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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

28
Jun23

Capuchinho Vermelho, a floresta e o caçador

Sónia Quental

A abraçar árvore (2).jpg

Muitos são os educados, mas poucos os iluminados.

David R. Hawkins (psiquiatra)

  

O facto de milhões de pessoas partilharem os mesmos vícios não os transforma em virtudes; o facto de praticarem os mesmos erros não os transforma em verdades e o facto de milhões de pessoas partilharem a mesma forma de patologia mental não as torna mentalmente sãs. 

Erich Fromm (psicanalista, sociólogo e filósofo)

 

 

Era uma vez o Capuchinho Vermelho. Vivia numa pequena casa, situada numa pequena aldeia, na orla de uma grande floresta. Ninguém conhecia bem a floresta nem sabia o que havia do Outro Lado, porque era território interdito e só um caçador autorizado podia aventurar-se arvoredo adentro, desde que respeitasse os limites do município. O caçador tinha de ter licença da Câmara e de ser um especialista reconhecido e certificado pela Associação Mutualista e Inclusiva dos Inimigos do Lobo Mau.

O Capuchinho Vermelho tinha uma curiosidade natural e queria saber o que havia na floresta e, quem sabe, atravessar para o Outro Lado. A mãe, naturalmente protetora, dizia-lhe que só pela mão de um caçador certificado. Eram especialistas com direito a posse de arma, que conheciam as melhores clareiras da floresta e sabiam recitar os nomes das árvores em latim, mas desconheciam o que havia do Outro Lado. Faziam apenas excursões turísticas, para distrair a mente e aliviar o stresse, e deixavam as pessoas tirar fotografias com o telemóvel. Iam e vinham dentro dos limites decretados, mas nunca tinham estado do Outro Lado e, na verdade, pouco uso tinham dado à arma.

Não se conhecia quem tivesse passado para o Lado de Lá (como também lhe chamavam), mas corriam rumores de loucura e ruína transmitidos de geração em geração, dissuadindo os curiosos de se aventurarem no desconhecido. O Lobo Mau era o malfeitor de algumas dessas lendas, de que não restavam sobreviventes para fazer um retrato-robô, por isso a sua identidade e paradeiro permaneciam incógnitos.

 

Este quase que podia ser o enredo do filme The Village (2004), que muito recomendo, e uma alegoria do artigo “O lado sombrio do Zen! Quando a meditação se torna perigosa”, de João Ereiras Vedor, que, se quiséssemos resumir ainda mais, podia caber no provérbio “A curiosidade matou o gato”.

É um texto que escorrega bem, com muitas fontes bibliográficas e escrito com boas intenções, mas cujas ideias considero descabidas. Citando Adyashanti, autoridade reconhecida em meditação: “A verdadeira meditação não tem direção, objetivos nem método. Todos os métodos têm como objetivo alcançar um determinado estado de espírito. Todos os estados são limitados, impermanentes e condicionados” (in True Meditation). Depois de começar por tentar aplicar técnicas e seguir a disciplina do budismo zen, Adyashanti descobriu a meditação autêntica quando se libertou delas. A tónica deste livro aponta precisamente para a importância de se desistir das tentativas de controlar a experiência meditativa e abdicar de todas as formas subtis de manipulação para se abraçar uma inocência intrínseca: “Como é que o controlo e a manipulação podem conduzir-nos ao nosso estado natural?”, pergunta.

Claro que aqui, como sugere o título, se fala da verdadeira meditação, que não é um exercício que se procure para desacelerar o pensamento, controlar as emoções ou aliviar problemas psicológicos. É um repousar no Outro Lado da história do Capuchinho Vermelho, que muitas vezes nos faz confrontar com as sombras e os perigos da floresta. É por aí o caminho e não há atalhos nem “especialistas” que possam desbastá-lo por nós.

Que haja quem se aproprie da meditação com objetivos mercantilistas e corporativos inescrupulosos, como propõe João Vedor, certamente que sim – o que não lhe retira valor. Também de Cristo se faz há milénios toda a espécie de apropriações e distorções, encontrando-se a sua hipotética imagem estampada em muitos artigos de merchandising, o que não me parece que faça do próprio uma fraude ou nos obrigue a confiar-nos a uma instituição religiosa ou a um "especialista" para validar a autenticidade de uma experiência epifânica.

Aproveitando o paralelismo legítimo que o autor de “O lado sombrio do Zen!” faz com a oração, as suas advertências em relação à meditação, que considera mais perigosa por não ser herança nossa, seriam o mesmo que dizer a alguém para não orar sem a devida técnica, porque podia sofrer um desarranjo emocional ou ter um arroubo místico incontrolável que só a técnica seria capaz de evitar. Aliás, a sugestão de que as sensações físicas e psíquicas provocadas pela meditação e pela oração se reduzem a efeitos neuronais é particularmente insidiosa e característica de uma ciência materialista, que identifica a mente com o cérebro, classificando certos estados “alterados” de consciência como de “desconexão com a realidade”.

Já quanto ao apontamento histórico sobre a introdução da meditação no Ocidente e o seu desenraizamento, vale a pena lembrar que um dos hippies que impulsionaram o movimento, nos anos '60, foi Ram Dass, professor de Psicologia em Harvard, que também estudou os efeitos terapêuticos das substâncias psicadélicas e fez, sim, a sua viagem de busca existencial à Índia, que não durou apenas um mês e lhe deu ocasião de conhecer Neem Karoli Baba, que mudaria profundamente a sua vida e a orientação do seu trabalho.

 

Como contraponto aos exemplos clínicos apresentados por João Vedor no seu artigo, refiro o caso do escritor Paul Levy, internado pelos pais, diagnosticado como psicótico e acossado pelo sistema psiquiátrico, que reforçou o seu trauma de vida, revelando um lado sombrio da psiquiatria que merece toda a exposição que recebe nas suas obras – particularmente, em Dispelling Wetiko e Awakened by Darkness. Aí se lê que “(...) num verdadeiro despertar espiritual há frequentemente uma conjugação de fatores saudáveis e patológicos” que é preciso integrar: “A iluminação não é apenas ‘ver a luz’; ver a escuridão também é iluminação”.

A sua experiência com a psiquiatria é descrita como uma forma de abuso de poder e de violência disfarçada de amor, exercida por profissionais que desempenham o papel de sumo sacerdotes de uma religião científica moderna, o que a minha experiência confirma. “Na verdade, para a maioria dos psiquiatras, não existe sequer o conceito de um campo de consciência subjacente a tudo. A consciência é antes entendida como algo que surge da matéria e que, portanto, pode ser manipulada através de meios materiais (…)”. Noutro passo: “Enquanto estive no hospital, dei por mim numa situação absurda: estou no meio de um despertar espiritual que mudou a minha vida, enquanto os médicos me interrogam sobre a minha perceção da realidade para perceberem se estou louco. (…) Isto faz-me lembrar uma frase de um e-mail que recebi há alguns anos, em que a pessoa escrevia: ‘Quando disse à minha psiquiatra que achava que a minha missão neste mundo era espalhar a mensagem do amor, ela receitou-me um antipsicótico’”.

 

Para finalizar, apesar da maior apetência pela meditação “verdadeira”, tal como atrás descrita, que não tem um caráter utilitário nem é subserviente a um consenso social e pseudocientífico de realidade, em nada me incomoda quem a tenha como passatempo ou trivialize. É nos passatempos que se descobre paixões e por vezes se tropeça em vocações. Às vezes, há alguém que ganha ganas de chegar ao Outro Lado e, para pasmo de todos, chega mesmo.

Não há verdadeiras descobertas dentro dos limites do conhecido. A técnica não só não nos livra de perigos, como nos inibe, consolidando uma versão acanhada e contrabandeada do Real. Antes viver neste com um surto “psicótico” do que anestesiada no quintal da Carochinha.

 

Perceber tudo como um não é um estado alterado de consciência. É um estado inalterado de consciência; é o estado natural da consciência. Comparativamente, tudo o resto é um estado alterado.

Adyashanti

 

 

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0