pode aspirar alguém que ocupe a posição de professor ou formador é contribuir para formar seres pensantes – encontrar um metro quadrado de terreno fértil onde as migalhas não sejam devoradas pelos pássaros ou levadas pela brisa do esquecimento.

Anos antes de as experiências de Stanley Milgram se tornarem do conhecimento público, os formandos que tinha em sala já as haviam visitado, tal como ao “Efeito Lúcifer” cunhado por Philip Zimbardo e ao questionamento de alguns autores da psicologia social sobre as condições que favorecem a ação do Mal. Analisámos o filme A Onda, baseado em factos verídicos, e perguntámo-nos em conjunto o que podia fazer com que metade de uma população de civis pegasse em catanas de um dia para o outro e dizimasse a outra metade, como aconteceu no Ruanda.

Em vez de falar de raça, etnia e discriminação, aproveitei a relativa autonomia que tinha para atacar o tema puro e duro do Mal, que parecia nada oferecer de prático. Chegado 2020, percebi a razão prática de discutir assuntos filosóficos aparentemente divorciados das matérias de cidadania e esperei que não tivesse sido vão o trabalho de fomentar um espírito crítico pouco encorajado pelos burocratas que ditam os referenciais e pelos responsáveis de formação que não querem senão instalar engrenagens obedientes no mercado de trabalho.

Se é discutível o estímulo da imaginação heroica que Zimbardo sugere como antídoto contra o Mal no final da sua Ted Talk, o que quero hoje fazer é aproveitar a deixa para lembrar o elefante que acena no meio da sala, quatro anos após as medidas bárbaras impostas a pretexto de uma "pandemia", e assinalar a ação heroica de alguns à face delas. Não é sem tumulto interior que vejo as fotografias da população em marcha neste 25 de abril, sabendo que ainda há pouco a maioria dos que seguram cravos na mão se encolhia dentro de casa, espiando à janela quem saía à rua e congeminando ardis para aprisionar e impedir de frequentar espaços públicos quem montou guarda à dignidade humana e escolheu dizer “NÃO”.

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Refiro-me a médicos, cientistas, jornalistas, investigadores, professores e profissionais das mais diversas áreas que foram, em muitos casos, despedidos dos postos de trabalho e, quando não, vilipendiados, atacados, marginalizados e impossibilitados de se expressar pelo crime de divergirem de uma opinião pública habilmente manipulada e fundamentalmente cobarde. Foram inúmeras as contas online suspensas, as pessoas bloqueadas e canceladas por defenderem que os (pretensos) fins não justificam os meios e que a humanidade não se presta ao estupro. Quando os grandes poderes fizeram vergar a ciência, a puseram de quatro e passaram ao ato que está na mente dos que aqui me leem, essas pessoas mostraram que a ciência não tem amo e que não é preciso ser-se cientista para se ser dotado de consciência, que é individual antes - ou em vez - de ser coletiva.

Uma das vozes que se fizeram ouvir foi a do médico Tiago de Abreu, cuja crónica “Os borrados de medo” releio assiduamente, como tributo à coragem de um dos que ousaram dissentir em momento precário, num discurso sem eufemismos nem papas na língua. Esta é a única homenagem que posso fazer a um 25 de abril impostor: lembrar e deixar-me inspirar pelos heróis que não se sentaram no sofá a cantar hinos hipócritas à liberdade e que arregaçaram mangas pela sua defesa, mau grado os sacrifícios pessoais e profissionais que isso lhes custou. A quem quer fazer cair no esquecimento a selvajaria em que participou – e àqueles que ainda nem sequer se deram conta dela -, o elefante acena do meio da sala.

Por trás dos discursos que saem em defesa de um suposto bem coletivo, nacional, ou mesmo do bem-estar geral, constata-se, em muitos casos, um projeto de tomada de poder que costuma valer-se da ingenuidade e do despreparo das massas para justificar a supressão da pessoa enquanto ente inviolável.

Maurício Righi (sobre o pensamento de Theodore Dalrymple)

 

 

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Bob Moran

(um dos despedidos sem causa, autor de ambos os cartoons)

 

08
Fev24

De quatro folhas

Sónia Quental

           

Acredito nos amores à primeira leitura como nos amores e desamores à primeira vista. Infalíveis, uns e outros, ao olhar aguçado da experiência, à intuição que nas mulheres apura o passar do tempo, quando chegam a descobrir que não é cego o amor, mas vê bem ao longe.

Como a poesia de Adélia Prado, amei à primeira leitura o talhe dos versos de Amalia Bautista, que me persuadiram a comprar-lhe o Trevo. Não sendo feminista, há um sentir do feminino ao mesmo tempo selvagem e delicado que esparsamente me chama ao seu resgate. Estes vultos na poesia, outros na pintura e nas coisas do espírito, cativam-me pela violência simples e crua da emoção a caminho da transfiguração, de um corpo devocional do feminino com uma fisiologia distinta em cada uma delas, oscilando entre a adoração e o esconjuro.

Num mundo dominado por pretensões de racionalismo, lembram-nos que é no escuro que caminha a mulher, que por lá a leva uma fome primordial que resiste a planos, estratégias, à mais residual tentativa de controlo. Para apaziguar essa fome, há o ato de um canibalismo amoroso que não procura desculpas, o instinto acirrado de uma presa antiga, mantida a pão e água, como Amalia Bautista no seu “Em dieta”:

Deitei-me sem jantar e nessa noite

sonhei que te comia o coração.

Deveria ser por causa da fome.

Enquanto eu devorava aquela fruta,

que era doce e amarga ao mesmo tempo,

tu beijavas-me com os lábios frios,

mais frios e mais pálidos do que nunca.

Deveria ser por causa da morte.

 

           Acudiu-me por estas linhas a lembrança de um colega que, quando foi promovido a diretor, se propôs o desafio de ver quantas mulheres conseguia fazer chorar no gabinete. Eu também chorei uma vez, tenho as lágrimas como preciosas e atirei-lhas quais pérolas de Virgem contrariada, que ele não saberia apreçar, apesar da cobiça que tinha por elas. Lágrimas que uns querem ganhar, erguer como troféus, e a outros espantam.

Há-os como ele, que não sabem que é com as lágrimas que a mulher se regenera e segura o mal à distância: “(…) há algo na pureza das lágrimas verdadeiras que anula o poder do demónio”, diz Clarissa Pinkola Estés no seu formidável Mulheres que Correm com os Lobos.

Depois da minha oferta, fiz o que outras não fizeram: juntei o resto das lágrimas e vim embora. Ainda são elas que me salvam quando fico sem jantar e me apetecem os corações que um dia me deixaram à míngua.

 

Amalia Bautista.jpg

 

14
Nov23

Silêncio que é chumbo

Sónia Quental

Foi a saudosa coleção da Formiguinha que em criança me introduziu ao património da literatura tradicional. Os contos terminavam com uma lição de moral, e uma das que se me cristalizaram na memória dizia que “A palavra é de prata, o silêncio é de ouro”, oferecendo-se como um mistério a desvendar, coberta do pó luzidio desses metais preciosos.

No meu mundo habitual, nem a palavra era de prata nem o silêncio de ouro. A palavra era uma excreção que servia para agredir ou confundir, enquanto o silêncio funcionava ora como castigo ora como solvente, que a mão do Esquecimento manejava para diluir a verdade. Quando não cooperava com ele, era lembrada dos meus fundamentais egoísmo e ingratidão, e da fórmula 70x7 do perdão. À época, não me deixavam usar máquina de calcular na escola, mas eu era boa aluna, tinha copiado muitas vezes a tabuada e sabia fazer a conta de cabeça. Tinha noção de que o resultado era um número de grandeza desproporcionada, cuja exatidão me intrigava, mas nem as homilias de domingo me desfaziam a relutância.

Quando se nasce das entranhas de um dos mamíferos do demónio, tem-se a oportunidade de examiná-las de perto. Leva-se para a vida, misturado com o enxoval, um estojo completo de alquimia, com pedaços de chumbo como matéria-prima. O pedregulho do silêncio também ia lá dentro, suplicando-me amizade regeneradora.

Só que os meus olhos já eram míopes e estrábicos – o preço que tinha tido a pagar por não dar tréguas ao silêncio, não deixar o rei desfilar em paz na sua nudez impostora. Também conhecia essa história, não dos livros da Formiguinha, mas de leituras outras, que me tinham familiarizado com os sacrifícios que a virtude pedia. Cabia-me conquistar as suas recompensas incertas, polir o metal baço da palavra e do silêncio, que me tinham ficado presos na garganta, para encontrar os seus quiméricos tesouros.

E polir é o que tenho feito, mesmo quando as mãos não querem. É o meu fardo, a parte do mistério que me coube, a faina de desfazer o Mal milímetro a milímetro num silêncio que pulsa e se desdobra num luminescente infinito.

 

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Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

10
Ago23

Os bons e os bonzinhos

Sónia Quental

Os mornos são muito tolerantes. 

Fabiano Goes

 

 

E, ao contrário da beleza, da excelência, da destreza – valorizadas na Antiguidade greco-romana —, a bondade, ao aparecer, deixa de o ser. 

Sofia de Sousa Silva, in “Dos malefícios da bondade”

 

 

 

Passo a ferro numa tarde improvável de agosto, em que a temperatura – a do ar e a do ferro – me faz refletir noutros (res)caldos.

Reza um daqueles quase-poemas de Adília Lopes, não por acaso muito partilhado nas redes sociais:

 

Só gosto das pessoas boas

quero lá saber que sejam inteligentes artistas sexy

sei lá o quê

se não são boas pessoas

não prestam

 

É que, ironicamente, alguns dos grandes males que sofri e vi sofrer na vida foram praticados por pessoas boas. Algumas, por coincidência, eram sexy – artistas outras. Às vezes, inteligentes. Boas, boas é que não eram, embora tivessem o perfil e gozassem da fama.

Ouvi há dias alguém dizer com grande agudeza que uma das moléstias que mais assolavam a Humanidade era a ingenuidade. Correndo o risco de repetir o eco que fere o ouvido na prosa, direi que é essa ingenuidade que se confunde muitas vezes com bondade. É também ela que nos faz cair em armadilhas incautas quando andamos atrás do que é são e bom.

Foi animada desse desejo que procurei a companhia de pessoas que me pareciam boas e junto de quem me sentia muitas vezes diminuída, porque o meu branco era um branco muito sujo, comparado com o seu branco imaculado. Não queria apenas as que tivessem “bom fundo” – dispensava ter de pegar nos binóculos para encontrar a bondade, preferindo vê-la acenar, convidativa, desde a porta de entrada.

Mas a bondade que se pendura à porta raras vezes é o que apregoa. Chega-se dentro e a casa está às moscas, putrefacta – ou com um amontoado de bugigangas que não deixa respiro, porque o desejo de inclusão da pretensa bondade aceita tudo, sem critério. A frequente ânsia de fugir ao conflito e de não tomar posições que a comprometam com uma qualquer fação que não a neutralidade deixa-a num “não é carne nem peixe”, nem sim nem sopas, coadjuvante de uma paz podre bem mais danosa do que o conflito aberto. Aprendi cedo que quem é amigo de todos não é amigo de ninguém e cedo conheci a perversidade das boas intenções que motivam os “bonzinhos”, profissionais de um desporto a que deram o nome medonho de “tolerância”. Para meu espanto e horror, descobri também as serpentes enroladas que se escondem debaixo das mais bem-cheirosas flores.

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A verdadeira bondade não é uma qualidade estática, previsível ou programável. Não tem doutrina e, por não ser dotada de traços fixos, nem sempre é reconhecível a olho nu. Já a integridade, que prefiro à bondade e que está menos na moda, emite à distância o vigor que falta à última. A integridade não oferece descontos vitalícios e indiscriminados, como a bondade, em que a época de saldos dura o ano todo. Inerentes à integridade são a honestidade, a exigência e a verdade – consequentemente, o Amor. A integridade é fiel à consciência, que procura ativamente desenvolver, não ao que passa por bondade aos olhos de todos. A integridade é expressão do ser inteiro, como lembra a sua etimologia, não de um coração toldado, que acha que à bondade não faz falta inteligência nem arte.

São poucas as pessoas que praticam o oposto da bondade; da mesma forma, poucas são as genuinamente boas. A grande fatia do meio, a dos que julgam pender para o lado do bem, é a dos que facilitam o mal por aquiescência ou omissão. Basta para isso estar-se neste mundo sem um questionamento permanente de si, do próprio mundo, do que se pensa saber. Basta o espetáculo lastimável de se limitar a esgrimir opiniões sobre a política e a sociedade, sem nunca ousar ir além do mainstream.

Nas palavras de Neil Kramer, “Se, como adultos, não nos importamos com a Verdade, não nos importamos com a vida. Não dignificamos a vida”. O posicionamento que corresponde à maioria é o de não se importar com nada que não lhe diga diretamente respeito ou que ameace a sua segurança psicológica. As pessoas fogem de encontrar a verdade e de olhar para o seu abismo interior. Escolhem, deliberadamente, não ver, não saber, para não terem de agir nem de sentir a culpa por não agir. Para poderem continuar a levar a vida que sempre levaram, uma vida em que a bondade é um dos consolos que usam para se convencerem de que fazem o que podem.

Quais as verdadeiras características de um adulto? Pensar, encarnar a Verdade, expressar e transmutar a dor. (...) a maior parte do género humano não quer pensar, não quer conhecer a Verdade e não quer ter nada que ver com a dor. Essas são coisas a evitar.

Neil Kramer

 

Mas não pode haver bondade onde a complacência e a mentira sejam escolhidas como modo de vida, sendo a mentira o que marca distintamente a maldade, como propõe M. Scott Peck na obra Gente da Mentira, em que ensaia uma análise científica da maldade, à luz da psicologia e da espiritualidade: “Nestes últimos anos, tenho aprendido que a maldade – seja humana ou demoníaca – é surpreendentemente obediente em relação à autoridade”.

Não preciso de verbalizar, creio, o muito que se pode extrapolar daqui. Arrisco apenas dizer que a maldade também ataca pelas boas intenções e pela moral instituída. A medida que Scott Peck, secundado por Neil Kramer, sugere para a grandeza de uma pessoa – a capacidade para o sofrimento – é precisamente o que falta aos bonzinhos, que recusam ver e sofrer com aquilo que veem para se tornarem verdadeiramente bons. Estes são sempre sexy.

 

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In Asur: Welcome to Your Dark Side

 

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0