A fasquia mais alta
A igualdade degenera em mediocridade.
Fabiano Goes
A resistência à perfeição é muito grande.
Trigueirinho
A sensação foi de refrescante estranheza ao ler sucessivamente a biografia de dois líderes espirituais distintos, pelo traço comum de grande exigência que lhes era atribuído. Não terá sido coincidência: a pressão molesta que venho há muito sentindo, em todas as esferas da vida, é a pressão antiexigência. Na educação, na formação e nas academias, a fasquia baixa-se cada vez mais: seja para engordar números, seja sob o pretexto de inclusão e pelos casulos de fragilidade que é preciso resguardar. Nas relações interpessoais e sociais, o preceito soberano do “não julgamento” e o relativismo que nos vai afastando da noção de Verdade amolecem o critério e apagam a capacidade de discriminar. Tudo é permitido, o talento de manter relações amistosas com todos é considerado um alto predicado (ouvi repetidas vezes adolescentes e adultos descreverem a sua maior qualidade como a de serem “amigos do amigo”), a ideia de igualdade vai engolfando a noção de mérito, omitindo os níveis e as diferenças qualitativas entre as pessoas. Tornámo-nos diplomatas eméritos, com um vocabulário cada vez mais reduzido, em virtude das ofensas que as palavras carregam, e sumamente hábeis na troca de favores.
Não sei qual terá sido a primeira palavra que disse, quando comecei a falar, mas sei que fui desde cedo obstinada nos “nãos”. Com tantos a defenderem laxismos, a condenarem o que quer que entendam como manifestação de negativismo, intolerância, preconceito ou discurso de ódio, comecei a convencer-me de que devia juntar-me às turbas no afago infantilizante da autoestima geral. Devia ser uma pessoa melhor, trabalhar o sorriso postiço, a minha limitada capacidade de perdão e acreditar nas boas intenções de todos, abafando os sinais da inteligência e os clamores da sensibilidade. As palavras querem-se de simpatia e mal de mim ferir suscetibilidades ou sugerir a alguém que esteja abaixo da fasquia.
É fácil ceder a baixá-la, quando é isso que nos traz recompensas e um sentimento de pertença. É fácil ceder à ilusão de que tudo se resolve com a comunicação e uma tolerância maior – de que as diferenças se resumem a diferenças de pontos de vista, como se as divergências de opinião estivessem desligadas do desenvolvimento de consciência. É fácil acreditar quando nos ensinam que o mundo não é a preto e branco, mas uma grande área cinzenta. Quanto a mim, é o cinzento que nos oprime.
Por entre estas cogitações, ocorreu uma pequena revelação, contraintuitiva, enquanto esgarafunchava em busca de uma qualquer vocação que se tivesse revelado em criança, quando dizem que nascem as vocações: estou aqui para dizer “não”. Sem que se ilumine de imediato uma profissão em que me paguem para tal, tenho pelo menos o consolo de estar de acordo comigo mesma e de conciliar as divisões internas, feitas de vozes que teimam em ditar-me o ponto da consciência, que ainda resiste à sedução de facilitar e baixar a fasquia.
Se, como muitos gostam de argumentar em momentos de aperto, ninguém é perfeito, não é por isso que o compromisso com a perfeição deva deixar de existir – entre a exigência e a complacência, mil vezes a primeira.
Wind extinguishes a candle and energizes fire. (...)
You want to be the fire and wish for the wind.
Nassim Nicholas Taleb
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